Qual a razão para tantas estranhas tradições persistirem na era da ciência e da tecnologia? E o que impele os seres humanos a empregarem uma tão grande parte do seu tempo – que poderiam usar para ganhar dinheiro, socializar, ou estar com a família – nestes fenómenos?
Praticados por todos e cada um de nós, e fundamentais para todas as nossas instituições sociais, os rituais constituíram, durante anos, um dos grandes mistérios do comportamento humano. Mas agora, e pela primeira vez, uma ciência do ritual interdisciplinar permite que percebamos que estas práticas, aparentemente bizarras ou fúteis, estão muitíssimo imbuídas de sentido e importância, como o demonstra o antropólogo e cientista cognitivo Dimitris Xygalatas no livro Ritual (edição Temas e Debates).
Do bater na madeira até ao sussurro de orações, das celebrações do Ano Novo até às tomadas de posse presidenciais, o ritual permeia todos os aspetos importantes das nossas vidas privadas e públicas. E, quer seja praticado num contexto religioso ou secular, é uma das mais especiais de todas as atividades humanas.
Durante duas décadas, o professor de Antropologia e Ciências Psicológicas na Universidade de Connecticut Dimitris Xygalatas visitou comunidades nos quatro cantos do planeta, realizou centenas de entrevistas e assistiu a alguns dos mais macabros ritos de passagem para investigar uma das práticas mais antigas e enigmáticas da cultura humana. Neste livro, conduz-nos através de um conjunto de vastíssimas descobertas científicas, que revelam os funcionamentos internos dos rituais e as importantes funções que desempenham para os indivíduos e as suas comunidades.
De Ritual publicamos o excerto que encontra de seguida.
O paradoxo do ritual
A minúscula ilha grega de Tinos, no Mar Egeu, o ferry diário do Pireu balança até ao porto principal. As casas cúbicas caiadas, alinhadas junto à costa, sobressaem em nítido contraste com os enrugados montes castanhos que espreitam atrás de si. Uma meia dúzia de camionetas e alguns carros de passageiros emergem lentamente do convés inferior, enquanto os turistas se apressam pelas pranchas de desembarque. No cais, os motoristas de táxi e os agentes de viagens amontoam-se em seu redor, empunhando cartazes com nomes de hotéis, enquanto outros anunciam oportunidades de aluguer de quartos de última hora. Com toda a rapidez, os visitantes eclipsam-se, a maioria para as praias e os museus locais. E então a atmosfera de férias sofre uma estranha mudança.
Os restantes visitantes, a maioria vestida de preto, deslocam-se a um ritmo diferente. Parecem solenes e determinados. Assim que se reúnem no cais, um após outro, colocam-se de joelhos e mãos no chão e começam a gatinhar através da rua principal da povoação. Alguns deles deitam-se de barriga no chão e usam os cotovelos para se arrastar. Outros deitam-se perpendicularmente à rua e rolam pela íngreme ladeira acima, como verdadeiros Sísifos, rodando e retorcendo os corpos e empurrando-se com os cotovelos para se deslocarem. Uma mulher deita-se de costas enquanto dois homens a puxam pelas mãos. Há também aqueles que carregam crianças às cavalitas enquanto gatinham.
Estamos a meio do verão. Há pouca sombra e a rua empedrada coze ao sol. À medida que vão avançando pela íngreme ladeira, a cena começa a parecer-se com um campo de batalha: joelhos e cotovelos ensanguentados, mãos e pés arranhados, corpos feridos e rostos plenos de agonia. Muitos desfalecem com o calor e o cansaço, mas persistem. Os familiares que os acompanham apressam-se a oferecer-lhes água e, assim que recobram os sentidos, continuam a sua ascensão.
O seu destino é a igreja ortodoxa de Nossa Senhora de Tinos. Alcandorada no cume do monte, este espetacular templo é construído inteiramente em mármore branco, importado da vizinha ilha de Delos. De longe, a sua fachada, adornada por inúmeros pórticos arqueados, balaustradas esculpidas e janelas ornamentadas, parece a mais fina das rendas. Em 1823, segundo a lenda, foi desenterrado um antigo ícone, depois de a sua localização ter sido revelada, num sonho profético, a uma freira local. A igreja, que foi construída no mesmo sítio para o acolher cedo, tornou-se um local de peregrinação. As pessoas acorrem a Tinos todos os anos, vindas de todos os cantos do mundo, para ver o ícone, que se diz operar milagres.
Depois de alcançarem de gatas o topo do monte, os peregrinos têm de arrastar-se por dois lanços de degraus de mármore antes de prestarem o seu tributo ao ícone. Esculpido num refinado pormenor, retrata a Anunciação. A cena mal se vê, pois a imagem está coberta pelas joias doadas pelos visitantes. Centenas de oferendas votivas em prata estão penduradas no teto que a cobre, sinais de juras e milagres. Um coração, uma perna, um par de olhos, um berço, um barco.
Por muito extraordinárias que estas cenas de automortificação sem sentido aparente possam parecer, a verdade é que existem cenas comparáveis por todo o mundo. No Médio Oriente, os muçulmanos Xiitas retalham a carne com lâminas em luto pelo martírio do imã Huceine. Nas Filipinas, os católicos cravam pregos nas palmas das mãos e nos pés em memória do sofrimento de Jesus Cristo. Na Tailândia, os taoistas celebram o Festival dos Nove Deuses Imperadores, em veneração às divindades chinesas, executando sangrias e perfurando os corpos com tudo o que há, desde facas e espetos até chifres e chapéus de chuva. Na América Central, os maias realizavam cerimónias sangrentas, em que os homens trespassavam os pénis com os espinhos da cauda das raias. E, nos estados apalaches do sul, nos atuais Estados Unidos, grupos de pentecostais dançam extasiadamente nas suas igrejas, enquanto manuseiam serpentes letais. Penduradas pelas caudas, as serpentes ficam livres para atacar a qualquer momento – o que fazem com frequência. Há mais de uma centena de óbitos entre estes manuseadores de serpentes, mas, como estas práticas são muitas vezes secretas, os verdadeiros números poderão ser muito mais elevados. Segundo o psicólogo social Ralph Hood, que estudou estas comunidades, “se forem a uma igreja de manuseadores de serpentes, verão pessoas com mãos atrofiadas e dedos em falta. Todas as famílias de manuseadores de serpentes sofreram coisas dessas”.
Noutras partes do mundo, as pessoas participam em rituais que são menos dolorosos, mas não menos penosos. Os monges tibetanos passam décadas a tentar aperfeiçoar as suas técnicas meditativas, isolando-se do mundo numa vida de contemplação silenciosa. Os muçulmanos, em todo o globo, privam-se de comida e bebida desde a aurora ao ocaso durante o mês do Ramadão e as cerimónias de casamento indianas podem durar uma semana inteira. Os preparativos levam vários meses e são convidadas centenas ou mesmo milhares de pessoas. As despesas poderão ser ruinosas para uma família de médio rendimento. De acordo com estimativas do Progressive Village Enterprises and Social Welfare Institute (uma ONG local), mais de 60 por cento de todas as famílias indianas recorrem a prestamistas para financiar os casamentos dos seus filhos, mui- tas vezes a juros extorsionários. Aqueles sem meios para garantir estes empréstimos costumam ser reduzidos à servidão para pagar as suas dívidas.
Até aqui, apenas mencionei cerimónias religiosas. No entanto, os rituais são centrais para todas as nossas instituições sociais. Pensem no juiz a brandir o seu martelo, ou no novo presidente a prestar o seu juramento. São realizados por militares, governos e corporações, em cerimónias de iniciação, desfiles e dispendiosas exibições de compromisso. São usados por atletas que usam sempre as mesmas meias em jogos importantes e por jogadores que beijam os dados ou agarram os seus amuletos quando as apostas são elevadas. E, na nossa vida quotidiana, são praticados por todos e cada um de nós, quando erguemos a taça para fazer um brinde, assistimos a uma cerimónia de doutoramento, ou participamos numa festa de aniversário. A necessidade de ritual é primordial e, como veremos, poderá ter desempenhado um papel central na civilização humana.
Mas o que nos leva a participar nestes comportamentos, que têm custos tangíveis sem quaisquer benefícios óbvios? E porque são estas atividades muitas vezes consideradas como profundamente significativas, apesar de o seu propósito ser com frequência obscuro?
Há vários anos, quando vivia na Dinamarca como estudante de intercâmbio, visitei o Ny Carlsberg Glyptotek, um espetacular museu de arte em Copenhaga. Enquanto percorria a coleção de antiguidades, a qual incluía artefactos de antigas culturas mediterrânicas, cruzei-me com um grupo de estudantes de arqueologia vindos dos EUA. Rodeavam a sua professora, uma mulher de meia-idade, alta e enérgica, que ia comentando a exposição. O seu entusiasmo parecia contagiante e os estudantes pareciam atentos e interessados em tudo o que tinha para dizer. Decidi segui-los e aproveitar a visita guiada gratuita.
A professora usava aquilo que é conhecido como método socrático: em vez de proferir uma mera palestra, colocava-lhes questões para sondar os conhecimentos que já possuíssem e os ajudar a fazer novas inferências. Depois de apontar vários objetos e discutir a sua origem e utilização, acabou por chegar a uma taça de barro de aspeto estranho da antiga Grécia. “O que é isto?”, perguntou-lhes. Os estudantes pareceram confundidos. O objeto tinha a forma de um corno oco, mas claramente não se tratava de uma taça para beber, pois era demasiado pequena e tinha um furo na base. Estava gravada com ornamentos de minúsculo detalhe, mas, apesar de todo o esforço que evidentemente fora utilizado, não tinha uma utilidade óbvia. A professora voltou-se para um aluno. “O que pensas que se faz com isto? Para que serve?”, perguntou-lhe.
“Não sei”, respondeu o estudante, parecendo embaraçado. “Não sabemos”, repetiu a professora. “E o que é que dizemos quando não sabemos qual é a função?”. O estudante iluminou-se de repente. “É cultual!”, exclamou. “Sim, é cultual!”, disse a professora, num tom aprovador. “Talvez fosse usado no contexto de alguma cerimónia”.
A resposta da professora fez-me vibrar uma corda, pois identificava um dos aspetos mais curiosos da natureza humana: o ritual é um verdadeiro universal humano. Sem uma única exceção, todas as sociedades humanas conhecidas – passadas ou presentes – têm uma série de tradições que envolvem comportamentos muito coreografados, formalizados e executados com precisão, que marcam momentos de transição nas vidas das pessoas. Estes comportamentos, a que chamamos rituais, ou não têm qualquer propósito explícito, ou, mesmo quando têm, os seus objetivos declarados não têm uma relação causal com as ações executadas para os alcançar. Realizar uma dança da chuva não faz que a água caia do céu; apunhalar um boneco vudu não consegue ferir alguém à distância; e a única coisa que um leitor de cartas de Tarot consegue de facto prever é que a vossa carteira estará mais leve depois da consulta. É este fosso entre meios e fins que levou a professora a inferir que, se um objeto que resultou de um trabalho tão esforçado não possuía qualquer função óbvia, provavelmente serviria um objetivo ritual.
Apesar desta desconcertante discrepância entre ações e objetivos, rituais de todos os géneros persistiram durante milénios. De facto, mesmo nas sociedades mais seculares, e quer o percebamos ou não, o ritual é tão comum hoje como era no passado distante. Desde bater na madeira até sussurrar orações, e desde as celebrações do Ano Novo até às tomadas de posse presidenciais, o ritual permeia todos os aspetos importantes das nossas vidas privadas e públicas. E, quer seja praticado num contexto religioso ou secular, é uma das mais especiais de todas as atividades humanas, muitíssimo imbuído de sentido e importância. Estas características distinguem o ritual de outros atos menos especiais, como os hábitos. Embora ambos possam ser comportamentos estereotipados, na medida em que envolvem padrões fixos e repetitivos, no caso dos hábitos estas ações têm um efeito direto no mundo, ao passo que, no ritual, têm um sentido simbólico e são frequentemente executadas por si próprias. Quando desenvolvemos o hábito de lavar os dentes antes de ir para a cama, o objetivo deste ato reside na sua função imediata – é causalmente transparente. Agitar uma escova simbólica no ar não ajudaria a manter os dentes limpos. Ao transformarmos este processo numa rotina, o nosso hábito permite que o realizemos de forma regular e sem refletirmos.
Os rituais, por outro lado, são causalmente opacos. Exigem o nosso foco e a nossa atenção porque envolvem ações simbólicas que têm de ser memorizadas, pois têm de ser executadas com precisão. A título de ilustração, num casamento ortodoxo grego, o padrinho ou a madrinha trocam as alianças e colocam-nas nos dedos da noiva e do noivo e um par de coroas nas suas cabeças três vezes; o sacerdote tem de ler três orações; e o casal deverá beber três goles de vinho de uma única taça e dar três vezes a volta ao altar. Estas ações fazem parte de uma elaborada sequência de horas, que deve ser seguida à letra e que exige meticulosas instruções e ensaios para assegurar a fidelidade. Acontece que nenhuma dessas ações tem consequências legais: o que faz que o casal fique casado é um procedimento diferente, que implica a assinatura e a carimbagem de um documento legal. Porém, o simbolismo e a pompa da cerimónia nupcial é que tornam o acontecimento magnífico e memorável – de tal modo que ficamos com a impressão de que é o ritual e não a burocracia que valida o casamento. Enquanto os hábitos nos ajudam a organizar importantes tarefas tornando-as rotineiras e mundanas, os rituais imbuem as nossas vidas de significado, tornando certas coisas especiais.
Por outras palavras, em concreto as do sociólogo George C. Homans, “as ações rituais não produzem qualquer resultado prático no mundo externo – essa é uma das razões pela qual lhes chamamos rituais”. De facto, entre muitas comunidades religiosas, os rituais que são praticados com um objetivo explícito costumam ser considerados feitiçaria. “Mas fazer esta afirmação não equivale a dizer que os rituais não tenham função […], pois dão confiança aos membros da sociedade, esconjuram as suas ansiedades, disciplinam as suas organizações sociais”.
Os antropólogos têm explorado estas funções do ritual há mais de um século, recolhendo meticulosamente séries de fascinantes observações. Estes académicos reconheceram o tremendo potencial do ritual como veículo de realização, fortalecimento e transformação pessoal e também como mecanismo de cooperação e manutenção da ordem social. Formularam perspicazes teorias, mas raramente foram capazes de submetê-las a testes. Os antropólogos culturais partiram do princípio de que o mundo social é um lugar complexo e desorganizado e que algumas das coisas mais significativas nas vidas das pessoas não são quantificáveis com facilidade. Conduziram investigações etnográficas no campo, onde observaram as práticas rituais das pessoas no seu contexto natural. O seu principal foco tem sido tentar compreender o modo como esses costumes são experienciados pelos seus praticantes, nesses contextos.
Por outro lado, os psicólogos e outros estudiosos de espírito experimental reconhecem que a medição quantitativa exige um alto nível de controlo e não pode ser facilmente alcançada em cenários da vida real. Trabalham em geral nos laboratórios, onde se focam na fina fatia de comportamento num dado momento. Para o fazerem, retiram as pessoas dos seus meios ambientes habituais e levam-nas para o laboratório, onde as isolam de quaisquer fatores extemporâneos que possam complicar o estudo. Neste processo, uma grande parte do sentido ligado a este contexto torna-se inalcançável para o experimentador.
Talvez em parte devido a esta dificuldade em estudar as atividades significativas no laboratório, o ritual nunca se tenha tornado uma matéria popular entre os psicólogos. Tem sido encarado ou como um aspeto mundano do comportamento humano, uma anomalia com tendência para se desvanecer, ou como um tópico fugidio, impossível de investigar de modo científico. Em resultado disso, até recentemente, o conhecimento científico sobre um dos aspetos mais presentes na natureza humana foi escasso e fragmentário.
Em anos recentes, tal começou a mudar. À medida que a antropologia amadureceu, os etnógrafos tornaram-se mais conscientes da necessidade de levar a sério os testemunhos das pessoas, mas também da importância de encontrar formas de testar esses testemunhos de maneira empírica. E, conforme os psicólogos começaram a aperceber-se de que existiam mais coisas na psique humana do que aquilo que os seus sujeitos revelavam nos estreitos limites de um laboratório universitário, foram ficando cada vez mais interessados na contribuição da cultura.
Em muitos casos, os cientistas sociais de várias disciplinas começaram a trabalhar em conjunto e a aprender uns com os outros. O desenvolvimento de novos métodos e tecnologias permitiu que explorassem questões que estavam previamente para lá do seu alcance. Sensores portáteis tornaram possível estudar aquilo que se passa nos corpos das pessoas quando participam em rituais na vida real; avanços na bioquímica e na imagiologia cerebral permitiram que os investigadores espreitassem os cérebros das pessoas no laboratório e no campo; inovações nas ciências cognitivas forneceram novas formas de avaliar aquilo que se passa nas suas mentes; e um crescente poder computacional, combinado com novos programas de software, permitiu aos estatísticos dar sentido a complicados conjuntos de dados. Pela primeira vez, um estudo científico do ritual encontra-se em pleno desenvolvimento. Somos finalmente capazes de começar a vislumbrar em conjunto a solução para um velho enigma: para que serve toda essa bizarria?
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