Guardo da infância a sensação da fantasia me levar bem ao colo. De me sentar em frente à televisão antiga e ver os desenhos animados que os meus pais gravavam nas ultrapassadas cassetes de vídeo. Um pão com manteiga na mão e um copo de leite na outra, nem dava pelo tempo passar.
Tinha como favorito o filme das Aventuras de Alice no país das maravilhas, e enchia-me de curiosidade o coelho branco que parecia sempre fugir-lhe, nunca ter tempo, estar sempre atrasado. Corria desenfreado, focado no destino e distraído das maravilhas que o rodeavam. Bem sei que se passaram uns quantos anos mas hoje, adulto, sei que os relógios são ferramentas muito importantes. Por eles, vamos marcando as distâncias e os momentos, os vagares e as pressas.
O tempo que temos molda as nossas relações, foge e parece pouco. Importa então refletir sobre o tempo e a influência que tem nas dinâmicas familiares e nas relações entre pais e filhos.
A industrialização do mundo e a sua globalização levou a que as dinâmicas de trabalho e emprego mudassem significativamente. Os pais atuais enfrentam desafios colossais em gerir as rotinas familiares e a vida profissional.
Além disso, o conhecimento sobre o desenvolvimento e uma renovada atenção às emoções faz com que exista outra preocupação sobre as necessidades dos filhos. Dessa forma, debaixo da pressão das responsabilidades e exigências do emprego, percebem-se dificuldades em gerir o tempo em família e em multiplicá-lo, como todos desejaríamos.
Outro dia, um pai preocupado contava-me que depois de ir buscar a filha ao judo e o filho ao futebol, após a heróica tarefa dos trabalhos de casa, da insistente chamada para o banho, de quase deixar queimar o jantar, e de teimoso ter que lembrar a hora de ir deitar, depois disso, lá conseguiu “um tempinho”. Ali, no momento calmo em que a turbulência natural de uma casa se tranquilizava, estava disponível para brincar, falar, conversar, ouvir.
Ainda que cansado, tinha cumprido tudo e ficaria feliz por perceber que histórias guardavam os filhos, do dia de recreio, da letra que aprenderam ou da paixão adolescente que lhes queimava o coração. O único problema é que os dois miúdos já dormiam e amanhã começava tudo de novo. As rotinas são uma peça essencial de qualquer sistema, fazem com que ele fique seguro e não tropece em desorganização, permitem que ele sobreviva.
As dinâmicas familiares estão assentes em rotinas, pois estas permitem que tanto pais e filhos cumpram as suas responsabilidades e algumas das necessidades. São elas que colam o sentido dos dias e dão a segurança fundamental para que os filhos cresçam e os pais com eles também. Porém, se isso é verdade, é também real a forma veloz como o tempo nos parece escassear e deixar-nos completamente entregue às obrigações.
Os pais, muitas vezes cansados, usam as energias que lhes restam para garantir que as dinâmicas familiares continuam a funcionar, evitando o caos que tanto desgaste provoca.
Focam-se no cumprimento destas tarefas durante a semana e guardam para o fim de semana o chamado “tempo de qualidade”, em que procuram o programa mais fabuloso para os filhos. Fazem-no com uma intenção genuína, de querer o melhor para as crianças, apostando as forças e a disponibilidade nesses “momentos em família”. E depois, começa mais uma semana e lá vai o tempo a fugir de novo.
Devo dizer que a expressão “tempo de qualidade” sempre me causou alguns anticorpos. Como se as relações pudessem ter um botão de pausa e se conseguisse distinguir claramente os momentos em que os pais estão com os filhos a cumprir uma tarefa, dos outros em que se está a fomentar a ligação entre eles.
Parece-me que um tempo com qualidade, como eu o vejo, talvez seja das poucas coisas que não se define pela duração ou até mesmo pelo que se faz com ele. Falar em qualidade na relação obriga-me a pensar na capacidade de estar disponível e presente nos vários momentos de interacção; no saber escutar todos os protestos, as histórias, as dúvidas, as queixas e os disparates; a empatia de compreender as dificuldades e a mão ou o abraço que ajuda a fazer nascer as soluções; o cuidado de disciplinar e a paciência de ensinar; o olhar terno de quem observa ao longe uma brincadeira ou a infância resgatada de um pai que se entusiasma num jogo; os beijinhos nas feridas e as perguntas curiosas que mostram interesse.
E se não é de segundos, minutos ou horas que falamos, parece-me que as tarefas rotineiras nas semanas cansativas guardam um espaço especial para que a relação aconteça, se construa. São aqueles momentos em que parece que não sobra tempo para se estar, quando estar é o que mais importa. São todas as maravilhas que o coelho se esqueceu de apreciar.
Texto: Luis Fernandes, Técnico Superior de Reabilitação Psicomotora/PIN
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