Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o décimo quinto episódio da série "Diário da trincheira: vida no covidário":

Nestes meses que se arrastam desde o início da maratona COVID-19, já tivemos tempo para tudo: já tivemos tempo para o pânico que motivou o frenesim de reestruturação dos serviços, escalas e equipas, já tivemos tempo para achar que afinal esta coisa do COVID-19 não é um problema assim tão grande, já tivemos tempo para achar que todos os circuitos já tinham sido devidamente testados e como tal, mais afinados e menos sujeitos a sobressaltos, e já tivemos tempo para perceber que, sem testes infalíveis andamos todos aqui meio às escuras, a tentar fazer o melhor possível com o que temos. Ou seja, já oscilámos entre o pólo do medo do esmagamento por uma avalanche de doentes e o pólo de sensação de que isto é tudo um bocadinho desnecessário. É assim o ser humano, ou está em luta/fuga, ou acomoda-se e faz a digestão.

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Que a nossa prática quotidiana se alterou é certo. Continuamos a entrar às mesmas horas, mas entramos por portas diferentes, sempre de máscara. Não picamos o ponto com o sistema de leitura digital, mas temos de picar o ponto no teclado do computador (corremos todos inúmeros riscos, mas chegar atrasado 10 minutos é que não!). Todos os teclados estão plastificados, num plástico que começa por ser transparente, mas que vai ficando baço à medida que se passa o gel desinfetante.

Agora andamos num veste-despe-banho-veste permanente: vestir fato quando chegamos à unidade, vestir o equipamento de proteção individual, ver o doente, despir detalhadamente o equipamento de proteção individual, banho, mudança de fato, repete. 

Despir o equipamento de proteção é sempre um processo cuidadoso, visto que é aqui que reside o maior risco de contágio. Entre a remoção de cada item, está preconizada a desinfeção e mudança de um segundo par de luvas. É suposto durar entre 10 a 15 minutos. Se o fizermos a despachar, em 2 minutos, certamente que estaremos contaminados. E é isso que mais tememos: estarmos contaminados, não sabermos porque não temos sintomas nenhuns e contaminarmos doentes e colegas indiscriminadamente. Essa é a parte difícil do trabalho: manter os hospitais estanques!

Os profissionais de saúde estão mais expostos ao contágio no seu local de trabalho, mas são pessoas que vão ao supermercado como qualquer comum dos mortais. Quando nos infetamos, somos naturalmente um foco de propagação da doença. O que, no nosso caso, representa um risco acrescido de contagiar doentes hospitalizados por outros motivos e colegas de trabalho que são igualmente precisos para prestar cuidados.

Como imaginam, o processo de proteção individual que não é mais do que o processo de proteção de todos (equipa e doentes) é demorado e nada compatível com o cenário que mais tememos: a reanimação de um doente.

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Quando isto acontece, com a premissa de iniciar o processo de reanimação em menos de seis minutos, para garantir uma boa perfusão cerebral, damos por nós em cenários impossíveis. A primeira vez que nos aconteceu uma situação destas, precipitamo-nos sobre um doente suspeito com o equipamento de proteção mais básico. Tivemos de repensar a nossa atuação. Nada é como antigamente.

Se um doente está em paragem cardiorrespiratória e ninguém está equipado, o movimento óbvio – e que nos preparamos para desempenhar até à chegada da COVID-19 – é assistir o doente! Agora, calma, alguém tem de se equipar minimamente, iniciar manobras, enquanto a restante equipa se prepara. Tudo uma questão de ritmo, de prioridades, de artificialidade. E de banhos, muitos banhos à mistura. Ao início é sério, depois, com o tempo, é quase cómico, mas no permanente veste-despe-banho-veste, um doente descompensa e saio disparada da casa-de-banho com o cabelo a pingar e sem meias. Nunca tinha pensado nisto, mas passei a hierarquizar a cada momento as minhas atitudes: a prioridade é tomar banho rápido, vestir (e calçar…) rapidamente e depois logo se vê se há tempo para desenriçar o cabelo depois de lavado.

E depois temos outro problema: como é que fazemos o nosso trabalho ataviados como se fôssemos apicultores? Já escrevi sobre todos os níveis de desconforto físico que o equipamento de proteção individual provoca, mas não escrevi sobre o olhar dos doentes.

Os miúdos são globalmente incríveis e geralmente, em menos de 30 segundos, percebem para onde têm de olhar. E sim, os olhos falam e falam muito. Também escrevemos os nossos nomes nos equipamentos, para os que sabem ler. E fazemos muitas apresentações, porque somos todos iguais. Os pais das crianças frequentemente não sabem com quem falaram. Vestimos todos de verde ou todos de astronautas. É confuso, percebemos. Até para nós!

Com o equipamento não conseguimos auscultar os doentes e ouvimo-nos mal uns aos outros. Os ruídos do coração e do pulmão deixaram de nos servir de linhas condutoras. O estetoscópio não serve para nada. Entre nós, repetimos as informações inúmeras vezes, numa ânsia confirmatória, não vá haver mal-entendidos. A comunicação é mais lenta, abafada e insegura.

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E depois sabem o que é o pior? É não conseguir dar respostas inequívocas aos pais. Sabemos pouco deste vírus, as poucas regras que aprendemos vieram dos adultos e as crianças são sempre um mundo um bocado à parte. E custa não ter respostas claras e concisas: ele vai ficar bem? – parece que sim, mas não sabemos, pelo que vamos vigiar. Será que esta resposta ajuda alguém? Será que consegue tranquilizar os pais? Onde é que ele apanhou isto, se temos estado em casa? Pois, não sabemos. Pode ser um de vós a ter transmitido… Quanto tempo é que ele vai ficar doente? Provavelmente duas semanas, mas pode levar mais tempo até eliminar o vírus. Quantas semanas até o teste vir negativo? Bem, não sabemos… Há doentes que têm testes negativos que voltam a ficar positivos.

E sendo a medicina uma ciência já de si incerta, o atual desconhecimento factual sobre o vírus SARS-CoV-2 gera uma justificada ansiedade nos pais e profissionais. À parte de todas as incertezas e lacunas do nosso conhecimento, lidamos ainda com desafios acrescidos. Não têm sido tempos fáceis.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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