Entre regressos marcantes e possíveis despedidas, chegou ao fim a 64ª edição da ModaLisboa, um evento que celebrou a moda portuguesa com momentos de grande emoção. Entre esses momentos está o regresso da incontornável marca Alves/Gonçalves a este evento, encerrando o primeiro dia de desfiles, na sexta-feira, com uma coleção que trouxe à tona toda a expertise e paixão pela moda esperadas da marca. Foi também a primeira apresentação depois do falecimento de Manuel Alves, em maio de 2024, e o “showman” da “dupla dos Manéis”, como eram carinhosamente conhecidos. Desta vez a solo, José Manuel Gonçalves teve de fazer todas as honras, mas assegurou que o legado de Manuel Alves, vive e viverá sempre em Alves/Gonçalves.

Se o regresso de Alves/Gonçalves marcou o início da ModaLisboa, o último dia trouxe a volta de Nuno Baltazar, que, após um ano de ausência, apresentou uma coleção com um forte teor político e social. O preto, cor inesperada para o designer, dominou a passerelle, numa afirmação carregada de simbolismo, refletindo um olhar crítico sobre o estado atual do mundo.

Valentim Quaresma fez do seu desfile um manifesto de resistência, mergulhando nas estéticas punk das décadas de 1970 e 1980 para reivindicar a urgência de uma nova geração de inconformismo. Numa sociedade marcada por desigualdades e instabilidade política, o designer resgatou a irreverência e o espírito de revolta do punk como resposta à apatia contemporânea. A escolha de abrir o desfile com uma modelo transgénero reforçou essa atitude de contestação, relembrando que a moda pode – e deve – ser um espaço de provocação e mudança.

Luís Onofre, que se apresentou no sábado, o dia dos “Luíses” (Luís Buchinho e Luís Carvalho também fizeram as honras na passerelle), e um dos mais reconhecidos designers portuguseses de calçado e acessórios de luxo, assinalou 25 anos de carreira com uma coleção que regressa às suas origens. Inspirado nos anos 2000, o estilista resgatou peças quase esquecidas e reimaginou-as num jogo entre tradição e modernidade.

Esta foi também uma edição de reflexão para Luís Buchinho uma vez que pode ter sido a sua última. Com o estilista a assumir agora uma posição de docente na Universidade Lusófona do Porto, a coleção 'Love', uma homenagem aos seus 35 anos de carreira, contou com a colaboração dos seus alunos, o que ajudou a dar fôlego a esta apresentação. No entanto, o designer, que não tem escondido as dificuldades que a moda de autor tem passado em Portugal, não põe de parte uma pausa no que à criação diz respeito.

Em contraciclo encontramos Gonçalo Peixoto, o estilista que continua a encher a sala de musas, e não só, e que partilhou o desejo de continuar a fazer crescer a sua marca. Depois de uma coleção de malas e vestidos de noiva, o designer não põe de parte novos modelos de negócio. Do underwear, à maquilhagem e perfumaria, para o criador há ainda muito que fazer.

A encerrar a ModaLisboa tivemos a apresentação de Dino Alves que teve uma mudança de cenário, com alguns monitores a serem retirados, garantindo à audiência um vislumbre do backstage. Algo que não é de todo inédito na relação de Dino Alves e da ModaLisboa, se lembrarmos que em 2018, a coleção do estilista, que também encerrou o certame, começou literalmente com a desmontagem do palco.

Mas houve muito mais nesta edição de ModaLisboa, que esta temporada celebrou o tema Capital.

Constança Entrudo e o segundo lugar que sabe a vitória

A apresentação de Constança Entrudo, que aconteceu no CAM - Centro de Arte Moderna Gulbenkian, intitulada "Second Best", foi o momento que deu início ao primeiro dia de desfiles. A coleção, acompanhada por uma performance criada em colaboração com João dos Santos Martins, explorou o conceito do "segundo lugar" sob diversas perspetivas. Constança desafiou a ideia de fracasso e frustração associada a esse lugar, propondo uma reflexão sobre a aceitação do erro e a celebração do processo.

Celebrar o segundo melhor. Fomos espreitar o processo criativo por detrás da apresentação
Celebrar o segundo melhor. Fomos espreitar o processo criativo por detrás da apresentação créditos: Carlota Barrento

A estilista baseou-se em exemplos de figuras como atletas que sempre ganharam medalhas de prata ou o cineasta David Lynch, que foi muitas vezes nomeado mas nunca premiado. O conceito de "segundo melhor" foi trabalhado ao longo de meses, envolvendo uma dinâmica colaborativa com a sua equipa, o que resultou numa interpretação multifacetada do tema. A coleção não se limitou a roupas, mas foi enriquecida com a dinâmica da performance e o trabalho conjunto com a equipa da Gulbenkian.

Antes da apresentação final, tivemos a oportunidade de mergulhar nos bastidores do processo criativo, onde se percebeu a intensidade e a dinâmica colaborativa que marcam cada etapa da produção. O trabalho começou com reuniões de brainstorming, onde foram definidos mood boards, discutidas texturas de tecidos e, claro, as referências para os penteados — que foram um dos pontos de destaque da coleção. Inspirados em competições desportivas e na estética dos anos 1960 e 1970, Cláudio Pacheco, o haistylist que trabalhou com a estilista, e a sua equipa exploraram técnicas inovadoras, como o uso de cola epoxy, que desafiou a tradicional aplicação de gel para criar texturas ousadas e únicas nos cabelos das modelos.

O resultado final foi uma apresentação onde tudo se uniu em perfeita sintonia, do styling à música, da coreografia à iluminação. Para Constança Entrudo, "Second Best" não foi apenas uma coleção de moda, mas uma oportunidade de fazer as pessoas sonharem e refletirem sobre a beleza de não ser o primeiro, mas, sim, de se ser único.

Alves/Gonçalves e o regresso triunfal à ModaLisboa

“Se calhar é um bocado mau dizer isto, mas eu acho que vai ser o melhor desfile da ModaLisboa. Para mim, os Manéis são icónicos”, afirmava Luís Borges, ao SAPO Lifestyle. O desfile da marca Alves/Gonçalves foi mais do que uma simples apresentação de coleção: foi uma celebração emocionada e poderosa, uma verdadeira homenagem a Manuel Alves, parceiro de vida e de criação de José Manuel Gonçalves, falecido em maio de 2024. O estilista, emocionado, expressou a sua satisfação com o regresso, revelando que a experiência superou as suas expectativas, mesmo sem uma visão clara do que seria. No entanto, as criações de Gonçalves, sempre inspiradas por uma dualidade entre o clássico e o moderno, continuam a carregar a presença e o legado de Manuel Alves, cuja influência ainda se faz sentir em cada peça.

A nova coleção para o outono/inverno 2025/2026 apostou no contraste eterno do preto e branco, criando silhuetas que mesclam o tradicional com toques de modernidade, uma assinatura da marca desde os seus primórdios.

Elegante, criativa e visionária. Uma reflexão sobre o regresso da marca Alves/Gonçalves à ModaLisboa
Elegante, criativa e visionária. Uma reflexão sobre o regresso da marca Alves/Gonçalves à ModaLisboa

Este regresso à ModaLisboa marca também um ponto de viragem na trajetória da marca, que passou por diferentes fases. Ao longo dessa jornada, a busca por novos públicos e a maior liberdade criativa têm sido constantes, permitindo que a marca se consolidasse com mais autonomia e personalidade. José Manuel Gonçalves, com uma visão clara e realista, reconhece que, embora a moda seja um terreno de riscos, a sua confiança na continuidade e resiliência da marca é inabalável.

“Eles são muito bons no detalhe, nos tecidos, nos acabamentos e acho que isso é muito importante. Depois também são bons a contar histórias. Há muitos anos já estavam muito à frente do tempo deles”, evidenciou Luís Borges. Sílvia Alberto também destacou a força da marca, afirmando que “a palavra que os simboliza é mesmo força. É uma atitude que não passa despercebida. Acho que este regresso é muito bonito”, enquanto Valentim Quaresma, assegurou que “o José Manuel vai fazer alguma coisa de brilhante, porque ele é brilhante.” Estas palavras são um reflexo do respeito e da admiração que José Manuel Gonçalves conquistou ao longo dos anos, reafirmando a sua posição como um dos grandes nomes da moda nacional.

Carlos Gil encontrou o seu "Match" na passerelle

A coleção “Match” de Carlos Gil foi uma celebração do equilíbrio entre o exagero e o minimalismo. Segundo o designer, "o excesso não é o oposto do minimalismo, mas sim o ponto de partida", afirmando que o equilíbrio é algo que "nos faz falta tanto no mundo da moda como no nosso ser". Na coleção, o criador encontra-se com "padrões tão exagerados e uma imagem tão forte", mas também com uma paleta de cores que vai de tons ténues a muito fortes, permitindo que cada pessoa "encontre o equilíbrio" por si mesma.

Match, a visão de Carlos Gil que celebra o equilíbrio entre excesso e essência
Match, a visão de Carlos Gil que celebra o equilíbrio entre excesso e essência

Carlos Gil destacou ainda a importância das cores, afirmando que "sou um homem de cor", e acredita que, nos dias de hoje, as pessoas "precisam exatamente disso". A coleção foi inspirada nas grandes metrópoles, refletindo a mulher citadina, forte, segura e inteligente. Em declarações ao SAPO Lifestyle revelou que a coleção também carrega uma forte influência da arquitetura, pois "o padrão vai buscar toda aquela imagem de blocos, de conjugação de cores, daquele amontoado de imagens, mas que ao fim e ao cabo depois é desmontado de uma forma muito coesa, mas muito equilibrada".

No que diz respeito ao estilo de cada um, Gil acredita que o fundamental é que as pessoas encontrem o seu equilíbrio nas peças, explicando: "Eu dou a imagem e ela agora vai tirando ou vai pondo." O designer reforça que a coleção não oferece um estilo pronto, mas sim "tudo aquilo que o Carlos Gil propõe" para que a pessoa "encontre o equilíbrio". Para ele, esse processo de descoberta e personalização é o verdadeiro mérito da coleção.

O legado de Luís Onofre

O desfile de Luís Onofre para a coleção outono-inverno 2025/2026, intitulada "Legacy", foi uma celebração do seu legado e da evolução do design de calçado ao longo de 25 anos. A coleção reviveu os primeiros anos de carreira do designer, com destaque para as peças dos anos 2000 a 2010, muitas das quais quase esquecidas. Luís Onofre revelou-nos que sempre teve uma tendência para revisitar o passado e, nesta coleção, encontrou a harmonia entre o que foi e o que virá, unindo o passado com o futuro de forma natural, mas com um twist. As cores predominantes foram vários tons de castanho, passando pelo bordô, verde bosque e o eterno preto, que deram vida a modelos com uma dualidade de design, refletindo o ADN da marca.

Legacy de Luís Onofre, uma visão do passado para o futuro do calçado
Legacy de Luís Onofre, uma visão do passado para o futuro do calçado Luís Onofre | ModaLisboa - Capital. © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

"Foi um regresso às essências de 2000", explicou o designer, que também apostou na modernização dos saltos metálicos e nas suas diversas opções de altura. A coleção homenageou a tradição, mas também olha para o futuro, refletindo as mudanças rápidas do mundo da moda e a crescente influência de tecnologias como a inteligência artificial. Luís Onofre procurou resgatar a essência do calçado artesanal, misturando-a com as exigências contemporâneas, mantendo-se fiel ao seu estilo.

"Voltar aos tempos antigos, até no manufacturing, como se faz o sapato de princípio ao fim, voltar outra vez com esse conceito, acho que é muito interessante e é isso que eu vou tentar fazer, reviver tudo aquilo que fiz, pensando claramente nas tendências atuais", afirmou, transmitindo a ideia de que, apesar da evolução, houve um regresso necessário àquilo que nos conecta com as raízes da verdadeira arte do design. Com "Legacy", Luís Onofre mostrou que a moda, e o calçado, são a expressão de uma herança que continua a ser moldada e reinventada ao longo do tempo.

Luís Onofre: “Fui buscar peças que estavam quase perdidas e foi uma coisa que me deu imenso prazer”
Luís Onofre: “Fui buscar peças que estavam quase perdidas e foi uma coisa que me deu imenso prazer”

Para Luís Buchinho moda será sempre sinónimo de amor

A coleção "Love" de Luís Buchinho celebrou os seus 35 anos de carreira, refletindo a evolução de um percurso recheado de desafios e conquistas, num momento em que o próprio assume que pode vir a fazer uma pausa na sua carreira de cirador. Quando questionado sobre as criações que mais o apaixonam, o designer afirmou que ser difícil apontar uma coleção favorita, pois, ao longo dos anos, desenvolveu temas e conceitos muito particulares. Para Buchinho, o amor pelas suas criações está no presente, destacando que muitas vezes, mesmo com recursos limitados, "foi o sonho que comandou a vida".

A caminho de um hiato, Luís Buchinho celebra o passado e reflete sobre o futuro:
A caminho de um hiato, Luís Buchinho celebra o passado e reflete sobre o futuro:

Esta coleção foi uma colaboração com os estudantes da Licenciatura de Design e Produção de Moda da Universidade Lusófona do Porto, onde Luís Buchinho é atualmente docente. A parceria surgiu no âmbito da sua cadeira de Design e Desenho, com o objetivo de colocar os alunos em contacto com o processo real de montar uma coleção, apesar de o curso ser ainda recente e os alunos estarem apenas no início de sua formação.

Sobre as inspirações da coleção, Luís Buchinho explicou que não houve uma fonte específica, mas que olhou para o seu próprio histórico e tentou criar uma espécie de "guarda-roupa perfeito para a estação". A paleta de cores neutras, como o preto e o verde brilhante, foi combinada com silhuetas sofisticadas e peças lúdicas que trazem um toque editorial, permitindo um sonho mais distante e criativo na moda feminina.

Luís Buchinho apresenta Love, uma celebração do amor à moda entre gerações
Luís Buchinho apresenta Love, uma celebração do amor à moda entre gerações

Quanto à evolução da moda portuguesa, Luís Buchinho evidenciou que se vivem tempos conturbados, mas destacou que os novos designers acompanham as mudanças do tempo, refletindo nas suas coleções temas como a sustentabilidade e a mistura de identidades de género. Para ele, as novas gerações trazem uma forte ligação com a realidade atual, incorporando temas que são essenciais para um designer de moda no presente.

Por fim, ao falar sobre a escolha do nome "Love" para a coleção, o designer afirmou ser evidente quando uma coleção é desenvolvida com ou sem amor. Esta foi, sem dúvida, a declaração de amor de Buchinho à arte que o tornou uma referência em Portugal.

A celebração da mulher de Luís Carvalho

A coleção "Rush Hour" (Hora de ponta, em português) de Luís Carvalho para o outono e inverno 2025-2026 traz uma poderosa mensagem sobre a mulher contemporânea. A protagonista da coleção é uma mulher CEO, criativa, estratega, empoderada, que não segue o ritmo da cidade, ela dita o seu próprio ritmo. Quando questionado sobre a coincidência de apresentar a coleção no Dia da Mulher, o designer afirmou que foi uma "coincidência maravilhosa" e acrescentou que "ter uma homenagem às mulheres, que são a minha maior inspiração, adoro as mulheres, adoro trabalhar para elas, e para mim fazer isso tudo, é aquilo que não existe, é quase, abram os olhos e vamos levar as mulheres ao poder".

A “hora de ponta” de Luís Carvalho redefine o ritmo da mulher moderna
A “hora de ponta” de Luís Carvalho redefine o ritmo da mulher moderna

Sobre o guarda-roupa da mulher cidadina, que vive no caos e ritmo frenético da cidade, o estilista acredita que não podem faltar os fatos. No entanto, propõe uma visão diferente do clássico, trazendo os fatos com "um twist", ou seja, uma abordagem moderna e inovadora. "O fato ou o blazer é a peça-chave, tudo que a faça ainda mais enaltecer a figura da mulher," destacou, ressalvando como essas peças são fundamentais para destacar o poder feminino.

Além disso, Luís Carvalho continua a explorar as silhuetas unissexo, algo que já faz parte do seu ADN. Como explicou, nesta coleção, o tema officecore foi explorado de forma mais fluida e divertida, com cortes e materiais mais leves e dinâmicos, "porque o blazer é só a minha peça preferida de trabalhar," destacando a relevância dos fatos unissexo como um componente central da sua visão criativa.

Luís Carvalho | ModaLisboa - Capital
Luís Carvalho | ModaLisboa - Capital Luís Carvalho | ModaLisboa - Capital. ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

No geral, "Rush Hour" é uma ode à mulher moderna, empoderada e à sua capacidade de ditar o ritmo do mundo à sua volta, com peças que exaltam a sua força e elegância, ao mesmo tempo que abraçam a fluidez e a versatilidade das silhuetas e uma boa forma de terminar a noite de sábado, num dia que celebrou a luta das mulheres na atualidade.

A moda não tão cor-de-rosa de Nuno Baltazar

"Devias estar aqui". Esta frase, várias vezes repetida, encheu a sala, ao som de música clássica como que um lamento. Nuno Baltazar apresentou a sua coleção "Intermission", um desfile que não só celebrou o seu regresso à cena dos desfiles de moda portuguesa, mas também trouxe consigo uma mensagem poderosa de ativismo e reflexão social.

A coleção foi um manifesto claro de posicionamento político. Baltazar aproveitou a visibilidade do evento para se manifestar, afirmando, sem hesitar, que a moda não pode ser uma "bolha cor-de-rosa", desvinculada da realidade do mundo. "Toda a gente está envolvida nisto, isto não é um problema que está longe", sublinhou, referindo-se à crise que afeta a Ucrânia e à luta das pessoas trans, temas que estavam presentes na sua passerelle. Duas manequins ucranianas participaram do desfile, assim como uma modelo trans, que foi a única a retirar uma das máscara que faziam parte da apresentação, como símbolo da resistência e da busca pela liberdade de ser quem se é.

O próprio nome da coleção, "Intermission" (Intervalo), reflete este momento de pausa e reflexão, não só para a marca, que esteve ausente nas últimas edições da ModaLisboa, mas também para a sociedade. Baltazar explicou que este "intervalo" foi fundamental para o seu processo de introspeção, no qual procurou encontrar as suas motivações mais profundas. "Este espaço vazio foi um período de reflexão, de procurar o interior e de revelar aquilo que me move para regressar com outra energia", afirmou.

A coleção foi dominada pela cor preta, uma escolha intencionalmente ligada ao luto, não apenas pela perda, mas pela necessidade dessa tal reflexão. O preto, uma cor tradicionalmente associada ao sofrimento, e nada comum em Nuno Baltazar, foi utilizada para expressar um momento de pausa e de ponderação. "O luto também é um intervalo entre a perda e o recomeço", explicou, reforçando que a moda tem de ser mais do que estética, tem de ser uma ferramenta de mudança.

Intermission de Nuno Baltazar põe o preto em destaque
Intermission de Nuno Baltazar põe o preto em destaque Nuno Baltazar | ModaLisboa - Capital. Créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

Com esta coleção, Baltazar não só abordou questões políticas e sociais, mas também fez um apelo à valorização da moda autoral em Portugal, um setor que, segundo ele, enfrenta enormes dificuldades. "A moda portuguesa está a viver um período muito difícil. Foi muito lesada e é importante que alguém reflita sobre como é que poderá ser compensada", frisou, apontando a necessidade de uma revisão do tratamento dado à criação de moda independente no país.

Quanto ao futuro da sua marca, Nuno Baltazar revelou que este regresso não é um novo capítulo, já que tem várias formas de se reinventar. "Se não for aqui, será de outra maneira. Eu gosto de apresentar coleções e espero que seja aqui, porque é onde estou feliz", concluiu, ao fazer referência ao palco da ModaLisboa.

O punk de Valentim Quaresma também é uma crítica ao alheamento da sociedade atual

O espírito punk voltou com força no desfile de Valentim Quaresma, que revisita as décadas de 1970 e 1980 para relembrar um estilo que o cativa profundamente. "Quis trazer o punk para esta coleção porque sinto que a sociedade precisa de uma nova geração de punks, diante do que está a acontecer no mundo hoje, tanto na política como na sociedade", afirmou o designer português, em entrevista ao SAPO Lifestyle. Para ele, é uma questão de urgência. "Abrir o desfile com a Ariel, que é transgénero, teve uma grande importância. Ela é uma mulher incrível e representa essa mudança que estamos a viver", completou.

Valentim Quaresma:
Valentim Quaresma: Valentim Quaresma | ModaLisboa - Capital. Créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

A rebeldia que sempre caracterizou o punk, tanto na música como na moda, voltou assim a ganhar destaque nas criações para o outono-inverno 2025/2026. A coleção é uma ode à ousadia e à contestação do status quo, trazendo à passarelle uma estética de puro impacto, onde o preto predomina. O tartan, também tradicionalmente associado a este movimento, surge em novas cores, com um amarelo vibrante que aparece em saias, tops, vestidos e casacos, combinando com calçado de estilo biker e militar.

Valentim Quaresma, que integra upcycling nas suas coleções, utiliza tecidos deadstock que, após serem manipulados, dão origem a peças únicas. "São os mesmos vestidos que usámos nos anos 1980, um estilo muito característico da época. As calças de tartan amarelas também são uma homenagem a esse passado", explica. Entre os looks para ele e para ela, destacam-se também tons de castanho chocolate e verde tropa, além de peças com franjas e detalhes em pelo.

Valentim Quaresma:
Valentim Quaresma: créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

O tom sombrio que dominou a coleção foi suavizado por elementos de bodypainting e acessórios statement, como máscaras e armaduras adornadas com pedrarias vermelhas e prateadas, trabalho já habitual no criador. "A coleção tem um ar muito 'deep' e gótico, principalmente pela maquilhagem. Mas no final, quis trazer luz para o desfile", conclui.

A mulher provocadora de Gonçalo Peixoto

"I do what I want" cantava Lana del Rey, no início do desfile de Gonçalo Peixoto - o estilista escolheu as músicas "Off to the Races" e "Diet Mountain Dew" do álbum Born to Die da artista -, e na representação da mulher de designer, essa filosofia é vivida ao máximo. A mulher Peixoto é provocadora, livre de preconceitos e confiante. E se a isso se juntar brilho e lantejoulas, melhor. “Life is too short to not having fun”, dizem, e é exatamente essa energia de liberdade e diversão que o designer transmite nas suas coleções. Para o outono/inverno 2025/2026, Gonçalo Peixoto apostou numa paleta que mistura o sofisticado com o ousado, incorporando, pela primeira vez, o verde esmeralda — uma cor que ele nunca tinha trabalhado para o inverno e que se destaca pela elegância e subtileza. Além disso, o cobre e o laranja aparecem como grandes protagonistas, trazendo uma vibração enérgica à estação mais fria.

Gonçalo Peixoto. Back to the Office
Gonçalo Peixoto. Back to the Office ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: The images used are the property of Associação ModaLisboa, which also holds all the rights to the same.

Os brilhos e as lantejoulas, tradicionalmente associados ao verão, voltam a fazer parte da coleção de inverno, mas com um toque distinto: "Acho que há sempre uma maneira de conjugar. Com um grande casaco por cima, com uma camisa oversized", explica, uma vez que acima de tudo, quer que as mulheres que vistam as suas criações sejam deslumbrantes e cool, mantendo a sensualidade, sem perder a sofisticação. E sempre pronta para brilhar em qualquer estação do ano.

Na construção das suas coleções, o ponto de partida para Gonçalo Peixoto é sempre o tecido, que dá o tom e a direção do que virá a seguir. A sua metodologia é clara: transformar o que é abstrato em algo concreto, que conversa diretamente com o estilo e a personalidade de cada mulher. E se isso já é parte do seu ADN, a expansão da marca Gonçalo Peixoto vai além das coleções sazonais. O designer revela que está a trabalhar para que as suas clientes tenham um guarda-roupa completo, da cabeça aos pés, e que a marca possa expandir ainda mais, com novidades em diferentes linhas, onde já se inclui malas e vestidos de noiva.

Gonçalo Peixoto:
Gonçalo Peixoto:

Com os olhos postos no futuro, Gonçalo Peixoto promete em breve surpresas, incluindo uma volta aos desfiles internacionais. O designer está em plena construção de novos horizontes e, enquanto isso, continua a desafiar as convenções da moda com a sua visão.

Entre demónios fronteiras e fantasia: A visão de DuarteHajime, Ricardo Andrez e Kolovrat

A ModaLisboa - Capital também foi palco de coleções que desafiaram as fronteiras da moda e exploraram novas narrativas visuais e simbólicas, refletindo o amadurecimento e a evolução dos designers.

Foi o caso da coleção "Kaeru" de Ana Duarte para a DuarteHajime. Inspirada na mitologia oriental, a designer explorou a fusão entre o espírito resiliente dos samurais, a adaptabilidade do sapo (Kaeru) e a ferocidade do Oni (demónio), criando uma coleção cheia de simbolismo e identidade estética. A escolha das cores reflete a jornada do samurai, com o vermelho representando o Oni, o verde evocando a natureza e o sapo, e o cinzento remetendo à armadura dos guerreiros. Para Ana Duarte, a coleção não só representa mitos ancestrais, mas também um olhar crítico sobre os “demónios” que assombram a moda contemporânea, como a fast fashion e a desvalorização do design artesanal.

Entre demónios e samurais, Kaeru é uma jornada de transformação em DuarteHajime
Entre demónios e samurais, Kaeru é uma jornada de transformação em DuarteHajime DuarteHajime | ModaLisboa - Capital. ModaLisboa | Photo: Ugo Camera créditos: ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

Com "Far From The West", Ricardo Andrez desafiou a ideia de limites geográficos, criando uma fusão única entre Oriente e Ocidente. Inspirado pelo jacquard oriental e pela estética street wave que define a sua marca, Andrez explorou a interseção entre a fluidez das inspirações orientais e a estrutura ocidental, utilizando materiais como o denim e a seda. A reinterpretacão da manga quimono foi um dos pontos altos da coleção, transformando-a numa peça mais fina e moderna, enquanto acessórios como palas com véus adicionaram um toque de mistério. Para Andrez, a moda não se prende ao passado, mas olha sempre para o futuro, reforçando o desejo de levar a sua coleção para novos horizontes e mercados.

Com
Com créditos: © ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

Lidija Kolovrat apresentou uma coleção que exalta a diversidade e a liberdade criativa, inspirada pela ideia de que “cada árvore tem o seu espaço na floresta”. A sua coleção foi marcada por um jogo entre texturas, materiais e contrastes de luz e sombra. A designer, que não segue nem quer definir tendências, criou uma obra que é uma manifestação da sua intuição e do storytelling próprio da marca. Entre peças fluídas e estruturas mais marcadas, a coleção refletiu a poética de Kolovrat. A coleção não foi apenas uma apresentação de moda, mas uma experiência sensorial, reafirmando a moda como uma forma autêntica de expressão.

Kolovrat entre a fluídez, o brilho e a liberdade da floresta
Kolovrat entre a fluídez, o brilho e a liberdade da floresta

Cada uma dessas coleções apresentou uma visão distinta e única da moda, onde a tradição, a inovação e a identidade pessoal se entrelaçam de forma natural. Se em "Kaeru", Ana Duarte apostou na reflexão sobre mitos e o consumo responsável, em "Far From The West", Ricardo Andrez derrubou as barreiras geográficas com uma fusão cultural criativa. Já Kolovrat, com a sua visão intuitiva e poética, celebrou a liberdade de expressão na moda. Juntas, estas coleções não apenas apresentaram roupas, mas contaram histórias de transformação, identidade e resistência na indústria da moda.