Sempre que se vê frente às Grandes Pirâmides, no Planalto de Gizé, Inês Torres não consegue esconder a comoção. A escala superlativa desta grande necrópole egípcia, nos arredores da cidade do Cairo, exerce sobre a egiptóloga portuguesa poder de atração idêntico ao que viveu, aos nove anos, quando recebeu das mãos do seu pai um livro sobre o Antigo Egito. Foi amor à primeira vista. O “bichinho” desta história multimilenar não mais deixou a criança, depois jovem e adulta. À licenciatura em Arqueologia, em Portugal, Inês juntou-lhe um mestrado em Egiptologia pela Universidade de Oxford, em Inglaterra e, depois, um doutoramento na mesma disciplina pela norte-americana Universidade de Harvard. Aí, Inês lecionou Egípcio Clássico entre 2017 e 2020. Mais tarde, trabalhou em diversos museus nos Estados Unidos e na Europa.

Como corolário de um trabalho sempre atento aos costumes, cultura, religião e política do Antigo Egito, Inês Torres deu aos escaparates portugueses o seu primeiro livro, Como é Que a Esfinge Perdeu o Nariz? (edição Planeta). Fê-lo numa dimensão que não é apenas a dos grandes feitos egípcios, como a construção das pirâmides, a mumificação, a conquista das águas do rio Nilo, mas também atenta aos detalhes do quotidiano, aqueles que nos aproximam destes humanos de há cinco mil anos.

No seu livro, Inês Torres lança perto de 50 perguntas e encontra-lhes as respostas: Os túmulos egípcios eram armadilhados? Para que serviam e como foram construídas as pirâmides? Quem foi o monarca mais importante do Egito? Porque é que alguns deuses egípcios são representados com cabeças de animais e corpos humanos? Que significado tinham as cores no Antigo Egípcio? Como era a infância no Antigo Egito? Pretexto para algumas das questões que deixamos a Inês no decorrer desta conversa.

Inês Torres é fundadora e coordenadora do projeto de divulgação no Instagram Uma Egiptóloga Portuguesa. Cocriadora e coapresentadora do podcast Três Egiptólogues Entram Num Bar

O que leva uma portuguesa a interessar-se tão profundamente sobre o Antigo Egito? Ao que sabemos, tudo começou em criança com um livro na mão: Os Egípcios Espantosos.

Sempre gostei de história desde miúda. Quando o meu pai me ofereceu o livro que refere, foi amor à primeira vista. Li o livro de uma assentada e pensei: “quero isto para a minha vida”. Quis perceber e estudar esta cultura. Adoro fazer investigação sobre o Antigo Egito, uma cultura fascinante, tão distante no tempo e no espaço, mas tão próxima de nós.

Inês Torres, a Egiptóloga portuguesa que se emociona com vidas de há cinco mil anos
Inês Torres no Templo de Karnak, em Luxor. Inês Torres

Uma paixão que a levou inclusivamente à Universidade de Harvard…

É verdade. Acabei por fazer o doutoramento em Harvard, nos Estados Unidos, país onde, em muitas universidades, nas áreas das humanidades, os alunos recebem uma bolsa e têm um contrato que os ‘obriga’ a dar aulas a alunos de licenciatura, mestrado e, por vezes, até a alunos de doutoramento provenientes de outras áreas. Nesse âmbito, lecionei três anos sobre egípcio hieroglífico. Adoro lecionar, gosto de partilhar o conhecimento dentro da sala de aula e fora desta.

Que aspetos estuda a egiptologia?

Explicado de uma forma simples, é o estudo do Antigo Egito. Mas, tal como o estudo de qualquer civilização, a egiptologia implica todo um conjunto de disciplinas como a história, a história da arte, a linguística, a antropologia, a sociologia. No fundo, é um termo muito alargado para nos referirmos ao estudo desta civilização antiga. Neste âmbito, um egiptólogo pode fazer coisas muito diferentes. Tenho colegas especializados na língua e a sua evolução ao longo do tempo, enquanto a minha especialidade é a cultura material, os objetos, os monumentos, a componente mais arqueológica. Estamos a falar de um período de mais de três mil anos. Logo, tenho colegas que se focam num determinado período. No meu caso estudo o Império Antigo [2686-2160 a.C.]. O meu marido, que também é egiptólogo, estuda o Império Médio [2055-1650 a.C.]. Tal como um historiador.

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A Inês referiu há pouco uma história egípcia com mais de três mil anos. Para situar o leitor há que sublinhar que nos estamos a referir a um período de tempo vastíssimo. Que situar-nos?

A cronologia do Antigo Egito é muito vasta. No livro, chamo a atenção para um facto: nem os próprios egiptólogos concordam quando começa e acaba este período [risos]. Se quisermos situar as origens ainda na Pré-História, podemos dizer que a civilização egípcia começa em 5.300 anos a.C. Se quisermos situá-la quando existe um Estado, uma organização política que controla vastas regiões do país, mesmo que não haja só um rei, apontamos para 3.500 a.C. Se quisermos ver esta civilização coincidente com o início da escrita, então será mais tarde, em 3.200 a.C. O mesmo se pode dizer quando acaba o Antigo Egito: antes da época ptolemaica?  A seguir a Cleópatra? Depois de os romanos ali se estabelecerem? Ou podemos considerar que o Egito Bizantino também faz parte do Antigo Egito? São questões que atualmente debatemos na egiptologia.

Provavelmente um egípcio de há cinco mil anos não se reconheceria num conterrâneo de milénios posteriores…

Sim, em primeiro lugar pela língua. Um egípcio do tempo da construção da grande pirâmide, não conseguiria perceber o que um egípcio da era de Ramsés II, um milénio mais tarde, estaria a falar. Acabamos por ter uma ideia de continuidade porque a arte é muito semelhante, o sistema político também e não conseguimos ver as diferenças. Por exemplo, a forma de interpretar o culto funerário varia deste o tempo das pirâmides até ao tempo de Ramsés II. Portugal tem menos de 900 anos de história e não nos reconheceríamos se viajássemos ao tempo de D. Afonso Henriques.

Inês Torres, a Egiptóloga portuguesa que se emociona com vidas de há cinco mil anos
o alto dignitário Ti observa um grupo de homens, seus subordinados, na caça ao hipopótamo. Império Antigo, 2475-2421 a.C. créditos: Planeta

E no que toca à relação com o transcendente, encontramos uma alteração notória através dos milénios?

O panteão parece ser mais ou menos o mesmo, muito vasto, com os deuses principais, Osíris, Anúbis, Ísis, entre outros. Esses, mantiveram-se ao longo dos milénios. Mas, teriam sido adorados da mesma forma? Um Cristão também adora o mesmo Deus há milénios, mas não o faz da mesma forma. Veja-se, por exemplo, a missa, e como se alterou no tempo quem lhe tinha acesso, assim como à igreja, e como era praticada.

No período a que a Inês se debruça no seu livro que contexto encontramos no território que agora é Portugal?

Na fase inicial da civilização egípcia, há 3.500 a.C., ainda estávamos no Neolítico. No território de Portugal tínhamos sociedades maioritariamente agrícolas que se estavam a desenvolver. O mesmo acontece no Egito, com o estabelecimento de sociedades agrícolas. É interessante pensarmos que, aqui, na Península Ibérica, as pessoas comuns faziam o mesmo que no longínquo Egito. Simplesmente, o estabelecimento político naquela vasta região fundou-se como um marco que continuou por muitíssimo tempo. Aqui, sucederam-se os sistemas políticos, mais fragmentados, desenvolveram-se microculturas.

Imaginemos que a Inês está perante um grupo de pessoas que tem como imagem do Antigo Egito as Pirâmides, a Esfinge e o Nilo e que o seu interesse acaba aí. Que argumentos usaria para os conquistar para esta história antiga que inspirou tantos livros e filmes?

Pediria às pessoas que me acompanhassem e olhassem para certas peças de museu, para os objetos do dia a dia, reconhecíveis atualmente, como copos, talheres. Fugiríamos um pouco da monumentalidade, olhando para esses artefactos do quotidiano que nos fazem pensar como seria a existência destes seres humanos. Por vezes, através dos textos que nos chegaram, percebemos essa humanidade. Por exemplo, uma estela funerária no Museu Britânico, em Londres, representa uma família, com o pai e quatro das suas filhas. Três das filhas são “a sua filha amada”. A quarta, só diz “a sua filha”. Começamos a pensar nessas relações familiares. Há uma filha que não é amada. Porquê? Ou seja, apesar de vivermos em tempos diferentes, encontramos pontes no que respeita aquilo que é mais intrínseco à nossa humanidade.

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A autora de "Como é Que a Esfinge Perdeu o Nariz?" no Templo de Luxor. Inês Torres

Para elaborar o seu livro, a Inês pediu a um painel de pessoas que lhe endereçassem perguntas sobre o Antigo Egito. Qual foi a pergunta mais recorrente?

Várias pessoas fizeram perguntas ligadas ao papel da mulher no Antigo Egito, assim como era vivida a religião, quem podia ir aos templos, quem acedia aos deuses e que relação tinha, por exemplo, um camponês com o divino. Outra das perguntas, prendia-se com a construção das pirâmides. São monumentos espantosos. Sempre que vou ao Egito, fico boquiaberta frente às pirâmides.

Há muito que se procura saber como foram construídas as pirâmides. Há atualmente uma explicação unificadora para o facto?

Sobre se sabemos como foram construídas as pirâmides, a resposta rápida é um sim. A razão pela qual não sabemos exatamente como foram construídas é porque há muitas formas possíveis de as erigir. Uma das hipóteses aponta para a utilização de rampas onde, a partir da base, eram carregados os blocos de pedra. A teoria das rampas continua a ser a mais popular e há diferentes hipóteses de como estas foram construídas: por fora ou por dentro da pirâmide? A direito ou em torno da estrutura? Há arquitetos que defendem que, sem recurso a grande maquinaria, seria possível erigir monumentos desta envergadura. Os egípcios eram arquitetos e construtores incríveis, com uma história de milénios na construção de enormes monumentos.

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A abrir o seu livro, a Inês deixa uma pergunta: “Não estará o público já saturado de ler livros sobre o Antigo Egito?”. Será que lemos tantos livros assim, ou teremos sobre o Antigo Egito duas ou três referências que nos foram dadas por documentários na televisão?

Vivi muitos anos em Inglaterra e nos Estados Unidos e, ali, o mercado está saturado de publicações sobre o Antigo Egito. Em Portugal também há uma presença grande, embora a outra escala. Não queria escrever mais um livro de história. Enquanto educadora, penso muito na pedagogia e nem todos se sentam a ler um livro de 300 páginas. Queria, com o meu livro, abranger o maior número de pessoas possível, com diferentes idades, diferente nível de conhecimento e que lhes desse a oportunidade de lerem ao seu ritmo. Apesar de não haver muitos escritores portugueses a escrever sobre o Antigo Egito, encontramos muitos livros, embora obras antigas, escritas nas décadas de 1980 e 1990. Hoje, a investigação alterou-se. Por isso também digo no livro que a partir do momento em que este foi publicado, ficou desatualizado [risos]. Mas isso é normal.

Inês Torres, a Egiptóloga portuguesa que se emociona com vidas de há cinco mil anos
A Esfinge. Inês Torres

Presumo que também tenha pensado na perspetiva dos professores.

Sim. Por volta do sétimo ano escolar falamos sobre o Crescente Fértil, Egito, Mesopotâmia. Em criança, quando frequentava o sétimo ano, já estava muito interessada no Antigo Egito. Recordo-me que o livro de história não me desafiava. Com este meu livro, um dos meus objetivos foi criar uma obra que seja apelativa para os miúdos e para os professores. Muitos dos nossos docentes estão sobrecarregados de trabalho, sem tempo para fazer pesquisa independente. Se o meu livro contribuir para enriquecer o currículo escolar, é um grande orgulho.

Como se organizava a sociedade egípcia?

Era uma sociedade bastante organizada e hierarquizada. A grande maioria da população compunha-se de trabalhadores agrícolas. Mas, dada a cronologia muito vasta, mais de três mil anos, e fruto dos próprios intervenientes, é difícil dizer como essa hierarquia se manteve ao longo do tempo, ou não. Temos, por exemplo, artesãos, trabalhadores manuais, e não sabemos se estavam acima dos camponeses. Outro exemplo: os escribas eram importantes. Mas, quão importante seria a vida de um escriba de baixo nível face ao camponês? De qualquer forma, temos, nas elites, o rei. Este, em teoria era uma figura absolutamente suprema, embora em certos períodos da história, teve de negociar o seu poder com as elites locais, com governadores, com sacerdotes. Por exemplo, entre os sacerdotes egípcios, não existia o sacerdócio “profissional” antes do Império Novo. Isto significava que, antes desse período, as elites faziam o trabalho de sacerdócio nos templos nos “tempos livres”. Tudo isto merece a nossa ponderação.

Inês Torres, a Egiptóloga portuguesa que se emociona com vidas de há cinco mil anos
O deus Rá, em forma de gato, a matar a serpente Apep. Império Novo. créditos: Planeta

Inês, no seu trabalho de campo já trabalhou em túmulos?

Já entrei nos túmulos enquanto visitante, mas nunca participei em escavações. A minha especialização académica é precisamente túmulos e mundo funerário. O túmulo, de facto, era um espaço onde os mortos e os vivos podiam entrar em contacto. Quando ali entramos, sabemos o que o defunto queria comunicar sobre a sua vida e deixar marcado para a eternidade. Há que compreender que eram monumentos erigidos para durar para sempre. Então, o que queria a pessoa dizer sobre a sua existência e personalidade? Em janeiro de 2021, tive a oportunidade de me juntar a uma escavação arqueológica em Carnaque [Luxor], no templo dedicado à deusa Mut, consorte do deus Amom-Rá. Trabalhei fora do templo para perceber como as pessoas que outrora aí trabalhavam passavam os seus dias.

O tema da igualdade de género é hoje muito discutido. Que papel cabia à mulher no Antigo Egito ?

Temos muito pouca informação e é fragmentária. Não conseguimos ter uma imagem completa, até porque é difícil dizer aquilo que sentiam ou aquilo por que passavam todas as mulheres. Sabemos muito mais sobre a vida das elites, logo poderemos falar muito mais da vida de uma senhora da classe alta. Uma coisa parece certa, é a da mulher ter a possibilidade, cerca de três mil anos antes de Cristo, de poder herdar propriedade e legá-la aos seus filhos. Uma história que gosto de contar remonta ao Império Novo, a uma mulher chamada Naunakht e que refere no seu testamento que alguns dos seus filhos serão deserdados. Isto, porque alguns dos filhos a abandonaram quando envelheceu. Desde logo, demonstra que as mulheres exerciam algum poder económico e social. Podiam divorciar-se, mas até que ponto seria fácil? Não sabemos. Parece que são os homens a iniciarem esse processo, apesar de sabermos que algumas mulheres deixaram os maridos. Mas, até que ponto era bem visto na sociedade? É interessante ver que a mulher era respeitada, mas estamos perante uma sociedade patriarcal.

Inês Torres, a Egiptóloga portuguesa que se emociona com vidas de há cinco mil anos
créditos: Planeta

O conceito de infância é recente na história humana. Que relação tinham os antigos egípcios com as suas crianças?

Se olharmos para a forma como encaramos hoje esse período, no Antigo Egito a infância parece não ter existido. Ou seja, existia a ideia de não adulto. Mas, será que era o equivalente ao que hoje consideramos ser uma criança? Temos evidências bioarqueológicas que revelam o que sucedeu na antiga cidade de Akhenaton [atual Amarna], fundada pelo rei Akhenaton, conhecido pelas suas políticas heréticas. Aí, encontramos vestígios humanos de crianças que trabalharam na construção dessa cidade. Eram muito jovens, muitos sofreram mortes violentas relacionadas com os trabalhos de construção da urbe. Isso, claro, não se passava com as crianças da elite. Não sabemos os níveis de literacia, mas sabemos que muitos miúdos das elites aprendiam a escrever e a ler. Ou seja, implica um privilégio, a existência de tempo e de dinheiro para a aprendizagem. Nas classes mais baixas, os miúdos brincavam a imitar o que os pais faziam. Por exemplo, se o pai fazia potes de cerâmica, as crianças brincavam com o barro.

Houve algum artefacto que a tenha emocionado particularmente?

Um dos que mais me tocou, e inclui-o no livro, é um texto que nunca tinha sido traduzido para português, tanto quanto sei. O texto demonstra a humanidade de um rei, de quem não sabemos o nome, do Império Antigo. O excerto vem da parede de um túmulo encontrado no planalto de Gizé, junto às pirâmides, e é dedicado a um cão de guarda preferido. Ali lemos: “o cão que costumava guardar Sua Majestade, Abutiú era o seu nome. A Sua Majestade ordenou que ele fosse enterrado e que um sarcófago lhe fosse dado de tesouro (real), (assim como) uma grande quantidade de linho, incenso e unguento”. O texto prossegue com referência à construção do túmulo. É tocante. Quem não sofreu por perder um animal de estimação?

Se lhe fosse dada a oportunidade de viajar a um único momento da história do Antigo Egito, qual escolheria e porquê?

Julgo que gostaria de estar presente para ver a construção da grande pirâmide, com esta a subir desde o nada, ao longo de duas ou três décadas. Imaginar a paisagem em torno, um deserto com poucos edifícios à volta, numa escala muito diferente do Cairo atual.

Finalmente, como é que a esfinge perdeu o nariz?

[risos] Para saber, só lendo o livro. O que posso dizer é que há várias teorias e procurei descrever aquela que parece ser a mais provável.

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