No livro agora editado em Portugal, Thomas Curran, psicólogo inglês, lança-nos algumas perguntas sintetizadas na sinopse à obra: “Sente uma sobrecarga grande, quase todos os dias, no trabalho e não só? Uma pressão enorme para atingir expectativas surreais?”. O doutorado em psicologia e professor universitário na London School of Economics deixa-nos uma advertência caso a resposta às duas perguntas atrás enunciadas seja um “sim”. “Estamos a cair na armadilha da perfeição, um dos maiores males do século XXI. Esta obsessão – que compromete a nossa a saúde mental e tem efeitos em todas as áreas da nossa vida – é uma epidemia que se está a alastrar e que, na verdade, nos impede de alcançar os nossos verdadeiros objetivos”.

Em A Armadilha da Perfeição (edição Presença), o autor baseia a sua prosa em investigação alargada sobre o tema (resultados de estudos psicológicos, registos de casos clínicos, dados económicos, etc.) e inclui exemplos reais. Thomas Curran revela ao leitor que o perfeccionismo nos passa uma rasteira e “compromete a nossa existência, individual e socialmente”. O psicólogo também nos apresenta um caminho de libertação, ou se preferirmos, um travão na pressão que nos é imposta e que nos impomos. Entre as medidas sociais defendidas pelo autor está a implementação de um rendimento básico em substituição da segurança social: “O rendimento básico aumenta a liberdade pessoal”. O especialista em perfeccionismo também olha para a economia global e sublinha: “O crescimento descontrolado está a destruir-nos, a nós e ao planeta”. Linhas de pensamento que Thomas Curran também levou para a sua TED Talk “Our Dangerous Obsession With Perfectionism is Getting Worse”, palestra que conta com mais de três milhões de visualizações online.

Escreve o autor no prólogo ao seu livro: “Cada um de nós, habitantes do Ocidente, vive no interior de uma cultura fabricada por fantasias perfeccionistas. Tal como uma simulação holográfica de uma realidade exagerada, trata-se de um lugar em que imagens estáticas e em movimento, de vidas e estilos de vida perfeitos irradiam em outdoors, ecrãs de cinema, televisões, anúncios e feeds de redes sociais. Cada uma delas demonstrando-nos que teríamos uma vida feliz e bem-sucedida se fôssemos perfeitos (...) o perfeccionismo vive no nosso interior através de uma insegurança persistente e inabalável. Insegurança em relação que que não temos, à nossa aparência e ao que não alcançámos”. Para Thomas Curran vivemos hoje “uma obsessão pelo crescimento ilimitado e uma ânsia por mais a qualquer custo”. Vivemos, por isso, “assombrados por epidemias de esgotamento, ou burnout e de sofrimento psicológico”, enfatiza o psicólogo e acrescenta que “quanto mais fundo cairmos na armadilha da perfeição da nossa cultura, mais o perfecionismo irá esvaziar as nossas vidas de vitalidade”.

Da obra, publicamos o excerto abaixo:

O que não nos mata... Ou porque provoca o perfeccionismo tantos danos à nossa saúde mental

«Escrevi durante toda a manhã com infinito prazer, o que é estranho, porque estou sempre ciente de não haver razão para ficar satisfeita com aquilo que escrevo, e que daqui a seis semanas,ou mesmo dias, irei odiá-lo.»

Virginia Woolf

Após dois copos de cerveja à conversa com Paul e Gord, já eu estava embrenhado nos meus pensamentos. Aquilo que disseram fez-me questionar o que nos faz, ao certo, o perfeccionismo, em parte por eu ser uma das muitas pessoas presas na sua armadilha. Queria saber por que razão estes homens tinham uma visão tão superficial do perfeccionismo, por que razão as suas reflexões iluminadas pareciam pressagiar uma viragem sombria na nossa conversa.

Perguntei-lhes:

- Qual é exatamente o problema do perfeccionismo?

Eles fundamentavam as suas preocupações no facto de, em sua opinião, o perfeccionismo se esconder sob a superfície das perturbações mentais.

- Se quisermos saber porque é que tantos jovens têm problemas hoje em dia — observou Paul—, teremos de levar o perfeccionismo em consideração.

Como viria a compreender, trata-se de um argumento bastante válido. Logo após Paul e Gordter em desenvolvido a sua escala de perfeccionismo, surgiram investigadores a tentar determinar se o perfeccionismo contribui para vários tipos de problemas, como a depressão, a ansiedade, a bulimia, a automutilação e o suicídio.

- A nossa escala desbloqueou o potencial para um programa sistemático de investigação — disse-me Gord. — Infelizmente, encontrámos um panorama deprimente. — Grande parte da investigação a que Gord se refere é correlacional.

Os estudos correlacionais implicam que os investigadores apliquem a Escala Multidimensional de Perfeccionismo, bem como medições de consequências, como a ansiedade ou a depressão, num único questionário. Suponhamos que a perspetiva de Paul e Gord face ao perfeccionismo está correta. Nesse caso, pessoas muito ansiosas terão níveis elevados de perfeccionismo, pessoas com um nível mediano de ansiedade terão níveis moderados e pessoas quase desprovidas de ansiedade terão níveis baixos. Esta é uma correlação positiva; quem obtiver uma pontuação elevada ao nível do perfeccionismo também obterá uma pontuação elevada no que se refere à ansiedade.

Como é evidente, a correlação não equivale à causalidade. Porém, quando um número suficiente de correlações tende na mesma direção, isso significa que algo se está a passar.

- Os nossos laboratórios, e outros por todo o mundo, constatam repetidamente que o perfeccionismo tem correlações consideráveis com marcadores de sofrimento mental e emocional, padrões de pensamento problemáticos e preocupações com a imagem corporal, por vezes, muito acentuadas — disse Paul.

De entre as dimensões do perfeccionismo propostas por Paul e Gord, o perfeccionismo auto-orientado é o mais complexo. À superfície, a investigação pode aparentar indicar que é benigno ou que, de alguma forma, promove a autoestima e as emoções positivas. Contudo, estes resultados escondem a vulnerabilidade a perturbações psicológicas resultante da subordinação da autoestima ao sucesso e da incapacidade de obter uma sensação duradoura de satisfação advinda do sucesso. Vimos um exemplo claro desta psicologia nas autorreflexões de Victoria Pendleton no capítulo anterior."

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Em centenas de estudos, o perfeccionismo auto-orientado correlaciona-se com coisas boas como a autoestima e a felicidade, mas também com bastantes coisas muito más, tais como depressão, ansiedade, sentimento de desespero, preocupações com a imagem corporal e anorexia. Há até evidências preocupantes de que o perfeccionismo auto-orientado contribui para ideação suicida, embora com um efeito muito reduzido, o que significa que é detetável, mas que existem outros fatores mais relevantes." Os efeitos nocivos do perfeccionismo auto-orientado são corroborados por revisões recentes e abrangentes, que concluíram que este se correlaciona positivamente com a ansiedade e prevê o agravamento da depressão ao longo do tempo — um efeito que pode, por vezes, não ser detetado em estudos únicos." O perfeccionismo orientado para os outros é um caso curioso, uma vez que é sobretudo estudado no contexto das relações. No entanto, também neste caso as conclusões são preocupantes.Diversos estudos revelaram a existência de ligações entre o perfeccionismo orientado para os outros e uma maior tendência para atitudes vingativas, um desejo excessivo por admiração e atitudes de hostilidade, bem como um menor grau de altruísmo, cumprimento de normas sociais e confiança. Também nas relações amorosas o perfeccionismo orientado para os outros se revela problemático. Está intimamente ligado a adversidades consideráveis nas relações íntimas, conflitos graves entre parceiros e uma redução da satisfação sexual.

As pessoas com níveis elevados de perfeccionismo socialmente prescrito tendem a revelar uma elevada solidão, preocupação com o futuro, necessidade de aprovação.

Estes elementos sobre o perfeccionismo auto-orientado e orientado para os outros pintam um quadro deveras desolador. Todavia, não é essa a maior preocupação de Paul e Gord; é o perfeccionismo socialmente prescrito. As pessoas com níveis elevados de perfeccionismo socialmente prescrito tendem a revelar uma elevada solidão, preocupação com o futuro, necessidade de aprovação, relações de máqualidade, ruminação e melindre, receio de revelar imperfeições a outras pessoas, automutilação, uma saúde física mais precária, menor satisfação com a vida e uma autoestima cronicamente reduzida. São também altamente vulneráveis a perturbações mentais graves. Por exemplo, em estudos correlacionados,relatam frequentemente maior desesperança, anorexia, depressão e perturbações de ansiedade e, tal como o perfeccionismo auto-orientado, o perfeccionismo socialmente prescrito também se correlaciona com ideação suicida — mas a um grau muito superior.

Rory O'Connor, psicólogo britânico que estuda o suicídio, tem uma teoria sobre a ligação ao perfeccionismo socialmente prescrito. «Não é necessariamente o facto de o indivíduo estabelecer padrões para si próprio que é potencialmente arriscado; é o que o indivíduo pensa que os outrosesperam de si», disse ele à revista The Psychologist. Se pensarmos que não conseguimos corresponder às expectativas dos outros, podere- mos interiorizar esse facto na forma de ruminação autocrítica e, para algumas pessoas, isso desencadeia um ciclo autodestrutivo de insucesso edesespero.  Sem intervenção, considera O'Connor, este ciclo pode ter um desfecho trágico.

E isto não é tudo. O perfeccionismo socialmente prescrito tem um efeito cumulativo quando combinado com o perfeccionismo auto-orientado. Gord explicou:

- Pode tratar-se de depressão, ansiedade, problemas de autoestima, ruminação ou preocupações com a imagem corporal, não importa o resultado, um elevado perfeccionismo socialmente prescrito aliado a um elevado perfeccionismo auto-orientado é uma mistura perigosa, que pode amplificar os problemas em muitas ordens de grandeza.

Este efeito cumulativo é evidente em centenas de estudos que demonstram que os efeitos do perfeccionismo socialmente prescrito no sofrimento mental são potenciados pelo perfeccionismoauto-orientado.

Longe de ser uma mera compulsão interior ou algo que resulta apenas em tendências obsessivas, o perfeccionismo parece ser um fator de risco subjacente ao sofrimento mental e emocional de um modo mais geral. Por outras palavras, o perfeccionismo provoca uma vulnerabilidade dominante e agravada. Esta vulnerabilidade é muito real e torna-se a lente através da qual os perfeccionistas veem o que lhes está a acontecer de um modo que os torna muito suscetíveis a toda uma panóplia de problemas de saúde mental. E é por essa razão que Paul e Gord estão tão preocupados: estão convencidos de que o perfeccionismo se esconde por baixo de marcadores mais visíveis de sofrimento mental e emocional — perturbações de ansiedade, preocupações com a imagem corporal, humor deprimido — que parecem estar a aumentar de forma assustadora.

Talvez esta não seja uma revelação surpreendente. A verdade é que o perfeccionismo não seria o nosso defeito preferido se não tivesse um senão. Mas pergunto-me: será que avaliamos bem a dimensão da dor que o perfeccionismo pode infligir? E porque é que o perfeccionismo é tão doloroso? Já vimos que está correlacionado com uma série de problemas de saúde mental, mas ainda temos de analisar de forma aprofundada as razões para tal. Nesse sentido, teremos de desmontar alguns mitos — a começar por uma das máximas mais questionáveis da cultura moderna.

Estamos sob o constante assédio de fantasias de autorrealização e espírito empreendedor, segundo as quais devemos suportar, e até acolher, as adversidades e os desafios para conseguirmos triunfar.

«O que não nos mata torna-nos mais fortes.» Nos últimos anos, as palavras de Friedrich Nietzsche transformaram-se numa espécie de cliché. Encontramos estas palavras escritas nas paredes de corredores de escolas, balneários de ginásios, bibliotecas universitárias, e gravadas em canecas, T-shirts e autocolantes de automóveis. A estrela pop Kelly Clarkson usou-as como refrão para o seu grande sucesso «Stronger», que explora os temas do empoderamento e da recuperação após um desgosto amoroso. Como nos recordou Freud, o sofrimento é uma parte inevitável da vida. Porém, nosnossos dias, as palavras de Nietzsche têm sido invocadas para conferir ao sofrimento um tipo de podermágico e transformador.

A sociedade anseia por acreditar nesse poder mágico. Estamos sob o constante assédio de fantasias de autorrealização e espírito empreendedor, segundo as quais devemos suportar, e até acolher, as adversidades e os desafios para conseguirmos triunfar. Basta visitar qualquer livraria e navegar pelasecção de autoajuda para encontrarmos centenas de títulos que prometeu conferir o poder do«pensamento positivo» ou tornar-nos mais «resilientes». Os life coaches enchem as plataformas dasredes sociais com uma versão da mesma mensagem: «acorda, está na hora de trabalhar», «supera ador», «nada que valha a pena se atinge com facilidade».

Tudo isto significa que a sabedoria popular atual defende que é preciso estar em permanente crescimento, manter uma atitude positiva sem indecisões e superar as adversidades sempre que se sofre um revés. Quando acontecem coisas más, não há problema: basta sacudir o pó, levantar-se econtinuar a lutar por um resultado melhor da próxima vez. As formas comuns de sofrimento —sentimento de infelicidade, confusão, cansaço, ou simplesmente um estado de mágoa, animosidadeou tristeza após um acontecimento stressante — são características dos fracos, dos ociosos, dosdesprovidos de ambição. As pessoas têm de ser fortes, incansáveis e destemidas. Super-heróis, por oposição aos fracos. Esta curiosa relação com o sofrimento é a razão pela qual considero que estamos um tanto ou quanto relaxados no que toca a essas correlações entre o perfeccionismo e o sofrimento psicológico. Tomamos como garantido que o perfeccionismo magoa porque pensamos que a dor, longe de ser destrutiva, é o segredo para uma vida bem vivida. O que não nos mata torna-nos mais fortes.

“A felicidade não é um remédio rápido, é o resultado de um processo de crescimento” – Psicóloga Vera de Melo
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Paul e Gord não concordam com essa ideia, e inclino-me a concordar com eles. O perfeccionismo não é o «herói justiceiro» com que o confundimos. Não é tenacidade abnegada, é um turbilhão de autossabotagem. É o inevitável  desfecho da famosa máxima de Nietzsche, aquela de que não falamosmuitas vezes, mas com a qual, em última instância, o próprio filósofo recluso, atormentado e insonese confrontou.

Vejamos então até que ponto o perfeccionismo se apodera das nossas vidas. Observemos a magnitude do que de facto acontece quando as coisas correm mal. Vamos falar com franqueza sobre a minha própria batalha perdida contra o perfeccionismo.

A minha ex-namorada chamava-se Emily, mas toda a gente lhe chamava «Em». Eu não, nunca a tratava pelo nome, exceto talvez quando começámos a namorar, no liceu. Para mim, durante os vários anos em que estivemos juntos, ela era simplesmente «han» (querida). Se a tratasse por Em, ou, pior, por Emily, ela saberia que algo muito errado se passava.

- Emily — escrevi-lhe numa mensagem, em pânico. — Preciso de saber o que se está a passar.

- Chego a casa às 18h30 — respondeu ela. — Depois conto-te

Às 18h30, Emily ainda não tinha chegado. Como estava atrasada, fui até ao pátio do nosso bloco de apartamentos para apanhar ar fresco. Lembro-me da tonalidade poeirenta do sol, que lançava longas sombras sobre o relvado. Lembro-me dos cheiros característicos de uma noite quente de verão. Os vizinhos estavam a fazer o jantar e era hora de eu fazer o mesmo, mas não conseguia pensar, quanto mais cozinhar.

De súbito, surgiu o carro de Emily, virou à esquerda, passou os portões e desapareceu pela rampa de acesso ao parque de estacionamento por baixo do nosso bloco. Regressei ao prédio, subi a escada e entrei no apartamento, onde me sentei e esperei.

Emily ficou no carro durante algum tempo, muito mais do que o habitual. Ela sabia que algo se passava porque certa noite eu tinha visto mensagens de um número desconhecido surgirem no ecrã do seu telemóvel. Ela disse que as mensagens eram apenas uma brincadeira de sedução com um colega de trabalho que se tinha descontrolado. E eu acreditei nela porque a amava. Porém, pouco tempo depois, surgiu uma outra mensagem menos subtil. De imediato, ela percebeu que eu merecia uma explicação.

O perfeccionismo não é o «herói justiceiro» com que o confundimos. Não é tenacidade abnegada, é um turbilhão de autossabotagem.

A chave de Emily rodou na fechadura e a porta abriu-se. Por momentos, andou às voltas nocorredor, debatendo-se com o casaco e as chaves. Ouvi a sua respiração pesada enquanto percorri ao corredor para se juntar a mim na sala de estar.

- Vamos resolver isto no quarto —disse ela, olhando através de Emily ajoelhou-se à minhafrente, eu estava sentado na borda do sofá. De cabeça baixa, respirou fundo, e eu, por minha vez, também o fiz, esperando que não doesse muito, que a confissão não me marcasse.

Começou por explicar as mensagens, que eram de um homem que tinha conhecido numa saída à noite.

- Estava bêbeda, começámos a conversar na área dos fumadores — Sem dizer mais uma palavra que fosse, o soluço oprimido no final da frase denunciou o que se seguiria. Desviei o olhar, enxuguei o suor das minhas mãos e notei que a minha pele tinha adquirido um tom avermelhado pálido em antecipação.

- Uma coisa levou à outra, e fui parar à casa dele — continuou ela, mal conseguindo pronunciar as palavras.

Seguiu-se uma pausa clara, enquanto Emily se recompunha. Esperei para ver se ela recuaria antes de fazer a dolorosa confissão final. Consegui perceber que queria fazê-lo, mas insisti para que dissesse o que tinha a dizer.

— Dormimos juntos, Thorn, lamento imenso.

O desabafo pareceu encorajá-la. E, para minha surpresa, ela não tinha ainda terminado. Em seguida, contou que se tinha envolvido com várias pessoas enquanto mantivemos uma relação à distância, cada um na sua universidade. Em seguida, revelou ter voltado a ser infiel algumas vezes depois disso. Havia meses que se sentia consumida pela culpa e estava a enumerar tudo aquilo de que se lembrava.

Emily sabia que aquilo que estava a fazer estava certo e era justo. Naquela altura, eu já tinha esquecido todas as boas razões e, sem dúvida, preferia não ter perguntado. Foi ali, naquele momento tão vulnerável, que passámos talvez pelo maior sofrimento emocional das nossas vidas de jovens adultos—expondo-nos à verdade cruel, à vergonha, ao medo, ao desgosto. Emily teve uma atitude inesperada no final da confissão. Parou de falar e estendeu-me a mão, que tremia. Este gesto pareceu-me ultrajante, mas de alguma forma profundamente carinhoso. Não a aceitei, mas gostaria de o ter feito.

Éramos jovens. Cometíamos erros.

Levando a mão de regresso à coxa, Emily parou de falar, soltou um guincho suave de tensão reprimida e respirou bem fundo, tentando controlar o ritmo cardíaco. O que aconteceu imediatamente depois disso é uma mancha na minha memória. Lembro-me apenas da dor e do meu corpo imóvel, e de Emily ali ajoelhada, sem fôlego, a contemplar-me com uma tristeza sem esperança.

A vulnerabilidade acrescida que se esconde por baixo do perfeccionismo vem à tona sempre que as coisas correm mal. E quanto mais expostos estivermos nessas situações, maiores serão os danos causados pelo perfeccionismo. É tão abrangente, mantém-nos tão fixados nas nossas fragilidades, fraquezas e imperfeições, que acaba por exagerar os momentos de vulnerabilidade com grande violência, não deixando qualquer margem de manobra para a mobilização dos recursos emocionais necessários para lidar com o que vem a seguir. Provações como o desgosto que experienciei nesse período tão delicado no início da vida adulta são exemplos muito comuns de sofrimento humano — parte integrante da trajetória irregular da vida. Mesmo assim, quando nos surge sem aviso prévio, como acontece sempre, o perfeccionismo faz-nos sentir que tudo e todos á nossa volta se está a desmoronar.

Na manhã seguinte à confissão de Emily, entrei no duche e deixei-me envolver por água fria. O jato frio no meu rosto cansado despertou-me por momentos do meu torpor. Não tinha dormido. Tinha passado toda a noite a torturar-me com imagens horríveis, o desgosto de perder Emily, acriticar-me a mim mesmo. Porém, apesar de me sentir mais em baixo do nunca, apesar de ter o ar mais devastado de sempre, saí da casa de banho, sequei-me, vesti-me e fui trabalhar.

Há uma epidemia que nos está a esgotar: o perfeccionismo. As explicações do psicólogo Thomas Curran
Há uma epidemia que nos está a esgotar: o perfeccionismo. As explicações do psicólogo Thomas Curran créditos: Presença

Sentei-me à secretária como fazia todos os dias. Fui a reuniões, respondi a e-mails, conversei com colegas como se nada se tivesse passado. Por dentro, sentia uma desordem de emoções, ressentimentos e mágoas. Entregara-me totalmente a Emily e parecia que ela estava a rejeitar-me da forma mais brutal possível. As suas comissões obrigaram-me a confrontar a extensão total das minhas insuficiências — as insuficiências que agora tinha razões de sobra para detestar. Censurei-me. Questionei-me como é que aquilo podia ter acontecido. Pus em causa a minha aparência, o meu corpo, a minha masculinidade. Senti-me fraco e envergonhado, a minha autoestima estava reduzida a cinzas.

O perfeccionismo potencia este tipo de stresse. Torna-nos hipersensíveis a fissuras nas nossas carapaças, tentando desesperadamente manter a personagem exterior perfeita que tanto nos esforçámos por criar.

Quando passamos por situações de stresse, preocupamo-nos com a forma como os outros nos veem. Ruminamos sobre o seu julgamento. Sentimo-nos deveras autoconscientes por não sermos a pessoa que achamos que deveríamos ser. Sempre que os investigadores levam pessoas para o laboratório e as expõem a situações stressantes, como ter de falar em público ou confrontar-se com uma derrota competitiva, são sempre as pessoas com maior grau de perfeccionismo que relatam mais apreensão, mais sentimento de culpa e mais vergonha.

Apesar de atormentados por estas emoções, os perfeccionistas conseguem manter-se bastante ágeis. São capazes de fingir uma vida perfeita durante muito tempo, mesmo quando confrontados com um stresse bastante significativo e mesmo estando sempre sujeitos a uma autocrítica bastante mordaz. Alguns estudos demonstram que os indivíduos com um elevado grau de perfeccionismo semantêm perseverantes, para lá dos limites do conforto, quando confrontados com contratempos,e tendem a ter comportamentos bastante compulsivos, especialmente no local de trabalho." O seu receio é o de serem rejeitados ou não serem bem-vistos se não continuarem a esforçar-se, ou, pelo menos, a parecer que se esforçam.

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Sofri depois do que se passou com a Emily, mas, de alguma forma, consegui aguentar-me. Fi-lo porque o julgamento social antecipado de fazer o contrário —expor a minha vulnerabilidade e permitir-me espaço para me restabelecer — era inconcebível. Não contei a ninguém o que aconteceu. Reprimi a mágoa e escondi a vergonha. Não confiei em ninguém, não procurei ajuda. Segundo alguns estudos, as pessoas com um elevado grau de perfeccionismo evitam ao máximo revelar o stresse ou a angústia que sentem e é raro procurarem ajuda para enfrentar problemas de saúde mental ou recorrerem a terapia. Enterram os seus problemas nas mais inacessíveis profundezas, tratam-nos como se jamais tivessem existido e apoiam-se ainda mais no seu perfeccionismo para manter as coisas sob controlo.

Esta estratégia é desastrosa. Forçar-se a insistir perante as adversidades desencadeia um círculo vicioso que prolonga o stresse e o dissemina por todas as outras áreas da vida. Esta estratégia de sobrevivência visa preservar a imagem perfeita de nós próprios que queremos apresentar aos outros. Mas é uma tentativa de preservação com um preço muito elevado. Porque a pessoa perfeita que procuramos imitar está agora ainda mais longínqua, sobrecarregada de bagagem emocional por cima de toda aquela gestão de imagem.

Ficamos ainda mais exaustos e esgotados. A vida torna-se uma batalha quase heróica para manter a fachada perfeita, que já é tão frágil como porcelana, constituída por nada mais forte ou duradouro do que um sorriso postiço, uma exuberância falsa e os vestígios de um medo reprimido. O stresse, os contratempos, os fracassos visitam-nos uma e outra vez, os julgamentos acumular-se e viramo-nos contra nós próprios por não conseguirmos sair dessa situação. Até que, um dia, a tensão torna-se demasiado insuportável e algo explode. A barragem rompe-se e a ansiedade transborda.

Nunca me esquecerei do meu primeiro ataque de pânico. Foi cerca de três, talvez quatro meses depois de ter acabado com Emily. Não tinha dito a ninguém a razão pela qual nos tínhamos separado; apenas que tinha sido mútuo. Estava no escritório. Lembro-me de estar sentado ao computador, certa tarde, como em qualquer outro dia, cansado, a tomar o terceiro café e a trabalhar em algo que me fizera ficar acordado na noite anterior.

De súbito, surgiu um clarão branco no meu campo de visão. Começou como um incómodo periférico, mas depois foi-se aproximando lentamente, obscurecendo-me a visão, inviabilizando qualquer tentativa de concentração. Não percebi porquê. Continuo a não conseguir perceber bem porquê. Contudo, segundo consta, este tipo de clarões é um sintoma comum de stresse agudo —uma das muitas formas úteis através das quais os nossos corpos gerem a ansiedade, produzindo-a em ainda maior quantidade.

Nunca tinha sentido nada assim. Entrei em pânico. Não conseguia respirar. As minhas mãoscomeçaram a tremer; o meu coração começou a palpitar. Saltei da cadeira, corri para a cozinha e servi-me de água. Mas de nada adiantou. Fui para a sala comum e deitei-me no sofá. Fechei os olhos durante vários segundos, apertei o pulso e respirei fundo várias vezes, na companhia desconcertada de colegas preocupados.

Sabia que tinha de sair dali, mas não queria chamar a atenção para mim. O meu coração continuavaacelerado. Respirei mais fundo e com maior intensidade, tentando abrandá-lo, em desespero.Aconteceu o contrário: o meu coração começou a bater como se estivesse para me saltar do peito. Todos os meus sentidos pareciam estremecer em simultâneo. O ar abafado tornou-se ainda mais denso, apertando-me a garganta, provocando-me formigueiro na pele. Comecei a ofegar, primeiro de forma suave, depois incontrolável, à medida que o meu corpo se transformava no veículo de algo terrível.

Este é um aspeto peculiar do pânico: aquilo que fazemos para o suprimir limita-se a agravá-lo. Pânico alimenta mais pânico. A preocupação dá lugar ao medo e começamos a questionar-nos senão estaremos perante um destino ainda mais sombrio. Desorientados e com medo, perguntamo-nos: «Como é possível o meu coração estar a bater tão violentamente?», «Porque é que nãopara?», «Estarei a morrer?». Pensei e continuei a pensar, mas as respostas escapavam-me.

Depois, perdi o controlo.

Estava certo de ter chegado o fim. Desci a escada à pressa e corri para a rua, seguido de perto pelos meus colegas apreensivos. Ao ar livre, agachei-me no alcatrão sujo de óleo, coloquei a cabeça entre as pernas e inspirei o ar. O mundo exterior pareceu-me desaparecer por instantes. A sós: eu e o meu pânico galopante.

No momento em que me senti prestes a desmaiar, peguei no telemóvel e marquei o número dos serviços de emergência. O meu polegar tremia enquanto hesitava sobre o botão de chamada, pareceu demorar uma eternidade. Então, por uma qualquer casualidade que não consigo explicar por completo, voltei, de repente, a sentir o meu corpo. O meu coração parou de cavalgar. Já conseguia falar.

- Não se preocupem — disse aos espectadores. — Estou bem.

Não estava nada bem. Sentia-me abalado e vulnerável. Nesse momento aterrador, operfeccionismo ampliou o que era uma provação dolorosa, mas não transformadora da vida. Odesespero e a vergonha pelo que sucedeu com Emily tornaram-se tão intensos que atingiram um ponto crítico.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.