
A partir da premissa de que uma biblioteca, um café literário, uma casa-museu ou um guia-intérprete podem ser pontos de partida para experiências únicas, as investigadoras Sílvia Quinteiro e Maria Mota Almeida defendem um turismo literário que não instrumentaliza a obra literária, mas que a usa como ponto de encontro entre leitores e viajantes, comunidades e visitantes, passado e presente.
Mais do que um conjunto de paragens, um itinerário literário bem concebido pode ser uma experiência educativa e sensível, transformadora para quem o percorre. Em entrevista, Sílvia Quinteiro e Maria Mota Almeida sublinham a capacidade descentralizadora do turismo literário, mostrando como territórios menos visíveis podem ganhar voz e reconhecimento através das histórias que os habitam. Também se detêm sobre as qualidades do livro que agora nos oferecem à leitura: Turismo Literário – Construção e Exploração de Roteiros (edição Pactor) apresenta-se como um guia prático e acessível, pensado para ajudar profissionais, estudantes, professores, autarquias e agentes culturais a desenhar e dinamizar roteiros literários com qualidade e criatividade.
São investigadoras com percursos sólidos e distintos, mas encontraram neste tema e neste livro um lugar de convergência de interesses e investigação. Gostaria de perceber como nasceu este projeto.
Sílvia Quinteiro - Este projeto nasceu de uma confluência natural entre percursos distintos, mas com afinidades profundas. Sendo ambas investigadoras do grupo LIT&TOUR, há muito que partilhamos questionamentos, metodologias e objetivos em torno do turismo literário, o que tornou inevitável este encontro de ideias e de práticas. Cada uma de nós traz consigo uma bagagem própria, que vai da literatura comparada à história e à mediação cultural, passando pelos estudos de território e de turismo. A ideia deste livro foi tomando forma ao longo do tempo, a partir de conversas informais, leituras partilhadas e, sobretudo, da prática acumulada ao longo dos anos: na investigação que temos desenvolvido, na criação e acompanhamento de roteiros literários em diferentes contextos e enquanto docentes nesta área. Esse percurso permitiu-nos reconhecer uma lacuna ao nível da sistematização metodológica. Foi dessa constatação que nasceu o livro, como resposta a essa necessidade.
Não obstante ser hoje uma expressão recorrente, o “turismo literário” pode ainda soar com alguma estranheza aos leitores. Que imagem gostariam que os leitores guardassem quando ouvem este termo?
Maria Mota Almeida - Gostaríamos que os leitores guardassem do termo "turismo literário" a imagem de uma experiência enriquecedora, que vai muito além de uma simples visita turística. Desejamos transmitir a ideia de uma vivência profunda, na qual o território, a literatura e as comunidades locais se entrelaçam e se valorizam mutuamente. Nesse tipo de turismo, o visitante não descobre apenas lugares, imergindo também nas histórias e nos modos de vida que moldam tanto a geografia como a produção literária da e sobre a região. Trata-se, portanto, de uma experiência de qualidade, que promove o conhecimento, o respeito e o envolvimento genuíno com o lugar e com as suas narrativas.

No livro, recordam-nos que esta ligação entre literatura e viagem não é de agora. Há algum exemplo notável que queiram destacar? O que o distingue das atuais viagens literárias?
Sílvia Quinteiro - Certamente. Um exemplo notável destacado no livro é o das viagens de Petrarca ao sul de Itália, motivadas pela leitura da obra de Virgílio. Mais do que uma simples deslocação geográfica, tratava-se de uma viagem movida pelo desejo de comunhão entre texto, memória e paisagem.
Este exemplo distingue-se das atuais viagens literárias sobretudo pela sua natureza contemplativa e erudita. Não havia ainda uma lógica turística organizada, nem uma intenção de promover produtos ou experiências culturais para públicos diversos. Era o impulso individual, profundamente enraizado na leitura e no imaginário clássico, que levava à viagem. Se hoje seguimos itinerários literários estruturados, Petrarca procurava, na paisagem, a materialização do texto e, nesse gesto, inaugurava uma forma de relação com o território que continua a inspirar a prática do turismo literário.
Gostaríamos que os leitores guardassem do termo 'turismo literário' a imagem de uma experiência enriquecedora, que vai muito além de uma simples visita turística.
No livro, distinguem vários tipos de roteiros — uns partem de autores, outros de lugares, outros ainda de filmes ou poemas musicados. Querem, de forma sucinta, revelar-nos este mundo tão diverso?
Maria Mota Almeida - Tendo este livro um propósito pedagógico e didático, procurámos apresentar um conjunto de exemplos que ilustrasse a diversidade de possibilidades na conceção de itinerários literários, sem qualquer pretensão de os esgotar. A ideia foi dar a ver a riqueza e a versatilidade do turismo literário, mostrando que um itinerário pode nascer da vida e obra de um autor, de um lugar específico e das suas múltiplas camadas narrativas, de textos poéticos ou narrativos, de adaptações audiovisuais ou ainda de poemas que ganharam nova vida ao serem musicados, entre outros. Ao reunir esta variedade de casos, quisemos fornecer uma base sólida para reflexão, experimentação e criação, abrindo caminho a abordagens tão criativas quanto rigorosas no trabalho com literatura e território.
Há quem olhe com alguma reserva para esta aproximação entre livros e turismo, como se a literatura corresse o risco de ser instrumentalizada ou simplificada. Como respondem a esse ceticismo? E como se protege a profundidade literária no contexto de um roteiro turístico?
Sílvia Quinteiro - Compreendemos esse ceticismo, e é precisamente por reconhecermos a complexidade dessa aproximação entre literatura e turismo que dedicámos, no livro, uma secção aos que consideramos ser os “Princípios Fundamentais” para a construção e exploração de itinerários literários. Acreditamos que a melhor forma de proteger a profundidade literária neste contexto é trabalhar sempre com rigor e respeito, tanto pelos textos como pelos lugares e pelas comunidades envolvidas.
Um itinerário literário não deve simplificar nem instrumentalizar a obra, mas antes abrir espaço para novas leituras, experiências significativas e formas de mediação cultural exigentes. Quando bem concebido, pode ser uma poderosa ferramenta educativa e interpretativa, capaz de aproximar públicos da literatura de forma crítica e sensível, sem perder de vista a sua complexidade.

Uma das ideias mais fortes do livro que nos oferecem prende-se ao facto de a literatura poder transformar o modo como olhamos para um lugar. Como se escreve — e vive — um roteiro literário que ajude o viajante a ver com outros olhos? Há algum exemplo que gostariam de destacar?
Maria Mota Almeida - O Itinerário Literário do Ameixial, integrado na Rota Literária do Algarve, é um exemplo de como a literatura pode transformar profundamente o modo como se olha para um lugar. Trata-se de uma pequena localidade do interior algarvio que, à partida, não seria associada à literatura, mas que, à luz da narrativa criada para o efeito, ganha uma densidade simbólica e afetiva inteiramente nova.
Através da ficção, da evocação de memórias e de referências ao território, o itinerário convida o viajante a ver com outros olhos aquilo que poderia parecer apenas um destino rural ou periférico. Os espaços, as vozes e as paisagens são ressignificados por uma narrativa que não impõe uma leitura única, mas propõe uma vivência sensível, enraizada na escuta e na atenção ao lugar. É este cruzamento entre texto e território, entre imaginação e realidade, que permite que o roteiro literário seja mais do que uma visita guiada, uma experiência transformadora.
Um itinerário literário não deve simplificar nem instrumentalizar a obra, mas antes abrir espaço para novas leituras, experiências significativas e formas de mediação cultural exigentes.
É usual dizer-se que o turismo literário é para “quem gosta de livros”. Mas o vosso livro sublinha que o público é muito mais diversificado. Quem são os leitores-viajantes? E como se adapta um roteiro às suas motivações tão diferentes?
Sílvia Quinteiro - Quem gosta de livros é, naturalmente, um público privilegiado e recetivo ao turismo literário, mas está longe de ser o único. No livro sublinhamos precisamente que os leitores-viajantes são muito diversos, abrangendo desde leitores experientes e apaixonados por literatura até estudantes, turistas culturais ou simples visitantes que aderem a um itinerário por curiosidade, sem conhecerem previamente a obra, e que, muitas vezes, partem dessa experiência para a leitura.
Adaptar um roteiro a motivações tão diferentes exige sensibilidade e versatilidade na conceção das propostas. É possível criar percursos que dialoguem com vários níveis de leitura, que combinem informação acessível com interpretações mais profundas e que ofereçam experiências significativas mesmo a quem chega sem bagagem literária. A chave está em criar dispositivos de mediação que estimulem a curiosidade, envolvam emocionalmente e despertem o desejo de saber mais sobre o texto, o autor e o lugar.
A obra oferece-nos ferramentas práticas — desde fichas de inventariação até modelos de percurso. Este é um guia útil, por exemplo, a uma autarquia, a uma escola, ou até a uma pequena livraria local que procure valorizar-se? De que forma?
Maria Mota Almeida - Sim, sem dúvida. Um dos principais objetivos deste livro foi precisamente tornar a construção de itinerários literários acessível a todos. Oferecemos, por isso, ferramentas práticas, como fichas de inventariação, modelos de percurso e exemplos concretos, que podem ser facilmente adaptados a diferentes contextos e escalas. A ideia foi construir um guia que alia fundamentação teórica a uma forte orientação prática, permitindo que qualquer entidade interessada possa identificar o potencial literário do seu território e traduzi-lo num itinerário coerente, atrativo e bem fundamentado.

Referem que o turismo literário pode descentralizar a atenção — tirar os holofotes de Lisboa e Porto e levá-los a outros lugares. Têm sentido essa mudança no terreno? Se sim, podem deixar-nos alguns exemplos?
Sílvia Quinteiro - De facto, o nosso objetivo não é retirar os holofotes de Lisboa e do Porto, cidades incontornáveis no panorama literário nacional, mas sim contribuir para que esses holofotes iluminem também um conjunto mais vasto de territórios, dentro e fora dos grandes centros urbanos. O turismo literário tem precisamente essa capacidade: a de valorizar lugares menos visíveis sem desvalorizar os que já têm reconhecimento, promovendo uma leitura mais ampla e inclusiva do território. Acreditamos que o turismo literário pode, e deve, contribuir para um olhar mais equilibrado e plural sobre o território.
Um dos principais objetivos deste livro foi precisamente tornar a construção de itinerários literários acessível a todos.
O livro termina com um conjunto de recomendações muito sensatas: diversidade, sinalética, acessibilidade, ligação à comunidade. Mas, para além da técnica, o que é essencial para que um roteiro literário toque quem o percorre? O que o torna memorável?
Maria Mota Almeida - Para além da técnica, que é, sem dúvida, importante, acreditamos que o que torna um roteiro literário verdadeiramente memorável é o amor que se coloca no trabalho. Amor ao território, à literatura e às gentes que nele habitam ou habitaram, e que, de algum modo, atravessam a narrativa proposta.
Um itinerário literário bem-sucedido é aquele que nasce de um olhar atento, de um compromisso afetivo e ético com o lugar e com os textos que o iluminam. Quando há essa entrega, essa escuta e esse cuidado, o percurso deixa de ser apenas um conjunto de paragens e passa a ser uma experiência significativa, capaz de tocar quem o percorre e de despertar novas formas de ver, sentir e compreender. É esse vínculo sensível, que não se ensina, mas se sente, e que faz toda a diferença.
Há algum livro, autor ou obra literária nacional ainda não explorada em termos turísticos e que, em vosso entender, merecia essa abordagem?
Sílvia Quinteiro - Há imensos, felizmente, e não queremos ser injustas ao destacar apenas alguns. Sentimos, até pelos trabalhos produzidos pelos nossos estudantes, que começa a haver uma maior diversificação e uma preocupação crescente em valorizar escritores menos divulgados, bem como em trabalhar a literatura a nível regional e local.
Isso é particularmente estimulante, porque mostra que o turismo literário não precisa de se limitar aos nomes consagrados ou às obras mais conhecidas. Pelo contrário, há um enorme potencial em autores que escreveram a partir, e para, os seus territórios, e que podem ser redescobertos através de roteiros sensíveis e bem fundamentados. O desafio está precisamente em continuar a alargar esse olhar e a reconhecer, na diversidade literária nacional, oportunidades para novas formas de fruição, valorização e partilha.
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