A Rita abre o seu livro com um “aviso”. Recorda-nos que “há limites para o que os livros podem fazer pela nossa saúde mental”. Os escaparates estão pejados de livros que nos prometem uma nova “vida interior”, muitos escritos por pessoas sem preparação em saúde mental. Qual a sua opinião sobre este cenário atual?

Honestamente, tenho esta crença de que aquilo que promete, compromete. Limitadora ou não, ajuda-me em algumas análises. Não tenho propriamente uma opinião formada no que respeita aos livros que encontramos atualmente nos escaparates. Preocupa-me mais a desinformação a que somos expostos, e a falta de educação a que somos comprometidos, que nos obriga a procurar soluções milagrosas, para resolver o que não pode ser resolvido individualmente.

Há livros sobre tudo, e isso é uma liberdade que não pode deixar de haver. Sou mais apologista de que as pessoas possuam informação e conhecimento do seu lado, para poderem escolher de forma informada e ponderada, o que consumir.

“Desatar o nó” é uma expressão que nos promete liberdade. No caso do livro que a Rita dá aos escaparates a que nó se refere?

Confesso que promessas me fazem um pouco de comichão. No livro, fiz o que pude para não prometer nada que não pudesse cumprir. Desatar o nó significa desemaranhá-lo. E todo esse processo implica olhar para o fio e perceber os nós que foram ocorrendo.

Quando me refiro a desatar o nó, refiro-me a conhecer os nós que foram feitos, e pacientemente, procurar perceber como desfazê-los.

Quando a voz na nossa cabeça é um problema. O neurocientista Ethan Kross estudou a questão e dá-nos as ferramentas para a resolvermos
Quando a voz na nossa cabeça é um problema. O neurocientista Ethan Kross estudou a questão e dá-nos as ferramentas para a resolvermos
Ver artigo

Há pessoas mais propensas a entrar e fixar-se no loop de pensamentos que as aprisiona?

Todas as pessoas estão potencialmente propensas a entrar em loops de pensamentos. Tanto que, todos nós já o fizemos algumas vezes. Há, no entanto, uma vulnerabilidade maior nas pessoas que tendem a fixar-se nesses pensamentos, ao ponto de estes impactarem negativamente as suas vidas.

Esta vulnerabilidade de que falo, pode ser definida pelos contextos em que essas pessoas se desenvolveram, que poderão ter tido impacto na forma como percebem o mundo à sua volta. Muitas vezes, como resultado das cognições que fazem, essas pessoas poderão ter maior predisposição para desenvolver alguma doença mental.

A sociedade atual com o ritmo, objetivos e enorme quantidade de tarefas que nos impõe contribui para o aumento destes pensamentos ruminativos?

Este seria um livro de autoajuda, se realmente o overthinking fosse um problema isolado e individual. Mas não é. Neste livro exponho a minha visão sobre como a nossa sociedade se organiza, e a influência que também ela tem na nossa estrutura de pensamento.

É um livro que, além de promover a procura por ajuda, induz a uma reflexão sobre os nossos comportamentos individuais e coletivos.

Rita Selas é natural de Vila Nova de Gaia e é mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade da Maia. Membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a sua área de intervenção é maioritariamente focada em jovens e adultos que procuram conhecer-se e tornar-se ativos no seu bem-estar.

Entusiasta das relações interpessoais, acredita que o maior agente de mudança está intrinsecamente presente na relação que mantém com as pessoas e com o mundo e, portanto, procura manter uma relação próxima, íntima e incondicional com as pessoas que acompanha. Gosta de ar livre e tudo o que envolva desportos de adrenalina.

Fundadora da página de Instagram Ilustrerita, procura unir o conhecimento terapêutico e o amor pela ilustração para descomplicar a mente humana e contribuir para um mundo melhor.

Vivemos tempos rápidos e sem filtros, de facilitismos e de grande acesso a (des)informação. Torna-se difícil assimilar o que é necessário e distinguir o que não é. Absorvemos informação que nem sempre nos é útil e que pode contribuir para estados de maior preocupação. O mundo em que vivemos é bastante mais acelerado e complexo do que era. Sinto que não estamos emocionalmente aptos para enfrentar os desafios que a sociedade atual nos coloca. É necessário aprender a questionar, refletir e ter espírito crítico, assunto que se enquadra também na nossa organização social, através do modelo de educação pelo qual ainda nos regemos.

Há sinais que nos fazem perceber que temos tendência para pensamentos ruminativos?

Há sim. Entre outros, enumero alguns que devemos ter em atenção, caso surjam de forma frequente como sentir preocupação constante com inúmeras questões ou assuntos; ter dificuldade em decidir e duvidar constantemente da decisão tomada; ter pensamentos negativos sobre si próprio de forma constante. Aos que enunciei, há que acrescentar os seguintes: sentir que pensar é quase como uma luta para controlar impulsos e vontades; sentir que as soluções encontradas, são mais problemas; procurar sempre cenários alternativos para situações que aconteceram no passado; imaginar cenários futuros, muitas vezes irrealistas, para sentir controlo sobre o desconhecido.

Em termos práticos, aqueles que se prendem com a gestão das nossas vidas quotidianas, de que forma este overthinking é pernicioso?

Uma vez que o overthinking é um mecanismo que nos aprisiona em caminhos sem saída, isso por si só já é pernicioso. A prisão dos nossos pensamentos pode levar-nos a recorrer a comportamentos mais desajustados ou discordantes com o contexto.

Pode também ter impacto no nosso discurso interno, através de narrativas de autocrítica; pode influenciar a nossa cognição, como exploro no livro, limitando o nosso raciocínio numa uma visão em túnel; pode ter um impacto negativo nas nossas relações interpessoais, onde estas se podem tornar num campo de análises distorcidas, podendo promover interpretações erradas e conflitos relacionais. Por fim, alimenta uma sede grande de controlar o incontrolável: porque quando pensamos e analisamos tudo ao ínfimo pormenor, para arranjar soluções para as nossas distorções, não procuramos soluções ou perspetivas que nos permitam adaptar à realidade que temos à nossa frente.

Desatar o Nó
Ilustração a partir do livro "Desatar o Nó". créditos: Manuscrito

O overthinking inscreve-se no quadro da doença mental?

A ruminação, ou o overthinking, não está necessariamente ligada a doenças mentais, porque, como disse, todos podemos entrar nesta espiral uma vez ou outra, sem que soframos necessariamente de alguma patologia. Mas, se for uma tendência frequente, pode ser o combustível suficiente para se entrar numa espiral patológica.

Ainda assim, trata-se de um processo transdiagnóstico, porque é algo que pode estar presente em diversas patologias como a depressão, ansiedade ou perturbação obsessivo-compulsiva, por exemplo, podendo ser um mecanismo que impulsiona essas patologias ou que as mantém.

A Rita traz ao seu livro o conceito de “distorções cognitivas”. Quer explicá-lo aos leitores e de que forma impacta os pensamentos ruminativos?

As distorções cognitivas são nada mais do que o nome indica: formas distorcidas de cognição. São, no fundo, maneiras distorcidas de processar informação acerca das nossas experiências de vida, que podem resultar em interpretações enviesadas.

Quando analisamos uma situação como sendo espetacular ou uma porcaria, podemos estar perante a distorção cognitiva do pensamento dicotómico. Ou o dia correu muito bem, ou correu muito mal. Não está presente a capacidade de ponderar as diferentes nuances do dia.

Quando tendemos a ruminar, podemos encontrar-nos em loop de pensamentos com fortes cargas de distorções cognitivas. Ficamos presos a pensamentos como: “porque é que ninguém me compreende?”; “é sempre a mesma coisa”; “vai tudo correr mal”; sendo estas formas enviesadas de analisar a realidade, colocando-nos perante dúvidas sem solução.

Todos nós podemos utilizar algum tipo de distorção cognitiva. Saber detetá-las e analisá-las ajuda-nos a desenvolver atitudes mais realistas e, acima de tudo, mais funcionais.

Desatar o Nó
créditos: Manuscrito

Um pensamento intrusivo origina um pensamento ruminativo?

Não necessariamente. Pensamentos intrusivos são pensamentos espontâneos que aparecem de forma involuntária, como forma de processamento de informação, muitas vezes inútil e inconsciente. Para os criativos, podem ser pensamentos de ouro.

Quando uma pessoa tende a ruminar pensamentos, um pensamento intrusivo pode ser o combustível suficiente para colocar a máquina a trabalhar em loop.

Quando tendemos a ruminar, um pensamento que se assemelhe a: “e se eu pregasse uma rasteira a esta criança, tão feliz, a correr?”, pode ser o suficiente para nos fazer questionar sobre os nossos próprios valores ou intenções, colocando em dúvida se seremos boas pessoas por pensarmos assim. Isto, por certo, pode levar a ruminações infindáveis e dolorosas de reviver.

Somos seres emotivos. Tal facto torna-nos mais expostos a desenvolvermos pensamentos ruminativos?

Somos seres emotivos. Tal facto, torna-nos adaptáveis ao meio. Todos estamos expostos a fatores que podem impulsionar pensamentos ruminativos, sejam eles psicológicos, ambientais ou genéticos.

O que nos torna mais expostos a desenvolver pensamentos ruminativos pode ter mais a ver com as nossas vivências pessoais, os significados que lhes atribuímos e a estrutura de pensamento que se foi moldando ao longo do tempo. Obviamente que isto tem todo um impacto na forma como experienciamos as emoções que resultam destes pensamentos, mas saber como a mente funciona; perceber como melhor gerir as nossas emoções e, até, aceitá-las como parte integrante da nossa experiência, pode ajudar a diminuir esta tendência ruminante.

O livro da Rita traz um objetivo, o de ajudar pessoas que padecem de pensamentos ruminativos. De que forma aborda este problema? Qual o caminho que indica ao leitor?

O objetivo do livro é o de ajudar pessoas que padecem de pensamentos ruminativos, a procurar ajuda. Neste livro sobre overthinking, abordo temas muito para além de pensamentos em loop. Desconstruo o pensamento, explico como é que ele se estrutura, exploro a influência de diversos fatores da nossa vida, na forma como pensamos.

Explico como a nossa estrutura de pensamento molda a perceção que temos sobre nós, sobre os outros e o mundo. E depois como isso tudo influencia a forma como analisamos as situações; o impacto que essas análises têm nas nossas emoções; o impacto das nossas emoções nos nossos comportamentos e, consequentemente, no nosso bem-estar ou mal-estar.

Mas, para conseguirmos integrar todas estas reflexões, é importante sabermos como o pensamento acontece no nosso cérebro, que processos cognitivos usamos, que "acidentes de percurso" podem acontecer nesses processos, como por exemplo as distorções cognitivas, os pensamentos intrusivos ou os pensamentos automáticos, de que falo no livro.

O caminho creio que passa por procurar ajuda, para desatar o nó.