Num mundo ideal e com a quantidade e qualidade de informação que temos ao nosso dispor, a tendência de privação do sono em prol do sucesso deveria já ter caído em desuso. O descanso noturno, por esta altura, já se podia (e bem) ter-se tornado uma tendência. Mas ainda não é completamente assim e os números agudizam a urgência do assunto. A Organização Mundial da Saúde refere que cerca de 40% da população não dorme bem. Já por cá, dois terços dos portugueses sofre de perturbações do sono.
Em média, cerca de 46% descansa menos de seis horas por noite, segundo dados da Sociedade Portuguesa de Pneumologia de 2019. Isto apesar de o estudo Sleep Study Ikea 2018, realizado com uma amostra de 2.094 voluntários, indicar que 67% dos inquiridos pensam sobre o seu sono regularmente. Mas, da teoria à prática, vai um grande passo e ainda são muitas as dúvidas em torno do sono. Fomos tentar compreender porque é que dormir é tão fundamental ao organismo e também quais os distúrbios associados.
Uma preocupação recorrente com o bem-estar físico e mental parece ser uma característica da sociedade atual. Em Preza-se, em teoria, uma alimentação saudável, o exercício físico e o sono. Mas será mesmo assim? Joaquim Moita, pneumologista e presidente da Associação Portuguesa do Sono (APS) esclarece, desde logo, que não se trata de uma tríade. "O sono é mais do que o terceiro pilar da vida saudável, é a base na qual assentam os outros dois, a alimentação e o exercício", esclarece o especialista.
Tanto a alimentação como o exercício têm na sua base, de uma forma ou de outra, o sono. Na verdade, uma ou mais noites de privação completa de sono têm efeitos mais assoladores do que a privação destes dois. O sono é fundamental na regulação das hormonas que controlam o apetite (grelina) e a saciedade (leptina). "Indivíduos privados cronicamente de sono têm alto risco de desenvolver obesidade e diabetes mellitus tipo2", alerta prontamente Joaquim Moita quando questionado sobre a ligação alimentação e o sono. No que toca ao desporto, o descanso noturno também é essencial.
O sono impera, tanto antes como depois das provas, na memorização de rotinas e no restauro de lesões musculares. "É nesse período que são produzidas duas hormonas importantes, a hormona do crescimento e a testosterona para o desenvolvimento, responsável pelo vigor e pelo desempenho físico", esclarece ainda o especialista. Independentemente do grau de atividade física, nunca pode ser menosprezado. "Para o cérebro, é decisivo na seleção e na preservação das memórias", acrescenta ainda.
A (muita) falta que o sono faz
Dormir é essencial. "Hoje, sabe-se, cada vez com mais rigor, graças ao desenvolvimento da neuroimagem e da neurofisiologia, como é que a informação que recebemos é processada durante o sono", refere Joaquim Moita. Esta é a primeira coisa para a qual o pneumologista nos alerta quando lhe perguntamos porque é que o sono é tão fundamental ao nosso corpo. "Afeta todo o nosso organismo e muito do que conhecemos da sua função resulta das implicações que a falta dele nos faz", sublinha o médico.
Já se sentiu irritado, sonolento, com dificuldade em tomar decisões ou com uma lentificação do raciocínio e desatenção acentuada? Pois bem, pode muito bem dever-se ao facto de estar privado de sono. E sabia que dormir seis ou menos horas por noite durante uma semana tem o mesmo impacto que uma noite inteira sem dormir? Para o pneumologista os estudos são claríssimos. "Dormir pouco, seja por opção, por obrigação ou por doença, favorece o desenvolvimento de doenças cardiovasculares [hipertensão arterial, arritmias e enfarte do miocãrdio], de diabetes mellitus e de alterações hormonais", avisa.
Mas não só. Quando falamos nos distúrbios mais comuns de sono em Portugal, Joaquim Moita destaca três principais. A síndrome das pernas inquietas, a insónia crónica e a síndrome de apneia do sono. Milhares de portugueses sofrem com eles. "A síndrome das pernas inquietas atinge entre 5% a 15% dos adultos e caracteriza-se pela vontade irresistível de movimentar as pernas", explica o pneumologista. Geralmente, surge ao final do dia e prolonga-se noite dentro. Porque é que é tão importante? É simples.
"Provoca privação de sono e sonolência diurna", alerta o especialista. Para além disso, potencia ou agrava, muitas vezes, outras patologias, como a diabetes, a doença de Parkinson, a artrite reumatoide, a apneia de sono e as doenças da tiroide. Já a insónia crónica atinge cerca de 10% da população. "É um problema sério pelas suas consequências mais comuns [fadiga, cansaço, sonolência diurna, perda de concentração e memória, irritabilidade e/ou ansiedade]", sublinha ainda o atual presidente da APS.
"Mas também pela forma gravíssima como a comunidade médica aborda farmacologicamente o problema com o uso excessivo de benzodiazepinas, o que é inadequado e perpetua a própria insónia", critica. Estas substâncias podem ser causadoras de dependência, alterações cognitivas e demência precoce. No caso da síndrome de apneia do sono, um dos últimos grandes estudos europeus estimam que afete 49,7% dos homens e 23,4% das mulheres, agora ou no futuro. Dá que pensar.
Esta é uma doença do foro respiratório que se caracteriza por paragens na respiração durante o sono. "A síndrome de apneia do sono está associada às doenças cardíaca e cerebrovasculares", esclarece o especialista. Duas das consequências dessa privação são os enfartes do micárdio e os acidentes vasculares cerebrais. "A falta de descanso tem, pois, um alto impacto tanto na mortalidade como no desempenho profissional", elucida o médico. Depois disto, ainda precisa de mais motivos para procurar dormir mais?
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