Este é um texto que tenho tido alguma dificuldade em escrever. Nós, os profissionais de saúde, também temos medo. Vou enumerar os meus medos. Reparem, não são os medos da classe médica – não ouso sequer falar em nome de uma classe tão desunida e fragmentada como a nossa – são os MEUS medos.

Tenho medo de não conseguir reconhecer a doença grave. Durante os anos em que trabalhei diretamente no balcão de uma urgência, esse medo era uma constante. Uma espécie de grilo falante no meu ouvido: "será que estás a perceber o que se passa com este miúdo?", "será que aquilo que a mãe está a dizer tem razão de ser? Ou estará a exagerar?", "será que não estou a mandar uma miocardite para casa?", "será que esta barriga não vai ser uma apendicite aguda daqui a 8 horas?".

Este medo é real. Medo de errar. Não me paralisa, mas ativa de forma permanente um estado de alerta. Mesmo aparentemente calma, ele está lá. A verdade é que com o tempo, passei a tolerar melhor este medo, passei a tolerar atenuantes (como por exemplo "se ele piorar, tem que voltar para reavaliarmos"), passei a aceitar que não sou a médica assistente de toda a gente da família, que não tenho que responder a tudo, passei a aceitar que há coisas que não consigo controlar minimamente. Em todos os setores da minha vida, mas sobretudo na minha vida profissional.

É uma profissão que mete um bocadinho de medo. Não dá muitas segundas oportunidades. O erro paga-se caro

Quando passei a fazer medicina intensiva, o medo de errar intensificou-se: são muitos detalhes a ter em conta. Entre os líquidos que entram e saem, os alarmes dos ventiladores, os antibióticos que fazemos, as drogas para manter a tensão arterial, os métodos de substituição renal. Tudo um mundo de assuntos a dominar. Incerteza, estudo, resposta, incerteza, estudo, resposta. Um ciclo sem fim à vista. É o que é. É a profissão.

Depois tenho o medo de falhar tecnicamente: o medo de não conseguir colocar o acesso vascular que preciso, o medo de falhar na entubação da via aérea, o medo de não conseguir ventilar o doente apesar da estratégia ventilatória, no meu entender, estar optimizada. Pois, é uma profissão que mete um bocadinho de medo. Não dá muitas segundas oportunidades. O erro paga-se caro.

Por fim, tenho medo pela minha integridade física. Quando comecei o transporte de doentes críticos, lembro-me perfeitamente da sensação de estar de pé na parte detrás de uma ambulância, em cima da faixa da esquerda da Ponte 25 de abril. Tudo dançava. Tudo escorregava. A ambulância é alta e instável, o chão fazia barulho, íamos rápido, o som das sirenes por cima das nossas vozes. Tive medo. A hipótese de um acidente não era assim tão remota.

Tal como tive medo quando recebi uma sépsis meningocócica no serviço de urgência. Estava grávida. Não queria dizer a ninguém no trabalho. Mas quando o miúdo entrou, nem me lembrei. Só quando fui chamada a fazer a medicação preventiva de contágio pós-exposição é que tive que dizer que não podia fazer a primeira linha de tratamento. Ainda me lembro do raspanete que levei da minha obstetra - "Então tu estás parva? Foste fazer o quê? Não havia mais ninguém para receber o doente?" - que sendo uma pessoa globalmente fofinha, ralhou comigo como a minha mãe ralharia. Ou pior. Porque tinha mesmo razão.

E é aqui que chegamos à pandemia pelo vírus SARS-CoV-2. Se tenho medo de ser infetada? Claro que sim. Se esse medo me paralisou? Claro que não. E porquê? Seguramente não foi por me sentir acima do comum dos mortais. Foi porque sinto que estou num ponto de enorme privilégio. Reparem, ao trabalhar num ambiente hospitalar altamente controlado, de porta fechada ao público, que recebe apenas os doentes muito graves, sei, à partida, quem é suspeito, quem não é. E tenho oportunidade de me equipar e proteger devidamente. Não há espaço para o laxismo ou para o optimismo infundado (do tipo: "isto não parece nada COVID-19").

Por isso, admito que a minha realidade é distante da dos meus colegas que vêem doentes sem proteção adequada, que têm viseira mas não têm máscara, que têm máscara mas não têm luvas. Eu tenho tudo. E a preparação combate o medo.

E compreendo os ajustes que têm que ser feitos: se não tenho material de proteção, devo auscultar o doente? Ver a garganta? E se o doente tosse para cima de mim? (O que na pediatria, meus amigos, é certo como os impostos e a morte...). Até que ponto, ao me proteger, estou a comprometer a minha capacidade de diagnóstico e, como tal, a errar mais? Como conviver com o medo de contágio e o medo de errar?

Por isso sim, compreendo o medo dos profissionais de saúde. Compreendo a solidão de sentir que não existe uma barreira eficaz entre o que fazemos profissionalmente e o risco de contágio. Compreendo que fazemos o melhor que sabemos, enquanto podemos.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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