As causas de morte mudaram irrevogavelmente ao longo do tempo. No decurso de alguns séculos, passámos de um mundo onde a doença e a violência atingiam qualquer pessoa, independentemente da idade, e onde a fome estava à distância da próxima colheita, para uma realidade onde o excesso de alimentos se tornou um problema em muitos países. Como é que há um século se morria sobretudo de doenças infeciosas quando na atualidade as principais causas de morte, nas nações industrializadas, são as doenças cardíacas e o cancro?

Estas são algumas das questões que Andrew Doig leva para o seu livro Este Ciclo Fatal: Uma História da Morte (edição Desassossego). Obra que apresenta um retrato esclarecedor e global da morte, com um olhar detalhado sobre as suas principais causas — das doenças infeciosas às genéticas, da violência aos hábitos alimentares —, quem afetam e quem foram os investigadores que permitiram vencer essas patologias.

O que é a morte?

A 15 de abril de 1989, o Liverpool ia defrontar-se com o Nottingham Forest numa semifinal de futebol da Taça de Inglaterra no estádio Hillsborough do Sheffield Wednesday. O tráfego lento fez com que muitos fãs do Liverpool chegassem atrasados, e, pouco antes do início da partida, vários milhares ainda esperavam cá fora, ansiosos por entrar. A polícia, então, abriu um conjunto de portões que levavam à secção central já sobrelotada de uma bancada de betão, onde os espectadores ficariam em pé para assistir ao jogo. Entre a bancada e o campo estava uma grande vedação de aço, instalada para impedir que alguém invadisse o campo. As barreiras foram demasiado eficazes. À medida que os retardatários corriam pela bancada acima, as pessoas que estavam à frente foram empurradas e esmagadas contra a vedação. Morreram 96 pessoas e 766 ficaram feridas.

Tony Bland, um jovem fã do Liverpool de 18 anos, fora ao jogo com dois amigos. As suas costelas foram fraturadas e os seus pulmões perfurados, o que impediu a chegada de oxigénio ao cérebro. Isto levou a danos cerebrais catastróficos e irreversíveis, deixando-o num estado vegetativo permanente, incapaz de ver, ouvir ou sentir o que quer que fosse. No entanto, o seu tronco cerebral ainda estava em funcionamento, mantendo ativos os sistemas circulatório, respiratório e digestivo. Aos olhos da lei, isto significava que ele ainda estava vivo, ainda que não tivesse hipótese de recuperação. Enquanto ele permanecesse entubado e recebesse assistência médica, o seu corpo poderia viver por muitos mais anos. Os médicos e os pais de Tony chegaram à conclusão de que de nada valia continuar os seus cuidados médicos, e que, portanto, o entubamento e outras medidas que mantinham o corpo vivo deveriam ser interrompidos. No entanto, eles estavam preocupados que isso pudesse constituir um crime, especialmente após um médico-legista dizer que, a seu ver, remover o tubo de alimentação seria considerado homicídio. Foi até preciso recorrer ao conselho do Alto Tribunal da Justiça.

Após considerar os assuntos éticos e morais trazidos pelo caso, os juízes concordaram que: É perfeitamente razoável que os médicos responsáveis concluam que não há qualquer benefício para Anthony Bland em continuar os procedimentos médicos invasivos necessários para a manutenção da sua vida. Assim sendo, os médicos não têm nem direito nem dever de continuar tal tratamento. Portanto, não serão acusados de homicídio se interromperem este tratamento. O tratamento foi cessado a 3 de março de 1993, vinte e dois anos depois do nascimento de Tony.

As barreiras letais foram retiradas dos estádios, e as perigosas bancadas para se estar de pé convertidas em assentos. Ainda estão em aberto casos relacionados com o desastre de Hillsborough. As questões colocadas são as seguintes: que idade tinha Tony Bland quando faleceu? Dezoito, ou vinte e dois? Ele morreu dos ferimentos naquele dia, ou da cessação do tratamento? Outrora, a morte era definida com o parar da respiração e do batimento cardíaco.

Sobre o autor

Andrew Doig é professor de Bioquímica na Universidade de Manchester. Estudou Ciências Naturais e Química na Universidade de Cambridge e Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. É professor em Manchester desde 1994. O seu campo de investigação centra-se na biologia computacional, neurociência, demência, biologia do desenvolvimento e proteínas.

Para saber se alguém estava vivo, punha-se um espelho à frente do seu nariz: se ficasse embaçado, indicava que ainda havia respiração, mesmo que ténue. Alternativamente, se alguém estivesse vivo, ao incidir uma luz nos seus olhos, as pupilas contrair-se-iam. Premir debaixo da unha causaria uma resposta de dor. Uma cebola crua debaixo do nariz poderia fazer alguém acordar. O esvaziamento dos intestinos ou da bexiga era também um mau sinal. Métodos mais exóticos para determinar se alguém estava morto incluíam “deitar vinagre e sal na boca”, “pôr insetos na orelha” e “cortar as solas dos pés com lâminas”. Apertar os mamilos também era popular. Nenhum destes métodos é infalível, levando muitos a temer o horror que é serem enterrados vivos. Este medo não era totalmente irracional. Em 1896, foi fundada a London Association for the Prevention of Premature Burial [Associação Londrina para a Prevenção do Enterro Prematuro]. Esta associação defendia reformas que assegurassem que os enterrados estivessem definitivamente mortos, após a descoberta de mais de cem relatórios de pessoas aparentemente enterradas vivas. Uma forma popular de evitar isto era usar um caixão de segurança, onde uma corda poderia ser puxada de dentro do caixão para tocar um sino.

Apesar da venda de vários tipos de caixões de segurança, não há registo de ninguém ter regressado da campa graças a eles. A cremação, ao invés do enterro, era uma possível alternativa, já que é impossível ressuscitar depois da incineração. No entanto, a cremação enfrentava forte oposição por parte da Igreja e da tradição, sendo considerada ilegal no Reino Unido até 1884.

Também são possíveis acidentes devido a trocas de identidade. Em 2012, um lavador de carros de 41 anos do Brasil, Gilberto Araújo, apareceu no seu próprio velório. Um colega de trabalho, que era muito parecido com ele, tinha sido assassinado. A polícia pediu ao irmão de Araújo que identificasse o corpo na morgue, e este enganou-se. Após ter sido informado sobre o funeral por via de um amigo, o próprio Araújo teve de aparecer para convencer toda a gente de que não era ele quem estava no caixão.

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Os cursos de primeiros socorros ensinam como realizar a ressuscitação quando o coração ou a respiração de alguém para; por exemplo, após um afogamento. Nessa situação, nunca se deve parar de tentar reanimar o paciente, e deve-se continuar até um profissional médico chegar para tomar conta do assunto. Há muitos casos de pessoas que decidiram, incorretamente, que alguém morreu, interrompendo precocemente a respiração boca a boca ou as compressões no peito. Sem treino médico, nunca se pode concluir que alguém morreu, ainda que se tenha a certeza da ausência de respiração e batimento cardíaco há já algum tempo. A ressuscitação boca a boca ou o bombeamento manual do coração podem bem ser a única coisa que ainda mantém o cérebro vivo.

As definições modernas da morte focam-se na ideia da morte cerebral, em vez da cessação da respiração, do batimento cardíaco, da resposta à dor ou da dilatação das pupilas. A perda de fluxo sanguíneo ou da respiração podem causar a morte apenas quando a falta de oxigénio é prolongada o suficiente para causar destruição irreversível do cérebro. Isto demora, por norma, seis minutos. O cérebro é o centro da nossa consciência e do nosso pensamento, sendo então um órgão que não pode ser transplantado sem uma alteração da identidade. A morte cerebral pode ser definida como o término total e irreversível da atividade neuronal, reconhecível pelo coma irreversível, e pela ausência de reflexos do tronco cerebral ou respiração. Um socorrista é, obviamente, incapaz de diagnosticar uma morte cerebral, pelo que nunca se deve parar a ressuscitação. Uma rara exceção é se a cabeça estiver separada do corpo, em que até um total amador na medicina pode concluir com toda a certeza que o paciente já “bateu a bota”. No entanto, durante a Revolução Francesa, foi observado que uma cabeça cortada por uma guilhotina aparentemente conseguia viver durante cerca de dez segundos.

Porque é que o tronco cerebral é escolhido para determinar a morte, em vez de qualquer outra parte do cérebro? O tronco cerebral está localizado na parte inferior central do cérebro. Os neurónios motores e sensoriais viajam pelo tronco cerebral, ligando o cérebro superior à coluna vertebral. O tronco coordena os sinais de controlo motor enviados pelo cérebro ao resto do corpo, é necessário para os sistemas de alerta e excitação, e controla funções fundamentais para a vida, como a respiração, pressão sanguínea, digestão e ritmo cardíaco. Sem um tronco cerebral em funcionamento, não há consciência nem manutenção de funções corporais básicas. Há dez nervos cranianos importantes ligados diretamente ao tronco cerebral. Portanto, a atividade do tronco cerebral pode ser avaliada verificando-se se estes reflexos controlados pelos nervos cranianos estão em funcionamento. Por exemplo, a pupila do olho deve contrair ou dilatar em resposta à luz ou à escuridão; qualquer contacto com a córnea deve fazer o olho pestanejar; abanar a cabeça rapidamente de um lado para o outro deve fazer os olhos moverem-se; e tocar na garganta deve causar engasgo e tosse. Todos estes reflexos só necessitam de um tronco cerebral funcional e não são controlados conscientemente, pelo que não é possível dilatar ou contrair as pupilas com o pensamento. Um diagnóstico de óbito cerebral pode ser confirmado ao verificar a falta de fluxo sanguíneo no cérebro através de uma imagem de ressonância magnética, ou a falta de atividade elétrica com um eletroencefalograma.

Usar a morte cerebral e a atividade do tronco cerebral para determinar se alguém está vivo (ou morto) também tem os seus problemas, já que o cérebro apresenta diferentes partes. O que é que acontece se umas partes estiverem a funcionar, e outras não? Se alguém está num estado intermédio entre consciência e ausência total de atividade cerebral, então definir a morte não é assim tão simples.

O coma é um estado de consciência do qual não se pode acordar. O ciclo de sono não funciona, e o corpo não responde a estímulos como a fala ou a dor. A consciência requer um córtice cerebral em funcionamento, além do tronco cerebral. O córtice cerebral é responsável pelo pensamento superior: linguagem, compreensão, memória, atenção, perceção, entre outros. O coma pode ser causado por intoxicação, envenenamento, AVC, ferimento na cabeça, hemorragia, hipoglicemia, entre outros problemas. Após estes traumas, o corpo entra num estado de coma para ter uma oportunidade para recuperar. O coma pode também ser induzido deliberadamente, através do uso de drogas, para ajudar a recuperação de um ferimento cerebral. Os comas geralmente duram alguns dias ou semanas, embora a recuperação após muitos anos seja possível.

Num estado vegetativo, uma pessoa está acordada, mas não ciente. Isto significa que é possível efetuar certas funções, como dormir, tossir, engolir e abrir os olhos, mas impossibilita processos mentais mais complexos. Os olhos não seguem objetos em movimento, e o paciente não responde a comunicação verbal nem mostra emoções. Isto pode ser causado por danos cerebrais decorrentes de lesões ou por uma condição neurodegenerativa como a doença de Alzheimer. Recuperar de um estado vegetativo de longa duração é altamente improvável.

A síndrome de encarceramento é uma condição horrível em que o paciente não consegue mover nada além dos olhos, mas mantém a consciência. Raramente tem cura, se bem que o medicamento para a insónia Zolpidem tenha revelado algum potencial para promover a recuperação. No pior dos casos, nem os olhos se mexem. Nesta situação, o tronco cerebral está danificado, mas não o cérebro superior, incluindo o córtice cerebral. É fácil confundir com um coma, mas a experiência do paciente é totalmente diferente, já que está acordado, mas imóvel. A síndrome de encarceramento completo pode ser identificada através de métodos de imagiologia cerebral modernos. Por exemplo, se pedirmos a alguém com síndrome de encarceramento que imagine jogar ténis, uma parte específica do cérebro será ativada.

O estado das pessoas com este tipo de condições é uma área de debate contínua, que envolve lei, ética e medicina. O caso de Tony Bland é apenas um exemplo dos complexos assuntos envolvidos.

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