Se há assunto que não deixa de ser falado 24h/dia, 7 dias por semana, em todos os canais noticiosos é a progressão da pandemia ao vírus SARS-CoV-2. Todos os dias, a Diretora-geral de Saúde com a Ministra da Saúde emitem um boletim númerico da evolução do contágio da país. A tutela encerrou as escolas até dia 9 de abril e decretou estado de emergência nacional. Se isto não é pôr os sinos a tocar a rebate, não sei certamente o que será.
Por isso, é com absoluta repugnância que assisto na televisão ao engarrafamento no tabuleiro da ponte 25 de abril em plena tarde solarenga de sábado. Que seja preciso que a polícia faça uma operação STOP para demover o mais comum dos mortais de ir apanhar um bocadinho de sol à praia é absolutamente chocante. Somos um país de brandos costumes, de dar uma no cravo e outra na ferradura, de gente sem a mínima espinha dorsal para assumir a necessidade de manter o isolamento social. Vergonha! Tenham vergonha!
Querem perceber exactamente porque é que a infeção pelo vírus SARS-CoV-2 é complicada? Trata-se de um vírus completamente novo, para o qual não dispomos de um tratamento dirigido, nem vacina protectora. Não, não é como a gripe. E é justamente isto que gostaria de vos explicar.
Olhando para o caso italiano, sabemos que por ano, em Itália, morrem 10.7 pessoas em cada 1.000 habitantes. Para um país com 60 milhões de habitantes, são expectáveis 640 000 mortes anuais, a um ritmo médio de 12.300 mortes por semana. O facto de, desde 15 de fevereiro (aproximadamente), terem falecido um número extra de 10 000 pessoas, significa que a taxa de mortalidade aumentou 12%.
Para compreenderem o impacto disto, vamos comparar justamente com o vírus da gripe: em 6 meses de surto anual (nos países temperados, como Itália e Portugal, é expectável que exista gripe entre novembro e abril), estimamos um aumento da mortalidade que ronda os 15%. O que a COVID-19 fez em Itália em seis semanas, sem ter acabado ainda o surto, é o equivalente ao que faz a gripe em 6 meses.
O que nos separa do total colapso do sistema sanitário é tão e somente o comportamento da população
Percebem porque é que um surto desta natureza consegue colapsar qualquer sistema de saúde, por muito avançado e evoluído que seja? Não se iludam, as condições sanitárias no norte de Itália e em Espanha são globalmente superiores às condições portuguesas. Reparem: em Itália existem 12 camas de cuidados intensivos para cada 100.000 habitantes. Em Portugal temos 4. Não há forma, a não ser através do abrandamento do contágio, de lutarmos contra isto.
Mas, se ainda não estão convencidos que o vírus SARS-Cov-2 não é uma simples gripe, posso continuar a esgrimir argumentos: apenas entre 10 a 12% dos doentes com gripe desenvolvem pneumonia/ doença moderada a grave. Esta realidade atinge os 18% para o vírus Sars-CoV-2.
Lembram-se do caos provocado em 2009 pelo aparecimento da famosa gripe A (H1N1)? Atualmente a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a taxa de mortalidade da gripe A seja 0,02%. A mortalidade global estimada para a doença COVID-19 é estimada entre 1,7-2,1%. E para os doentes acima dos 70 anos, a taxa de mortalidade ronda os 8%.
Se eu não consigo compreender porque é que as pessoas acima dos 70 anos continuam a sair à rua para beber um cafezinho, ou fazer uma caminhada, ou ir ao supermercado comprar 2 ou 3 items só porque sim, muito menos consigo compreender as pessoas de 30 anos que agem como se nada fosse. Como se não pudessem ser infetados (sabem que há óbitos abaixo dos 30 anos, ou não?) e continuar a transmitir a doença. Será que não pensam que o seu comportamento é um risco evidente para os outros?
Como é que uma Provedora de Justiça se acha no direito de terminar a quarentena a quem, proveniente de outro país devastado pela pandemia, regressa agora, na Páscoa, para as aldeias envelhecidas do interior do país? Estamos a brincar aos brandos costumes? Estamos a brincar às meias medidas?
Por isso, tenho muita dificuldade em compreender como é que uma população de um país pequeno, pobre, mal governado, recentemente alvo de resgate económico, não age em conformidade com a real ameaça que esta pandemia representa. O que nos separa do total colapso do sistema sanitário é tão e somente o comportamento da população. Dinheiro não há, camas extra não existem, as equipas médicas não se multiplicam, nem as omoletes se fazem sem ovos e os famosos 20.000 ventiladores chineses ainda não chegaram. Restamos todos nós! Qual é a parte do risco que não conseguem compreender? Querem que, como médica, vos trate a 50% daquilo que é recomendado? Ou que, caso entrem em insuficiência respiratória, providencie suporte ventilatório apenas 12 horas por dia?
Qual é a parte da recomendação "fiquem em casa" que não compreendem?
Um artigo da médica pediatra Joana Martins.
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