Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o décimo sétimo episódio da série "Diário da trincheira: vida no covidário":
Muitos relatos de doença COVID-19 grave têm surgido um pouco por todo o lado na imprensa. Por um lado, relatos de crianças que requerem apoio ventilatório, por outro, a tal “misteriosa” Doença de Kawasaki que muito tem inquietado a população, quer pelo seu nome exótico, quer pela dificuldade em explicar concretamente a sua causa. Assim, temendo ser um pouco simplista, tentarei explicar as diferenças entre as duas situações.
Numa primeira fase, quando surgiram relatos de infeção a SARS-CoV-2 na cidade de Wuhan e posteriormente em toda a província de Hubei, rapidamente ficámos com a ideia de que a população pediátrica era relativamente poupada. Proporcionalmente ao número de doentes adultos testados, as crianças correspondiam a uma estreita fatia da população doente. Daqui surgiu a perspetiva de que as crianças pudessem de facto ser maioritariamente assintomáticas quando em contacto com o vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Foram adiantadas algumas explicações para este fenómeno, desde a expressão de menor número de recetores virais no revestimento do aparelho respiratório das crianças, até à diferença do tipo de resposta imunitária que desenvolvem quando em contacto com o vírus.
No entanto, o que os relatos de grandes números de casos pediátricos sempre indicaram é que havia um grupo de risco identificado para a doença grave. Esta doença grave parece afetar 0,5 a 2% de todos os casos sintomáticos, testados e comprovados de COVID-19, e caracteriza-se sobretudo por insuficiência respiratória com necessidade de suporte ventilatório. O grupo de risco é composto por crianças com menos de um ano de idade e por crianças com patologia crónica prévia, sobretudo patologia respiratória, cardiovascular, doentes complexos com doença genética suspeita ou confirmada e doentes imunossuprimidos (sobretudo os doentes oncológicos sob quimioterapia). Por patologia respiratória crónica, assume-se patologia severa e não casos ligeiros de sibilância recorrente ou asma ligeira.
Sempre soubemos que estes doentes iriam existir, mas, comparando com o universo dos adultos, seriam uma raridade.
No entanto, nas primeiras semanas de maio, atingimos uma segunda fase de compreensão da pandemia COVID-19. Surgiram os primeiros relatos, inicialmente no Reino Unido e depois com ecos por toda a Europa, Estados Unidos da América e Canadá, de uma síndrome hiperinflamatório cuja incidência e características não estão devidamente caracterizadas.
Em comparação com a COVID-19 severa, não são propriamente doentes com dificuldade respiratória a quem tem de ser primariamente oferecido suporte ventilatório. As manifestações clínicas da doença são diferentes, com uma febre que se mantém durante 4 a 5 dias, manchas no corpo que são muito semelhantes às manchas que ocorrem numa doença com um nome esquisito que passámos a conhecer que se chama Doença de Kawasaki, sintomas gastrointestinais, como náuseas, vómitos e diarreia, mas sobretudo uma evolução clínica bastante severa, com instabilidade da circulação sanguínea e necessidade de fármacos para estabilizar a tensão arterial que requer uma intervenção atempada e intensiva.
O que distingue esta doença hiperinflamatória (ou Síndrome Hiperinflamatório ou Doença Kawasaki-like) da doença grave por COVID-19 é precisamente o momento em que ela surge. Enquanto que a doença COVID19 grave surge ainda com as crianças a testarem positivas para a presença do vírus SARS-CoV-2 nas suas secreções respiratórias, na doença hiperinflamatória, não só as crianças testam negativo para o vírus SARS-CoV-2, como apenas 30% demonstram uma espécie de cicatriz imunitária que indica que, algures nas últimas 4 a 6 semanas, tiveram contacto com o vírus.
Isto não é fácil de explicar, no entanto é como se tivéssemos uma doença aguda desencadeada pela infeção viral (a doença COVID-19 grave) e tivéssemos outra doença grave, 4 a 6 semanas depois, motivada não pelo vírus em si, mas pelo estabelecimento de um modo de funcionar anómalo do nosso sistema imunitário.
Como é que o vírus SARS-CoV2 interfere com esta regulação da função imunitária não sabemos, mas é provavelmente uma das áreas mais intensamente estudadas nos últimos tempos.
Isto é muito importante do ponto de vista de organização de cuidados de saúde: enquanto que, em pleno pico da onda pandémica vamos ter doentes SARS-CoV-2 positivos, com pneumonia viral e dificuldade respiratória a precisar de ventiladores (embora na pediatria correspondam a 0,5 a 2% dos casos), cerca de 4 semanas depois irão surgir os casos do segundo tipo de doença, a tal síndrome hiperinflamatório que carece de melhor caracterização patofisiológica.
Isto mesmo foi verificado em Londres, de onde vieram os primeiros relatos destes doentes graves: em abril tinham bebés pequeninos com patologia respiratória a precisar de apoio, mas na segunda semana de maio começaram a surgir crianças mais velhas, sobretudo acima dos 7 anos, com a tal síndrome hiperinflamatório.
No entanto, à semelhança da onda pandémica de contágio do vírus SARS-CoV-2, estamos à espera que também estes casos de síndrome hiperinflamatório ou Kawasaki-like vão rareando. Só depois da onda pandémica passar é que poderemos compreender a verdadeira incidência da doença.
Vivemos tempos de incerteza. Compreendo assim a angústia da população ao não saber exatamente com o que contar. Compreendo que as medidas de desconfinamento faseado possam parecer precoces. No entanto, não querendo ser alarmista ou pessimista, também admito que são relatos de doença grave mas relativamente rara.
Neste momento, nós - profissionais de saúde - temos devorado as migalhas de informação provenientes de outros países como pão para a boca, mas tal como não existe forma de responder ao porquê desta síndrome hiperinflamatório e se as medidas terapêuticas que temos tomado serão as mais seguras e eficazes, também não dispomos de um guião ou roteiro de desconfinamento comprovadamente seguro.
Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.
Série
- Episódio 1: Os preparativos
- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão
- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa
- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)
- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros
- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete
- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo
- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19
- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?
- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem
- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?
- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?
- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?
- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?
- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?
- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?
- Episódio 17: Existe doença grave em algumas crianças após infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2 ou não?
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