Mulher Morta, Vale da Bicha, Palhaça, Deixa o Resto, Colo do Pito, Pau Gordo, Beco do Olho do Cu, Paz e Achada, Caveira, Triste Feia… o léxico que envolve os nomes das localidades portuguesas é tão diverso quanto criativo e com equitativa distribuição país fora. Nomes que, não raras vezes, nos provocam um comentário pícaro (o que dizer de Chiqueiro ou Porca?); noutras situações acicata-nos medos primários (como uma viagem ao Purgatório), ou mesmo a incredulidade face ao batismo do lugar (porquê Malavado?).

Ao longo de seis meses, a jornalista Vanessa Fidalgo, lançou-se na peugada das origens dos nomes de perto de 200 de localidades de norte a sul do país, ilhas incluídas. Do trabalho de recolha nasceu o livro Porque se chama assim? A origem dos (estranhos) nomes de aldeias e vilas portuguesas (edição Oficina do Livro).

Ao oitavo livro, Vanessa Fidalgo procurou nas lendas, na história, em fontes orais e escritas, junto de dezenas de pessoas de todas as idades, ligadas afetivamente às suas terras, os porquês para que determinadas comunidades engendrassem, difundissem e aceitassem este ou aquele nome como parte da identidade coletiva do lugar.

“Se há coisa que nunca faltou aos portugueses foi imaginação. Temos, desde tempos remotos, um certo talento para solucionar problemas, abreviar caminho e sair airosamente de complicações, conforme rezam os livros de história”, recorda-nos Vanessa Fidalgo na introdução ao seu novo livro. Pretexto para nos lançarmos à conversa com a jornalista.

Entre outros títulos, a autora assinou anteriormente obras como Histórias de um Portugal assombrado, Lugares para ter medo em Portugal, Pelos caminhos assombrados de Portugal. Vanessa Fidalgo é coordenadora do programa Língua Mãe, na CMTV.

Quando iniciamos um projeto temos uma motivação. Em relação ao presente livro qual foi a motivação da Vanessa?

O livro nasceu de uma ideia que foi surgindo quando ainda fazia a investigação para as obras anteriores. Investiguei muito ao nível do lendário e, aos poucos, fui-me deparando com lendas associadas à toponímia. Achei piada a alguns dos nomes e, claro, seduziram-me as histórias e algumas personagens. Percebi que tinha de as contar a terceiros. Quando, mais tarde, pus efetivamente a hipótese de escrever um livro sobre o tema, identifiquei inúmeras histórias que pareciam nascer de geração espontânea, de muitas designações que tinham surgido pela simples necessidade de passar a nomear um lugar, porque ali se manifestara algo, porque ali vivia alguém com determinadas características. Depois, vamos encontrar narrativas fundadas na própria História de Portugal.

Sabe onde fica Cabeças Velhas ou Vale das Ratas? Viagem ao Portugal dos estranhos nomes nas palavras de Vanessa Fidalgo
Vanessa Fidalgo, autora do livro "Porque se chama assim? A origem dos (estranhos nomes de aldeias e vilas portuguesas" créditos: carros queimados

Em muitas situações parece não ser a lenda que dá origem ao nome do lugar, mas sim o contrário, a designação do sítio origina uma lenda. A Vanessa concorda?

Sim, porque, julgo, prende-se com o próprio facto de as pessoas procurarem uma explicação para o nome do lugar onde habitam. Porque não embelezar, romantizar essas situações, ou as personagens? Acaba por surgir a lenda. Isto, quando falamos dos lugares, mas podemos extrapolar para muitas outras áreas do nosso lendário tradicional.

Em muitos casos presumo que estas narrativas se baseiem na tradição oral…

Sim, a nossa tradição oral, um património imaterial que não mereceu um registo escrito. Narrativas que passaram de boca em boca, ao longo de gerações e com uma grande longevidade no tempo.

De A a Z, 20 estranhos nomes de localidades portuguesas:

Almijofa, Benlhevai, Bogalheira, Boidobra, Calo Logo, Chiqueiro, Degolados, Esfrega, Folgosinho de Ar, Lamas de Orelhão, Matacães, Panasco, Pau Gordo, Picha, Porca, Porqueira, Rego do Azar, Taberna Seca, Tapada dos Pés, Urros e Matança.

Estas histórias ainda são contadas no seio das comunidades onde nasceram?

Sim, assistimos à transmissão das histórias, sobretudo nas localidades mais pequenas, fora dos grandes centros urbanos. Há um trabalho feito junto da infância com a recriação deste património local, por exemplo, nas escolas, em projetos extracurriculares. As crianças leem, investigam e pensam sobre estas narrativas. Sou mãe, também tenho crianças, mas não sinto que nas grandes cidades se dê particular atenção a estas questões.

Encontramos também uma outra vertente nesta transmissão das histórias ligadas às universidades seniores. Noto que aí, estas histórias são ainda valorizadas junto de quem as sabe. As pessoas são motivadas a partilhá-las. Muitas vezes, quando há uma junta de freguesia, uma câmara municipal que se interessa em fazer este registo, por exemplo, no jornal local, ou num site, pode ser a diferença entre preservar para o futuro ou perder para sempre.

Não obstante o nome algo bizarro de algumas comunidades, estas parecem aceitá-lo com orgulho e sem grande contestação. Encontra uma explicação para o facto?

Penso que tem a ver com o facto de as pessoas não quererem perder a identidade que esse nome lhes transmite. Ou seja, há um sentido coletivo de comunidade. Mesmo fora das suas comunidades, os ali nascidos gostam de contar a peculiar história que está na origem do nome da sua terra. Isto, apesar de encontramos abaixo-assinados para a alteração dos nomes das localidades. Claro que há quem não goste e quem também relate algum desconforto.

Passemos a alguns dos nomes que compilou no seu livro. Vamos seguir a designação dos capítulos. Comecemos pelas páginas que intitulou “De Meter Medo ao Susto”. Porquê Cabeças Velhas e Mulher Morta?

No caso de Cabeças Velhas, no concelho de Almodôvar, conta a lenda que uma bruxa saía do seu esconderijo quando caía a noite. Certo dia, alguns homens seguiram a bruxa para constatarem que esta tirava do saco uma cabeça de velha cheia de moscas enormes. A mando da bruxa, os insetos partiam na procura de alimento. Revoltados, os homens mataram todas as moscas. Sem a ajuda dos insetos, a bruxa acabou por morrer. A terra ganhou o nome de Cabeças Velhas.

No caso de Mulher Morta, na freguesia de Mexilhoeira Grande, em Portimão e também na de Nossa Senhora das Misericórdias, em Ourém, o nome deve-se a uma lenda local, a de uma mulher que teria sido assassinada pelo pai que não concordava com o namoro da filha com um cavaleiro. Assim ficou o sítio da Mulher Morta.

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No capítulo que intitula de “Pura Poesia Popular” apresenta-nos, entre outras, a Borracheira, a Triste Feia e a Palhaça…

Sim, no caso da Borracheira, uma aldeia do concelho de Proença-a-Nova. A história diz respeito a três mulheres almocreves que tinham por hábito beber o seu copito. Certo dia, o padre proibiu-as de falar do vinho, embora o pudessem beber. Elas engendraram uma forma de não falar do vinho, embora continuassem a ingeri-lo. Chegavam à taberna, punham o dinheiro no balcão e apontavam para o vinho. O padre quando as viu disse: “Ai as borracheiras que ali estão”.

No caso de Triste Feia, refere-se a uma travessa em Lisboa, ao lado da estação ferroviária de Alcântara-Terra. Deve, supostamente, o seu nome a uma mulher que todos os dias se sentava à porta do número 28. A rapariga que não devia muito à beleza, andava sempre triste. Para a história, ficou associada à toponímia da capital.

Já o nome de Palhaça, na freguesia de Oliveira do Bairro, prende-se com as palhoças, as capas de palha, fabricadas a partir, por exemplo, de junco e que serviam de proteção aos pastores. A palavra palhoça, com algum regionalismo pelo meio e o passar do tempo, chegou à forma de Palhaça.

Sabe onde fica Cabeças Velhas ou Vale das Ratas? Viagem ao Portugal dos estranhos nomes nas palavras de Vanessa Fidalgo
Vanessa Fidalgo tem oito livros publicados, muitos em torno do tema do Portugal assombrado e do imaginário local.

No capítulo “Com Direito a ‘Bolinha’”, a Vanessa viaja às origens, entre muitos outros locais, do Beco do Olho do Cu e Vale da Rata. Quer explicar-nos como nasceram estas designações?

O lugar da Nespereira da Beira Alta, em Gouveia, tem de facto uma artéria com o nome improvável de Beco do Olho do Cu. Há algumas décadas, quando mudou o presidente da junta, o executivo considerou retirar a palavra cu. Após a alteração da placa para Beco do Olho, alguém se lembrou de destapar a placa anterior. Após meses de tapa e destapa, o beco acabou por ficar com o nome original.

Vale da Rata, lugar do concelho de Almodôvar, no Alentejo, prende-se com o aparecimento de roedores nos primeiros tempos do povoamento do lugar.

“Assim Reza a Lenda” é o título do quinto capítulo do seu livro. Aí encontramos Pousaflores.

Há duas explicações para este nome de uma freguesia do concelho de Ansião, algo que é muito comum. Quando me deparei com duas versões diferentes, desde que fossem igualmente credíveis, optei por colocar ambas no livro. De modo que no caso de Pousaflores, o nome tanto poderá dever-se aos antigos foles dos moleiros, que ali eram pousados para poderem descansar, como a um antigo conto muito conhecido: a velha história do rei que fica confuso quando uma das filhas lhe diz que o ama tanto como o sal é essencial à comida. O rei no imediato não reconhece a importância da comparação, mas depois de lhe servirem um banquete de comida sem sal entende a mensagem, perdoa a filha e faz dela senhora de Pouso da Flor que evoluiu depois para Pousaflores.

No mesmo capítulo encontramos a descrição de Porto de Vacas.

De Porto de Vacas também existem, pelo menos, dois exemplos. Uma das localidades fica na Pampilhosa da Serra e diz respeito ao porto que servia a barca pública, onde se fazia antigamente o transporte de pessoas e animais entre as margens do rio Zêzere. O outro fica nos Açores, mais concretamente na ilha Graciosa. A lenda em torno deste lugar é bastante interessante e faz-nos mergulhar numa tradição secular, pois está relacionada com as festas em honra do Divino Espírito Santo e com o porto onde se fazia o desembarque das vacas abatidas para se fazer o consumo da carne nas festas. Vacas que eram deixadas meses antes longe de terra a engordar num ilhéu, antes de serem 'sacrificadas'.

Finalmente, no capítulo “O Apelo da Natureza”, a Vanessa apresenta-nos Água de Todo o Ano, no concelho de Ponte de Sor, e Esfrega, no concelho de Proença-a-Nova.

A história de Água de Todo o Ano está ligada à vizinha aldeia de Tramaga. No passado, as duas aldeias estavam unidas e davam pelo nome de Água de Todo o Ano, por ali correrem três ribeiros. Até que a reorganização das freguesias fez com que a aldeia ficasse dividida. A parte por onde corriam os ribeiros passou a chamar-se Tramaga e Água de Todo o Ano manteve o nome, mas perdeu a Água, que ali deixou de correr nas quatro estações do ano.

Esfrega tem uma história hilariante. Conta-se que o nome está relacionado com um fidalgo que um dia visitou a aldeia e lá deu um valente trambolhão. Uma valente 'esfrega', conforme diziam as gentes. E, deste então, a aldeia passou a ser conhecida como a aldeia da Esfrega.