Neste artigo, a pediatra Joana Martins explica que os lutos complicados surgem quando o diálogo familiar é pobre, superficial ou inexistente. É preciso falar sobre morte, mas com as devidas cautelas.
Sabemos que uma em cada 20 crianças até aos 16 anos vai perder um contacto significativo. Por isso, para estas crianças, falar de morte não é opcional nem adiável. Mesmo às crianças pré-verbais (com menos de 2 anos de idade), alguma coisa terá que ser explicada, sobretudo porque apesar de não terem qualquer noção sobre o conceito da morte, são as primeiras a perceber quando alguma coisa não está bem. Nos mais velhos, à dor da perda, soma-se a preocupação com o sofrimento dos outros bem como o medo de perder outras pessoas significativas na sua vida.
No entanto, apesar da maioria das crianças não passar por esta situação esmagadora, as conversas sobre a morte acabam por ocorrer inadvertidamente, pela morte do peixinho dourado que decidiu saltar do aquário, pela morte do cão ou do gato, pela morte da bisavó muito velhinha que a criança vê duas vezes por ano.
Para falarmos de morte com as crianças temos que ter a noção que o conceito abstrato de morte só ocorrerá depois dos 8-10 anos. Mas isto não significa que crianças mais pequenas não possam compreender o que se passa, desde que tenhamos o cuidado de explicar de forma a que elas consigam compreender.
Para falar de morte é necessário explorar 4 conceitos :
A morte é irreversível
É um conceito óbvio para adolescentes e adultos, mas menos óbvio para crianças com menos de 5/6 anos. Na verdade, como sociedade, não nos esforçamos muito por ajudar quando fazemos desenhos animados que morrem e ressuscitam ou quando o ator que morre num filme, retorna ao grande ecrã noutro papel, só para morrer outra vez. São obviamente mensagens contraditórias.
É importante explicar que não há retorno. E por isso é que é tão fundamental usar os termos “morte” e “morrer” ao invés de eufemismos bem-intencionados, mas deletérios, como “partir” – que os leva a pensar que regressarão e, caso não regressem, a questionar se isso acontece porque deixaram de gostar ou se fizeram alguma coisa de errado – ou “dormir para sempre” – gerando uma séria ansiedade com o sono.
Todas as funções vitais cessam com a morte
Este é um conceito com o qual até os adultos por vezes se debatem. Mas lá iremos. As crianças frequentemente atribuem características de ser vivo a objetos inanimados: ficam zangadas com uma pedra porque tropeçaram nela, dão de comer à boneca porque tem fome. Certo que isto faz parte do contexto de jogo simbólico. Mas a lógica é a mesma, se pedimos a uma criança para rezar pela avó ou para fazer um desenho para colocar na coroa de flores que vai para o cemitério. Na cabeça da criança, se a avó ouve as preces ou se vê o desenho, então também pode sentir-se apertada e aflita dentro do caixão, ou ter medo do escuro porque está debaixo de terra.
Obviamente que o assunto da vida depois da morte é algo difícil para uma criança pequena. Também o é para os adultos. É importante, sobretudo se a família professar um credo religioso ou tiver outro tipo de crença espiritual, distinguir entre o corpo isento de vida e uma parte da pessoa que não se vê e não se sente (chamemos-lhe alma ou espírito ou estrelinha) que pode continuar a existir. Isto tem que ser cuidadosamente explicado às crianças.
A morte é inevitável
Todo e qualquer ser vivo vai morrer. Verdade universal. No entanto, a perceção da nossa própria morte e daqueles que nos são significativos é muito mais difícil. Se a morte é inevitável – e é-o de facto – a criança pensará que, se uma pessoa significativa morreu, o mesmo poderá ocorrer a qualquer outra pessoa. É aqui que surge uma certa ansiedade que é preciso responder: a criança vai interrogar-se se os pais poderão ser os próximos. A verdade é que podem, nunca sabemos, mas temos que lhes explicar que é pouco provável que aconteça no imediato.
Como é que se deu a morte
Este ponto é sensível e difícil. Numa circunstância de doença prolongada, a criança assiste a uma auto-explicação da morte. É um processo longo e desgastante, mas tem uma certa coerência. A pessoa morreu porque estava doente, tentou tratar-se, mas a doença acabou por evoluir ainda assim.
A dificuldade reside na morte súbita, inesperada: as mortes acidentais, os homicídios e os suicídios.
Tomando o exemplo dos acidentes de viação, é importante explicar mais do que “a pessoa X teve um acidente de carro e morreu”. Isto vai gerar muita angústia nas crianças mais pequenas, porque vão passar a associar o risco de morte aos passeios de carro. É importante explicar que nem todos os acidentes de carro culminam com a morte de alguém. Explicar que a pessoa que faleceu no acidente teve um traumatismo grave da cabeça no embate acaba por ajudar a perceber a diferença. Não é necessário entrar em detalhes sórdidos sobre o assunto.
No caso dos suicídios, sobretudo de uma pessoa significativa, como a mãe ou o pai, vamos ter uma enorme necessidade de apoio, não só porque o suicídio de um adulto vai implicar uma reflexão sobre as causas, a depressão ou angústia existencial prévia, como representa um risco para a própria criança. Filhos adultos de pais que se suicidaram têm três vezes maior risco de suicídio do que adultos com pais vivos. O suicídio de uma pessoa significativa vai gerar sentimentos muito profundos e justificados de zanga, frustração, culpa e, no limite, vergonha. É importante deixar que estes sentimentos se expressem. Tal como é importante contextualizar o suicídio dentro de uma doença mental que, apesar do tratamento, não melhorou.
As cerimónias fúnebres
Culturalmente é difícil levar uma criança a um funeral. A maioria das crianças, quando questionada, não quererá ir. Porquê? Pela razão muito simples que não sabem o que esperar. Nas crianças com mais de 5/6 anos (ou antes, se perguntarem), é importante explicar-lhes o que vai acontecer, quem estará presente, onde será, que há um caixão (que pode estar aberto ou fechado), que há flores e que as pessoas vão estar sérias e globalmente tristes. Não deixar nunca de sublinhar que a criança não vai ter nenhum papel a desempenhar, para que não fique ansiosa do que vai fazer. A maioria dos adultos não o faz, pelo que a criança vê toda a gente a chorar por participar de um evento horroroso e não percebe o que de tão grave se passou (reparem, já teve a notícia da morte, mas parece que as novidades não ficam por aqui).
Se, depois das explicações, a criança quiser ir, devem ser contempladas várias ajudas: é importante a presença de um adulto responsável e próximo por cada criança, idealmente alguém não envolvido com o processo de luto. Não pode ser uma prima que a criança nunca viu mais gorda. Professoras, educadoras, treinadores ou familiares com muita afinidade, mas mais afastados do processo de luto, são importantes. A criança tem que saber que, em qualquer momento, pode vir embora. Não é obrigado a ficar nem a participar. Nas crianças mais pequenas, permitir sempre que levem um brinquedo se o pedirem. Nos mais crescidos, perguntar se precisam de um amigo.
O luto é a nova normalidade
Frequentemente os adultos expressam uma sensação de incredulidade no momento da notícia da morte de alguém significativo. Só depois de algum tempo é que a realidade se impõe e é precisamente aqui que se instala o processo de luto.
As crianças também fazem luto, mas fazem-no de formas diferentes, por vezes com comportamentos mais agressivos, de zanga e incompreensão, por vezes com pequenas regressões do seu desenvolvimento, como voltar a usar chucha, terem descuidos apesar de já não usarem fralda, quererem dormir acompanhados ou terem comportamentos extremamente egoístas no cenário que estão a viver (é clássica a pergunta se ainda vão ter festa de anos ou se ainda vão ter férias com os amigos).
A rotina habitual vai desenvolver-se neste novo contexto e acaba por ser um aspeto muito organizador. Sobretudo nas crianças mais pequenas, os ritmos habituais e as rotinas são uma âncora fundamental para transmitir a ideia de normalidade e continuidade. Existem as datas complicadas, como aniversários e outras celebrações, e existem locais difíceis de revisitar. É importante sobretudo falar sobre as memórias de quem morreu. Esse diálogo tem que se manter aberto. Não obstante, pode haver a necessidade de apoio especializado quando suspeitamos que o luto não está a decorrer como esperaríamos: insónia, alteração persistente do comportamento alimentar e isolamento social são sinais cardinais para vigilância apertada.
Diálogo
Falar só por falar nunca é fácil. Ninguém quer falar do que dói. Mas as oportunidades para o diálogo nunca se esgotam. Às vezes são precisas perguntas abertas, inespecíficas, ao invés de perguntar diretamente se sente a falta da pessoa. Outras vezes pode ser fundamental recorrer a outras muletas de diálogo, como a expressão criativa. Ouvir música em conjunto, desenhar, pintar ou escrever um diário podem ser ferramentas úteis. Nos adolescentes, a atividade desportiva é um óptimo catalisador de bem-estar e pode ajudar a equilibrar a dor.
O que gostaria que tivessem presente é que os lutos complicados surgem quando o diálogo familiar é pobre, superficial ou inexistente. Havendo espaço para o diálogo, o luto é difícil, mas suportável. Para quem está de fora da família, há muito espaço para ajudar e não são apenas naquelas 2 a 3 semanas iniciais – o silêncio e a quietude que se instalam depois é que são verdadeiramente difíceis e é preciso continuar a apoiar aquela criança nos meses e anos seguintes.
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