Li esta semana que uma directora técnica de uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) trocou o gabinete pelo uniforme de auxiliar de ação direta, assumindo um turno da noite. Fê-lo não por vaidade ou caridade, mas porque simplesmente não havia equipa suficiente para assegurar os cuidados essenciais. Este gesto, ao mesmo tempo simbólico e prático, diz muito sobre o estado atual dos cuidados em instituições de saúde ou de cariz social – e sobre o desgaste silencioso de quem trabalha por turnos, tantas vezes esquecido nas decisões políticas.
Este episódio não é isolado. Pelo contrário, é reflexo de uma realidade que se repete diariamente em lares, hospitais e unidades de cuidados continuados: falta pessoal, é cada vez mais difícil contratar, e há um esgotamento transversal que leva muitos profissionais a saírem ou a recorrerem a baixas médicas, por vezes em contextos limite.
Trabalhar por turnos implica uma exigência física, emocional e social imensa. Dormir de dia, perder fins-de-semana, trabalhar em feriados e estar ausente nos momentos-chave da vida pessoal são realidades que afectam profundamente quem trabalha na área da saúde. No entanto, a compensação – tanto financeira como em reconhecimento – raramente reflecte este esforço.
Pior: proliferam situações em que se banalizam as baixas médicas como forma de “recuperar folgas” não dadas, ou de escapar a horários desumanos. Isto não acontece por preguiça, mas porque muitos profissionais chegam ao limite. E quando se chega a esse ponto, algo está profundamente errado na forma como o sistema está desenhado.
A atitude da directora técnica, que vestiu a farda e assegurou o turno da noite, é admirável – mas não devia ser necessária. Não é sustentável nem justo que cargos de gestão tenham de colmatar falhas operacionais básicas. A mensagem que nos deve ficar não é apenas a do exemplo, mas sim a da urgência de mudar políticas e reforçar o apoio a quem garante os cuidados de proximidade.
Se queremos um sistema de saúde e de cuidados que funcione, temos de agir em várias frentes:
– Valorizar financeiramente o trabalho por turnos, com acréscimos justos e diferenciados que reflitam o sacrifício pessoal envolvido;
– Estabilizar vínculos laborais, acabando com a precariedade que impede a criação de equipas coesas e motivadas;
– Garantir condições dignas de descanso e planeamento de horários, com folgas suficientes, previsibilidade e respeito pela vida pessoal;
– Investir em saúde mental dos profissionais, com apoio psicológico acessível e contínuo;
– Rever a cultura institucional, promovendo ambientes onde pedir ajuda, reorganizar turnos ou mostrar vulnerabilidade não seja visto como sinal de fraqueza, mas de responsabilidade.
O discurso da “vocação” e da “resiliência” tem sido usado vezes demais para justificar condições de trabalho que nenhuma profissão deveria aceitar. Chegou o momento de tratar quem cuida com a mesma atenção e humanidade que exigimos nos cuidados prestados aos utentes.
Sem profissionais motivados, descansados e respeitados, não há sistema que resista – seja na rede pública, social ou privada. E isso deve preocupar-nos a todos: dirigentes, políticos, utentes e famílias. Não é apenas uma questão de gestão, é uma questão de dignidade.
Que o gesto desta directora técnica nos sirva de alerta – e de apelo. Porque ninguém aguenta um turno eterno sem reconhecimento, sem condições, e sem fim à vista.
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