“O tempo não cura todas as feridas. As dores da infância não desaparecem miraculosamente com os triunfos da vida adulta, as inseguranças da adolescência não se diluem assim que alcançamos uma carreira estável, e uma relação amorosa traumática não se esquece só porque encontrámos a pessoa ‘certa’. Mesmo que tenhas tido ‘uma infância normal’, ‘bons pais’ ou que o mundo esteja cheio de acontecimentos terríveis bem piores do que aqueles que viveste, muitos dos teus frequentes sentimentos de inadequação, bloqueio ou incompletude podem, afinal, ter origem num trauma”. Estas são palavras que retiramos da sinopse ao livro Quando Algo não Está Bem (edição Manuscrito), assinado por Márcia Inês Coelho. Na obra, a especialista em Trauma, Saúde Mental e Inteligência Emocional, mostra-nos, que não são apenas as grandes tragédias que nos afetam profundamente. A autora guia-nos num exercício de reencontro com partes nossas que foram perdidas, reprimidas ou negadas ao longo da vida.
O livro é, acima de tudo, uma viagem aos nossos pequenos traumas, feridas e buracos emocionais. E é também uma jornada de crescimento emocional. É intenção da autora que aprendamos a reconciliar-nos com a nossa vulnerabilidade e a resgatar a nossa força pessoal.
Do livro, publicamos um excerto:
O que acontece dentro de nós quando vivemos um trauma
Tinha chegado o momento de me apresentar à turma. Enquanto tentava que o meu coração não me saltasse pela boca, tinha as mãos geladas, as minhas pernas tremiam e a minha voz oscilava como um telemóvel sem rede. Fosse para uma apresentação na escola ou, mais tarde, para uma reunião no trabalho, a experiência de falar em público sempre foi um problema para mim.
Para te explicar a origem dessa cascata de reações fisiológicas, preciso de te contar que, na minha infância, a interação com outras crianças não começava com um convite normal para brincar ou para partilhar uma cassete com as últimas canções dos Onda Choc. O mais comum era fazerem-me sempre a mesma primeira pergunta: “Que tens no olho?”
Nasci com um angioma. Por outras palavras, tinha uma espécie de bola roxa, do tamanho de uma grande uva, abaixo do meu olho esquerdo. Esse tumor benigno, resultado do acúmulo anormal de vasos sanguíneos na pele, aumentou até ao meu quarto ou quinto aniversário e foi diminuindo gradualmente desde aí, ficando parecido com, bom, uma uva passa.
Durante todo o meu desenvolvimento, tive de lidar com a curiosidade alheia e, algumas vezes, com comentários maldosos a respeito da minha aparência. Diante do constante questionamento “Que tens no olho?”, aprendi a responder de forma sucinta: “Nasci assim.” Não tenho a certeza se foram os adultos que me instruíram a dar essa resposta direta, mas a verdade é que, embora insatisfatória, ela conseguia desviar outras perguntas indesejadas. Fosse como fosse, via o olhar de pena ou até de aversão nos rostos de outras crianças (e devo dizer, de alguns adultos também). Infelizmente, essa experiência fez-me sentir demasiado insegura e temerosa em relação ao julgamento social. Aprendi que ser vista era perigoso. Que era mais prudente calar-me e esconder-me, guardando a minha autenticidade para o espaço seguro que encontrava quando regressava a casa.
“Sou diferente e defeituosa. Sou inadequada. Ninguém quer ser meu amigo. Vou ser excluída.” Eis algumas das primeiras crenças dolorosas que interiorizei sobre mim mesma, numa idade que nem consigo precisar.
Sentir-me observada ou ter de me expressar perante uma plateia era como caminhar diante de um batalhão de fuzileiros, enquanto tropeçava nas armadilhas das minhas respostas traumáticas.
Quando nos colocamos diante de uma audiência, é natural que existam pessoas com expressões recetivas e outras mais inquisitivas, mas isso não representa necessariamente uma ameaça à nossa existência. Acontece que, para um cérebro cuja perceção de perigo foi distorcida por experiências traumáticas, até expressões claramente mais neutras podem ser interpretadas como perigosas.
Estar em público tornava-se progressivamente ativador e exaustivo. Tinha as chamadas “brancas” (completas falhas de memórias) e bloqueios motores que pareciam durar uma eternidade. Por essa razão, sem perceber, comecei a desenvolver um profundo medo da imobilidade. Tinha pavor de que o meu corpo me “traísse” e fizesse novamente paralisar diante dos outros, antecipando a humilhação que isso poderia trazer. Subjacente a esse medo, estava o natural evitamento do estado que se segue ao congelamento: a sensação de o sangue secar nas veias, de as pernas perderem repentinamente as forças e de uma pessoa se encontrar diante do abismo do colapso. Quem já o experienciou saberá que essa é uma experiência verdadeiramente assustadora por se assemelhar — em muito — ao estado de quase morte.
Resumidamente, é isto que pode acontecer quando somos sequestrados pelos nossos traumas. Mesmo que nos digam “tu consegues!” ou até “não existe nenhum perigo real”, o nosso corpo continuará a fazer o seu papel: proteger-se do que perceciona como um "perigo", usando para isso qualquer uma das respostas de sobrevivência disponíveis: lutar, fugir (do inglês fight-or-flight response) ou paralisar. Quando olhamos para os nossos comportamentos automáticos atuais como respostas de defesa que, no passado, nos preservaram a vida (real ou simbólica), podemos tornar-nos mais compassivos e disponíveis para compreender a nossa história.
O que hoje parece sabotar a tua vida, outrora foi uma forma de lhe sobreviver. O stress desencadeia uma resposta de sobrevivência no corpo, mas isso, por si só, não é necessariamente um problema. Se a diferença entre veneno e remédio está na dosagem, podemos dizer o mesmo sobre o stresse funcional e prejudicial (e entre trauma e resiliência).
Walter B. Cannon, fisiologista norte-americano, foi um dos primeiros a explorar a resposta do corpo ao stresse do ponto de vista biológico. Há cerca de um século, descobriu que o stresse é uma resposta física importante para a sobrevivência das espécies. Sem ele, não teríamos capacidade de reação e defesa. Então, que distingue uma simples experiência de stresse de uma experiência traumática?
Quando entramos em contacto com uma situação desafiadora, o sistema de ameaça é ativado e o corpo recebe uma descarga neuroendócrina, inicialmente mediada por hormonas de adrenalina e noradrenalina, que aumentam o nosso sentido de orientação preparatória e estado de alerta, deixando-nos desta forma prontos para uma resposta defensiva de luta ou fuga. Num segundo momento, entra em ação o famoso cortisol, que assume o papel de reforçar a nossa resistência e de sustentar a resposta ao stress ao longo do tempo. Sentimos o nosso batimento cardíaco acelerar, a nossa visão torna-se mais afunilada, os músculos tensionam-se e a respiração fica mais curta e superficial. Essa coordenação é possível graças à dança sincronizada do nosso sistema nervoso simpático e parassimpático (uma espécie de acelerador e travão do cérebro, respetivamente). O primeiro entra em cena, ativando o corpo e preparando-o para uma resposta de mobilidade e ação imediata, enquanto o segundo atua como contraponto, desacelerando e restabelecendo o equilíbrio quando a ameaça diminui. Essa colaboração orquestrada é vital para a nossa adaptação e bem-estar, permitindo-nos enfrentar desafios e, ao mesmo tempo, recuperar um estado de calma quando a situação o permite.
Esta é uma resposta clássica de ativação automática do nosso sistema nervoso.
Até aí, não existe qualquer problema. A ativação do corpo diante do perigo percecionado, assim como uma reação de luta ou fuga, faz parte de um sistema nervoso saudável, desenhado para responder prontamente aos estímulos do meio e sustentar a carga de stress, embora por um tempo limitado.
O “problema” surge quando o corpo recebe uma carga de stress e não existe uma descarga adequada. Por outras palavras, o trauma pode surgir quando o corpo é ativado para lidar com uma potencial ameaça e a resposta de defesa é, por alguma razão, interrompida, reprimida ou pouco eficaz para lidar com o suposto perigo. Dessa forma, o corpo sente que a ameaça não passou, vendo-se impedido de fazer uma descarga eficiente que lhe permita regressar ao seu estado de repouso, relaxamento e recuperação. Isso leva também a que muitas pessoas fiquem presas nas suas respostas de defesa: umas podem fixar-se numa resposta de luta, estando sempre reativas à mínima coisa que lhes agite as entranhas; outras possuem uma resposta padronizada de fuga, evitando constantemente situações em que se sintam expostas; outras ainda, por sua vez, fixam-se numa resposta de congelamento, sentindo-se frequentemente paralisadas diante da vida (sendo que existem também os que vão alternando entre estas diferentes respostas de sobrevivência interrompidas).
O percussionista e musicólogo Michael Steven Hartman recorda-nos sabiamente que o ser humano é uma máquina rítmica. De facto, tal como nos ciclos da Natureza — visíveis na dança entre o dia e a noite, na coreografia das marés
que enchem e vazam, na jornada da lua nova à lua cheia e no próprio movimento cíclico das estações do ano —, o bom funcionamento do nosso sistema nervoso implica um ritmo saudável entre carga e descarga, entre mobilidade e imobilidade.
É no contacto com essa variabilidade e na capacidade de recalibrarmos o nosso sistema nervoso (ajustando-o adequadamente a diferentes necessidades, contextos e tipos de ativação) que vive a nossa saúde integral. Tal significa que ativarmo-nos não é sinal de trauma ou adoecimento. Não nos conseguirmos regular adequadamente, sim.
A saúde é ritmo e a doença é a quebra dele.
A solução, como veremos mais à frente neste livro, passa por recuperarmos a capacidade de reconhecermos adequadamente o perigo e a segurança no nosso quotidiano, assim como de acedermos a diferentes recursos de resposta e nos regularmos eficazmente. Parece complexo, mas farei o meu melhor ao longo dos próximos capítulos para te dar exemplos e ferramentas que te ajudem a criar condições para o verdadeiro equilíbrio interno que agora sabes que não é um lugar estático e permanentemente sereno, mas sim um movimento rítmico e gradual de desregulação e regulação, que acompanha a natureza da própria vida.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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