Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o nono episódio:

Vivo em Lisboa, num bairro pequeno, antigo, com casas e pessoas envelhecidas. E talvez por isso, pelo risco de doença grave em pessoas acima dos 70 anos, vivo um bocado preocupada com os meus vizinhos. Dou por mim a vigiar se estendem a roupa como antes, se vêm à rua, se conversam uns com os outros... Uma parte deles, pelo menos os vizinhos da minha rua, sabem que sou médica. Ao início acharam que eu iria abrir um consultório na rua, mas foi com grande desilusão que receberam a novidade de eu ser pediatra. Num bairro envelhecido, não sirvo para nada. Já nem sei os nomes dos anti-hipertensores e medicamentos para a diabetes mais recentes. Sou um zero à esquerda em colunas, ancas, joelhos e cataratas. Não percebo mesmo nada de pomadas várias... Aos seus olhos sou globalmente inútil, reconheço.

Mas agora, que me tornei numa espécie de ser de risco, contaminante, permanentemente a emanar miasmas pestilentos, comprovo que as pessoas acima dos 70 anos que vivem na minha rua não estão a ligar nenhuma a isto da COVID-19. Ou isso ou enlouqueceram de vez.

Não é que me cumprimentam amavelmente? Eles dizem "Bom dia", eles dizem "Boa Tarde"! Pior, sorriem-me! Por vezes, indagam pela minha saúde, pela saúde dos miúdos, perguntam como vai o trabalho, se me aguento, se as coisas estão “controladas”... Não mudam para o outro lado da rua quando estou a entrar ou sair de casa, não fogem se vou pôr o lixo à rua, não me deixam papelinhos simpáticos na caixa do correio, ou no limpa-pára-brisas do carro, a pedir para mudar de casa, pelo risco que acarreto para a sociedade. E eu estou preocupada.

Sou profissional de saúde, mas eles insistem em tratar-me como uma vizinha normal, sem medo do risco de contágio que represento

Cidadão empenhado e cumpridor que se preze,organiza reuniões de condomínio para convidar amavelmente os profissionais de saúde seus vizinhos a usar as escadas ao invés do elevador - mesmo que viva no 11.º andar - a entrar e a sair sempre pela garagem e a deixar de usar a conduta comum do lixo. Tudo esforços razoáveis para não colocar em risco a restante população que habita o imóvel.

Elemento consciencioso e zeloso do bem-estar de todos é o primeiro a deixar papelinhos na caixa de correio a indagar - amavelmente, sempre - se o senhor enfermeiro ou a senhora doutora não dispõe de outra morada para viver. Mas na minha rua, não!

Todos uns loucos, é o que vos digo! Na tarde de sábado, dia 25 de Abril, vieram cantar para a porta de casa. Todos longe uns dos outros, mas sorridentes, bem-dispostos. A gritar 25 de Abril sempre! Não me pareceram nada abatidos com o confinamento.

Por outro lado, não consigo fazer parar a solidariedade que eles naturalmente têm. E, pela calada, à traição, já me deixaram um saco de chuchus na porta. E o meu vizinho, o Sr. João, quer sempre dar-me ovos das galinhas dele. Será que devo contactar a Direção-Geral de Saúde para alertar para estes comportamentos de risco? Como é que eu faço? Limpo os ovos com lixívia? Devolvo o saco de pano em que ele mos deu? Não será arriscado?

Um dia destes o meu vizinho deu uma festa no meu cão. Foi sem querer, coitado, o cão gosta dele e estava todo contente. Não sei sinceramente o que fazer a este respeito. Denuncio-o? Mas ele pareceu-me tão satisfeito a fazer uma festinha no cão.

Disse-lhe umas cinco vezes para lavar as mãos quando chegasse a casa... Mas nunca fiando... Já o cão, não sei se lhe borrife o pêlo com álcool, se o ponha em quarentena ou se lhe dê banho. O sacana não gosta nada de banho, mas se calhar é o melhor.

Avaliando a situação em que estamos, a boa disposição, a resiliência e a amabilidade dos meus vizinhos são características surpreendentes. Sou profissional de saúde, mas eles insistem em tratar-me como uma vizinha normal, sem medo do risco de contágio que represento. Tenho muito que aprender com uma geração que já passou por dias mais negros do que estes e mesmo assim teima em não se deixar entristecer.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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