Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros! Não pela visibilidade daquilo que fazem ou pelo risco que correm. Mas precisamente pelo inverso disto: frequentemente há heróis, que por correrem menos riscos – mas ainda assim, correndo - não têm visibilidade nenhuma. Como médica, a minha função está mais ou menos estabelecida junto do doente. O mesmo se passa com a enfermagem. No entanto, doentes, médicos e enfermeiros habitam num sistema que precisa de ser organizado e limpo. E aqui entram os auxiliares de ação médica e o pessoal de limpeza. Sem eles não teríamos mãos suficientes para tudo.

Vou dar-vos um exemplo: imaginem o que é transportar um doente em isolamento por suspeita ou confirmação de infeção com SARS-CoV-2 para a realização de um exame complementar de diagnóstico. Somos uma equipa para o transporte porque são precisas mãos para segurar doente, cama, ventilador, drenagens e perfusões. E este esforço de coordenação não é fácil. Vamos no mínimo 3 pessoas: um médico, um enfermeiro e um auxiliar de ação médica.

Mas não acaba aqui: para sairmos do serviço, precisamos de luz verde da segurança, que vai garantir que o corredor que iremos percorrer está livre de pessoas. Isto implica fechar momentaneamente a circulação num setor do hospital. Adicionalmente, ao percorrermos um corredor com os nossos fatos de proteção, à cabeceira de um doente infetado, há uma equipa de limpeza que vem a limpar atrás de nós, para permitir que a circulação se restabeleça. Conseguem imaginar o esforço?

Chegando ao destino, temos uma equipa que recebe o doente, mas que tenta, naturalmente, não interagir directamente com ele. No caso dos doentes instáveis, isso implica que a equipa médica e de enfermagem que faz o transporte, fique à cabeceira do doente sempre.

E depois, temos que regressar. Isto implica inverter tudo o que fizemos até ao momento. Novamente pedimos luz verde à equipa de segurança para circular e, novamente, uma equipa de limpeza acompanha os nossos passos para garantir um ambiente seguro no hospital.

Isto exige um esforço de coordenação considerável. Circuitos que não sendo fáceis, tornam-se dependentes de uma grande engrenagem de fatores de segurança. Tudo se torna mais lento, mais pesado, mais difícil.

E nunca a equipa de limpeza foi tão relevante. Temos a grande vantagem de contar com uma equipa relativamente estável - ao invés de uma subcontratação de elevada rotação - que higieniza todos os nossos circuitos e garante que a parte “limpa” de COVID-19 do serviço seja efetivamente “limpa”.

Sem esta equipa teríamos problemas sérios de contaminação cruzada dos espaços e superfícies. São absolutamente vitais para conseguirmos fazer o trabalho que fazemos. E ganham mal. Para o risco que correm, ganham desumanamente mal. Não há forma simpática ou eufemística para dizer isto. E a nossa segurança (nossa: doentes, médicos e enfermeiros) depende grandemente da sua acção. Acham que não é de valor limpar de forma sistemática todos os interruptores e puxadores das portas da unidade onde trabalho? Ou desinfetar o chão inúmeras vezes por dia? A minha segurança como profissional de saúde e a vossa segurança como doentes dependem de pequenos gestos como estes. Sim, custa a acreditar, mas vivemos numa cadeia complexa em que TODOS os contributos são importantes.

Sabemos que a saúde não tem preço, mas a ter, que seja digno. Aquilo que se passa com os vencimentos dos trabalhadores de limpeza, auxiliares de ação médica, enfermeiros (os insultuosos 7,42 euros/hora) e médicos (e sim, assumo bem aquilo que digo, por muito que encham a caixa dos comentários a dizer que ganhamos milhões e não queremos fazer nenhum) é, no mínimo questionável. Pelo menos a mim, parece-me francamente injusto. Mas, pelos vistos, não será uma preocupação para os deputados com assento parlamentar, cuja esmagadora maioria chumbou uma medida de incentivo remuneratório aos profissionais de saúde.

Somos heróis e tal, mas pouco. Tenham lá calma. Somos heroizinhos, vá. Numa semana, servimos de saco de pancada, por culpa de um sistema de saúde depauperado que não dá verdadeiramente resposta à população. Na semana seguinte, são palminhas à janela. No fundo, os profissionais de saúde pertencem a uma classe do show business: palmas na cara ou à varanda é só uma questão de estratégia, o que importa é que haja ruído! Por aqui vos digo, o show continuará a estar on.

Por fim, uma palavra de profundo e sincero agradecimento à equipa de limpeza da unidade onde trabalho. O nosso esforço não teria significado sem o vosso.

Próximo episódio: Há mais vida (e morte) para além da COVID-19.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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