Cada serviço terá as suas rotinas de funcionamento. As suas engrenagens muito próprias, com requisitos idiossincráticos para quem olha de fora. Faz parte da experiência de trabalhar num ambiente complexo: diferentes profissionais, com atitudes diversas, articulam-se com uma chefia, num ambiente hierarquizado. Não é como na tropa, mas será quase, quase.
Pois bem, quando existe uma novidade – boa ou má, não necessariamente uma pandemia – esta máquina, cheia de virtudes e de vícios, tem de se adaptar.
E, à pequena escala, o nosso serviço é um microcosmos. Existe sempre o Idealista, o Frontal, o Estratega, o Negociador, o Arauto da desgraça e o Velho do Restelo.
O Idealista
O Idealista é aquele que acha que vamos ficar todos bem. Pronto, vai morrer gente, tudo certo, mas no fundo, no fundo, vai correr tudo bem, porque somos impecáveis a desenrascar o que é preciso, no momento certo. Nos dias que correm, admito, os Idealistas são escassos e por isso mesmo uma espécie que deve ser acarinhada e incentivada. Levantam a moral e são uma lufada de ar fresco. Bem-hajam!
O Frontal
Pois, há uma diferença significativa entre ser frontal e ser inconveniente. Mas nos dias que correm, as diferenças esbatem-se. O Frontal tem razão quando diz que está tudo lixado, que não temos forma de aguentar, que estamos mal preparados, que está tudo perdido e mais vale fechar tudo e sermos distribuídos por outros serviços. Gosto dos frontais. Gosto genuinamente. O que é difícil é que, na sua frontalidade a constatar o óbvio, não temos margem para tentar mudar. Ou seja, estamos lixados: tudo certo. Mas o que podemos fazer? Podemos optar por fazer A, B ou C. E o Frontal diz logo: “mas isso não vai dar, o que é preciso é uma reorganização de fundo, ser A ou B ou C é indiferente. O problema continua por resolver”. Pronto, é aqui que chateia. Eles têm razão, mas chateia.
O Estratega
O Estratega é um pensador. E nem todos os serviços dispõem de um Estratega. O Estratega, enquanto nos lamentamos da desgraça que aí vem, já desenhou 4 escalas diferentes para os profissionais, 2 percursos independentes para os doentes COVID-19, um organograma geral de tomada de decisão e um sistema de substituição se alguém ficar doente ou de quarentena. O que é difícil nos Estrategas é a velocidade. É tudo muito rápido, tudo é passível de ser organizado e reorganizado. Ainda estamos a tentar absorver a primeira mudança sugerida, eles já estão 20 passos à frente, a pensar no sistema de desinfecção das paredes, na forma de entrega de refeições. Tudo.
O Negociador
O Negociador tem um papel muito ingrato em momentos de crise. O Negociador quer ouvir todas as partes, chegar a uma ideia geral de consenso, criar a regra e 200 excepções para que todos se revejam na regra. Percebemos o esforço. Percebemos a dificuldade. Mas em tempos de crise, o Negociador convoca inúmeras reuniões e como ninguém concorda uns com os outros, as reuniões são longas e improdutivas. Aumenta a incerteza. Aumentam as correntes de contestação. Aumenta o desgaste. Os Negociadores são óptimos reformistas numa situação de funcionamento regular. Imprimem mudanças numa equipa e conseguem envolver as pessoas na decisão. Na crise, é um trabalho laborioso e ingrato.
O Arauto da desgraça
O Arauto da desgraça é acima de tudo um arauto. Gosta daquela adrenalina de transmitir a informação, de apregoar as mudanças, de verbalizar em primeiro lugar aquilo que os outros ainda não sabem. Alimenta-se do espanto e incredulidade. Quando o Arauto se confronta com um momento de crise, vai obviamente transmitir as informações mais disruptivas, as que causam maior resposta na sua audiência. O Arauto consegue ser divertido porque frequentemente, na ânsia de transmitir seja o que for, não confirma a origem da informação e gera rumores. Rumores atrás de rumores, tudo infundado, a provocar reações progressivamente mais viscerais nos seus ouvintes. O Arauto precisa de pôr os sinos a tocar a rebate. Mesmo da forma mais acéfala. A melhor estratégia para o Arauto é pedir-lhe para confirmar exatamente o que está a dizer. Fora isso, são aliados importantes a passar mensagens positivas. Não anunciam só a desgraça.
O Velho do Restelo
Não há serviço que não tenha um bom e velho Velho do Restelo. Para este idoso, tudo é um problema. Mesmo a solução. É fantástica a forma como consegue criar problemas atrás de problemas, num círculo mesquinho e improdutivo. Nada tem solução, nada é passível de ser resolvido, não há consenso, nem nunca poderá haver. Quando questionados sobre a sua sugestão para a resolução do problema, frequentemente não têm nenhuma. Não é por mal, é sobretudo por uma necessidade de superioridade moral. Os comuns dos mortais discutem as ideias, propostas e modificações práticas. O Velho do Restelo vê os buracos na lógica, as insuficiências, o caso raro, a exceção.
E num momento destes, em que a crise sanitária ameaça o nosso bem-estar físico e psicológico, porque não deixamos de lidar com pessoas eminentemente doentes a quem não podemos sequer tocar, o desgaste que advém de lidar com estas míticas personagens é tão maior do que o trabalho em si. Toda e qualquer discussão é longa e infrutífera. Não atingimos consensos e os dias que poderíamos dedicar à consciencialização do problema, aos preparativos, à geração de recursos extra, gastamos em discussões, diz-que-disse e acusações.
Assim não vamos lá.
Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.
Série
- Episódio 1: Os preparativos
- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão
- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa
- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)
- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros
- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete
- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo
- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19
- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?
- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem
- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?
- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?
- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?
- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?
- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?
- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?
Gostava de receber mais informações sobre este tema? Subscreva a nossa newsletter e as nossas notificações para que nada lhe passe ao lado.
Comentários