Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o décimo terceiro episódio:

Com o anúncio de abertura das creches a 18 de maio, começaram a brotar um pouco por todo o lado opiniões, comentários, análises e até cartoons humorísticos. Compreendo perfeitamente. Também olho para a reabertura das creches com muita apreensão. Não pelo SARS-CoV-2 em si, mas pela transmissão em força das restantes doenças infecciosas da infância, que ameaçam, num cenário COVID, fazer ruir qualquer estrutura de saúde.

O que vou escrever em seguida é puramente especulativo e pode muito bem vir a ser uma grandessíssima mentira, no entanto, avaliando o cenário atual, considero que a disponibilização em massa de uma vacina eficaz e segura contra o SARS-CoV-2 no último trimestre deste ano altamente improvável (gostava mesmo muito, como devem compreender, de perder esta aposta).

Não o digo de ânimo leve, nem para gerar pânico, digo-o pela constatação óbvia que, quer para o SARS-CoV-1 de 2002-2003, quer para o MERS de 2012, não dispomos, até ao momento, de qualquer vacina desenvolvida. Nem remotamente. Certo que foram surtos felizmente auto-limitados, no entanto, a investigação científica não para e já podia ter sido desenvolvida uma vacina ainda que experimental para os quatro coronavírus que até à chegada do SARS-CoV-2 infetavam humanos. Não aconteceu.

Da mesma forma, nos anos 80, aquando da identificação do vírus VIH, também havia grande otimismo no desenvolvimento precoce de uma vacina. Em 2 anos, diziam. Passaram mais de 30. Sei bem que os vírus não são remotamente parecidos, mas quero só sublinhar que, do querer uma vacina, ao tê-la disponível, podem passar meses e provavelmente anos.

Neste cenário (e não se enganem, porque este cenário está efetivamente em cima da mesa), vejo como inevitável a abertura faseada de todas as atividades. Não podemos manter o confinamento indefinidamente. Porquê o desconfinamento faseado, se o objetivo é todos entrarmos em contacto com o coronavírus e protegermos apenas os grupos de risco? Simples, porque como já vimos, os sistemas de saúde de países mais ricos e organizados que o nosso colapsaram quando enfrentam a transmissão livre do vírus. 

Neste sentido, preocupa-me muito mais que os lares passem a receber visitas do que a abertura das creches. Primeiro porque as crianças são efetivamente mais poupadas das formas graves da doença do que os adultos; segundo porque as crianças pequenas (creches e jardins infantis) pertencem a agregados familiares em idade fértil e como tal, jovens, com risco reduzido de desenvolver doença COVID-19 grave.

Em relação às recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS) para o funcionamento dos estabelecimentos de ensino pré-escolar, há de facto recomendações que fazem todo o sentido. Depois existe o folclore. Recomendar que o número de crianças por sala seja menor, que haja obrigatoriedade de espaço exterior num ratio aceitável com o espaço interior, que as crianças tenham que trocar de sapatos à entrada da escola, que não possam trazer objetos de casa e que haja cuidado de desinfeção das superfícies e objetos na sala, no refeitório e na casa de banho, parecem-me todas medidas lógicas e absolutamente fundamentais para travar a transmissão de todas as doenças na infância, não só o SARS-CoV-2. Convenhamos que não é à toa que dizemos aos pais que no primeiro ano de infantário é mais o tempo que o bebé fica em casa doente do que o tempo que o bebé está efetivamente no infantário. Também não é à toa que lhe chamamos o infetário. E não é à toa que as admissões nos serviços de urgência pediátricas de todo o país sofreram uma drástica redução no momento de confinamento. E não se iludam, não foi pelo SARS-CoV-2, foi pelo vírus sincicial respiratório, pelos enterovírus, pelo adenovírus, pelo vírus de Ebstein Barr, que, estando as crianças confinadas, também deixaram de ser transmitidos.

No entanto, a recomendação para manter a distância social das crianças em dois metros é absolutamente ridícula. De que importa estarem a almoçar ou a dormir a sesta a dois metros de distância, se depois vão querer partilhar o mesmo brinquedo? E quantos estabelecimentos vão dispor de pessoal de limpeza suficiente para higienizar todos os brinquedos das diferentes salas 2 a 3 vezes por dia?

As medidas recomendadas pela DGS são globalmente boas, não só para a época COVID-19 que vivemos, mas como regras de conduta que deveríamos observar sempre. No entanto, na minha opinião, pecaram pelo preciosismo e pelo excesso. Um excesso que as tornou caricaturáveis e incompreensíveis. E digo isto, porque, se numa primeira fase tínhamos como objetivo travar uma onda de transmissão exponencial, no momento atual, sem vacina à vista, a solução para continuarmos a funcionar em sociedade e em segurança parece ser infetarmo-nos faseadamente. Se esta ideia é tranquilizadora? Não é. Se temos outra solução? Para já não.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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