Desde os tempos mais remotos que os códigos secretos fazem parte das civilizações. Quase em simultâneo com a invenção da escrita, foram igualmente criadas formas dissimuladas de esconder mensagens e de as manter em segredo. No livro 50 Códigos que Mudaram o Mundo (edição Desassossego), o historiador Sinclar McKay explora mensagens ocultas e cifras secretas para narrar uma história humana. Uma obra que envereda o leitor nos templos da Grécia Antiga, à corte de Isabel I, de manuscritos antigos cujos códigos labirínticos contêm profecias de perdição, ao campo moderno da mecânica quântica.
Como nos relata o autor na introdução que faz ao livro: “Esta é, portanto, uma história paralela do mundo e da palavra escrita. Ela corre, qual rede invisível, pelos quatro cantos do globo, das abundantes areias vermelhas da Rota da Seda às glórias da antiga Pérsia, das estepes geladas da Rússia à opulência imaculada de Washington, em meados do século XX. Estas histórias sobre os inventores das cifras mais diabólicas e os génios que as deslindaram com a sua extraordinária perícia coexistem com muitos dos grandes acontecimentos dos últimos dois ou três mil anos”.
De 50 Códigos que Mudaram o Mundo publicamos o excerto abaixo:
O Palácio dos Segredos
Era uma vez um código que representou um portal para o passado. A sua génese situava‑se numa era feita de mitos clássicos, heróis, aventureiros e criaturas aterradoras. Esta escrita ilegível e misteriosa atravessou a escuridão dos séculos para arrebatar o intelecto e a imaginação de dois indivíduos muito diferentes, na década de 1940: uma docente universitária que trabalhava ao som estridente de buzinas e sirenes no meio da neblina quente de Nova Iorque, e um adolescente que vivia na chuvosa Inglaterra. Ambos haveriam de desvendar um mistério com milhares de anos.
Aninhado nas movimentadas ruas de Brooklyn da década de 1940 ficava (e aí se mantém) um aglomerado de edifícios de tijolo vermelho que formavam o campus do Brooklyn College. Era lá que trabalhava Alice Kober, uma professora vanguardista e popular que ensinava grego e latim. Pouco faltou para o seu nome ser acidentalmente apagado da crónica de uma das maiores sagas de descodificação da História. E, no entanto, o seu extraordinário trabalho foi fundamental para compreender um dos enigmas mais exasperantes de sempre: um conjunto de placas de barro, com inscrições numa língua ininteligível para o mundo moderno.
Não foi um código que ajudou a ganhar uma guerra, mas foi um enigma que, uma vez resolvido, contribuiu para dar a conhecer um dos principais mitos da nossa civilização. Os discursos laudatórios — quando se fizeram ouvir — foram dirigidos a um brilhante jovem britânico chamado Michael Ventris, que, depois de um estudo obsessivo que se prolongou por anos e começou quando ainda frequentava a escola, conseguiu finalmente desvendar o maior desafio linguístico de sempre. As homenagens que lhe dedicaram foram inteiramente merecidas. Todavia, tratou‑se de uma façanha partilhada. O mito centrava‑se no antigo palácio de Cnossos, em Creta. As ruínas do edifício, erigido cerca de quatro mil anos antes, haviam inspirado lendas poéticas durante gerações, entre elas a que dizia respeito ao labirinto do palácio e ao Minotauro, a temível criatura metade homem e metade touro que aí se encontrava aprisionada. Diz a história que o rei Minos pediu a Dédalo, arquiteto brilhante, que construísse um labirinto no centro do qual seria colocada a dita criatura. O Minotauro era uma aberração gerada pela mulher de Minos e o touro branco de Poseidon. Para o manter sob controlo e saciar a fome da besta, o rei Minos oferecia sacrifícios — prisioneiros de Atenas, o seu vizinho menos poderoso — de nove em nove anos. Teseu, jovem príncipe de Atenas, decide partir para Creta e matar o Minotauro com a ajuda de Ariadne, filha do rei Minos, que estava apaixonada por ele.
Ariadne entrega a Teseu um novelo de lã, que ele devia desenrolar ao longo do trajeto até ao Minotauro, a fim de, uma vez aniquilada a besta, poder voltar a sair do terrível labirinto. Teseu é bem‑sucedido nos seus intentos, mas aproveita‑se friamente de Ariadne, e, segundo uma das versões da história, abandona‑a, inconsolável, na ilha de Naxos, na viagem de regresso a Atenas. No começo do século XX, durante as escavações arqueológicas conduzidas nas ruínas do palácio de Cnossos, pela equipa chefiada por Sir Arthur Evans, foram descobertas diversas inscrições antigas em placas de barro. A estas inscrições, em línguas diferentes e totalmente desconhecidas, foram atribuídas as designações Linear A e Linear B. Foi uma descoberta simultaneamente maravilhosa e exasperante. Ali estava uma possibilidade de recuar milhares de anos e aprofundar o conhecimento de aspetos concretos da vida e da civilização minoicas, só que numa língua que parecia impossível de decifrar.
Na América, Alice Kober, que nas décadas de 1930 e 1940 se deixara fascinar pelas possibilidades da Linear B, decidiu estudar várias línguas antigas, incluindo o sumério e o hitita, para assim começar a desvendar os seus segredos. Todos os momentos livres que tinha eram passados em casa, a tentar resolver este mistério. Curiosamente, a meticulosa metodologia de classificação de todos os símbolos e "letras" da Linear B, seguida pela professora Kober, haveria de prefigurar uma das principais técnicas usadas em Bletchley Park durante a Segunda Guerra Mundial. Cada símbolo e cada potencial termo ou palavra foram cuidadosamente catalogados e a frequência com que surgia cada um dos símbolos, assim como o modo como se relacionavam com a frequência de outros símbolos, foi objeto de análise.
A professora Kober usou maços de cigarros para fazer as suas fichas e não se deixou intimidar pela ideia de decifrar uma língua da Idade do Bronze. Ao cabo de longos anos de investigação, a sua metodologia começou a dar frutos. Conforme observou, certos conjuntos de símbolos começavam de forma igual mas terminavam de modo diferente, o que a fez concluir que não estava simplesmente diante de um conjunto de hieróglifos, mas de uma língua flexionada, na qual o final das palavras mudava em função do contexto da frase.
Entretanto, do outro lado do Atlântico, Michael Ventris também dedicava uma boa parte das suas horas vagas ao estudo deste enigma da Antiguidade. Nascido em 1922, o jovem participara numa visita de estudo a um museu, onde, por coincidência, se encontrava também o arqueólogo Sir Arthur Evans para fazer uma palestra sobre a descoberta da placa que denominara Linear B. Ventris sentiu‑se imediatamente arrebatado pela ideia de a descodificar. Filho de pais poliglotas, ele próprio tinha um dom para as línguas que se manifestara muito precocemente. Alguns anos mais tarde, com apenas dezoito anos, publicou um artigo numa revista de arqueologia americana, no qual defendia a teoria de que a Linear B era uma variação de uma língua etrusca antiga. Todavia, não sendo esta uma forma de ganhar o sustento próprio, o jovem Ventris decidiu enveredar pela arquitetura. Com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial alistou‑se na Royal Air Force e cumpriu várias missões de bombardeamento sobre território inimigo, no perigoso posto de oficial navegador. Casou aos vinte anos e após a guerra foi destacado para a Alemanha durante um curto período, em parte para colaborar nos contactos com os soviéticos (falava alemão e russo). Instaurada a paz, Ventris retomou os seus estudos de arquitetura. No entanto, continuava a pensar na Linear B e nos seus mistérios (não se percebe como o seu evidente talento para decifrar códigos passou despercebido aos omnipotentes recrutadores de Bletchley Park).
Em 1948, o seu trabalho meticuloso (à semelhança da professora Kober, também ele estudou diversas línguas mortas) atraiu a merecida atenção. Após a morte de Sir Arthur Evans, a Linear B passou a estar à guarda do académico Sir John Myres, que decidiu juntar as competências de Ventris e da professora Kober. Os três reuniram‑se em Oxford. Ventris, então um jovem arquiteto profissional em início de carreira, não se sentia entusiasmado com a ideia de confrontar as suas capacidades com as de classicistas devidamente formados e experimentados. No entanto, ambos acabariam por criar uma relação de trabalho e, nas semanas e meses seguintes, Ventris correspondeu‑se com a professora Kober, que entretanto regressara a Brooklyn, partilhando com grande entusiasmo as suas teorias sobre os símbolos.
Infelizmente, Alice Kober viria a falecer, em 1950, com apenas quarenta e três anos. Ventris, no entanto, não desistiu da investigação que tanto o apaixonava. Num gesto que poderá parecer excêntrico, suspendeu a sua atividade como arquiteto para se dedicar a tempo inteiro ao estudo deste mistério micénico. Num momento de inspiração conseguiu identificar topónimos no meio dos carateres e percebeu que descobrira uma rápida porta de acesso. De repente, alguns dos símbolos e carateres tornaram‑se inteligíveis e concluiu que estava perante uma forma primitiva de grego antigo. Em 1952, Ventris conseguiu montar um telescópio temporal metafórico que apontava diretamente para o magnífico palácio de Cnossos e para a vida que se desenrolava para lá das suas paredes. Foi convidado a apresentar uma palestra no Third Programme da prestigiada estação radiofónica BBC, uma enorme honra para alguém que não pertencia ao meio académico. Graças a isso, o seu trabalho e as suas descobertas cativaram a imaginação de um vasto público. John Chadwick, especialista em linguagem e docente em Cambridge, ofereceu‑se para colaborar com ele e ambos conseguiram deslindar na íntegra o significado dessa placa denominada Linear B, até então incognoscível. O seu feito teve uma larga repercussão, em parte por demonstrar que o entusiasmo de um estudioso amador conseguia alcançar feitos ditos impossíveis. Ventris foi agraciado com o OBE (Ordem do Império Britânico) e regressou à arquitetura. Lamentavelmente (tal como Kober), também ele teve uma morte prematura, na sequência de um desastre de automóvel, em 1956. O seu nome, porém, sobreviveria.
O que nos revelou ele sobre o dia a dia no mundo micénico? Como viviam os criadores de mitos tão extraordinários? É provável que aí não tenham existido monstros metade homem e metade touro, mas foi decerto palco de uma cultura vibrante. Após milhares de anos na obscuridade, os factos reais destacavam‑se do cadinho da lenda. Sob o céu azul‑pálido desses tempos, e naquele chão rugoso e coberto de pó, havia carros de combate, competições e túmulos de guerreiros, e no palácio de Cnossos vivera um grande rei. Em Cnossos vigorava um criterioso regime de propriedade — para homens e mulheres — e havia escravos, imediatamente identificados pelo tipo de indumentária. Esta civilização nunca receou aventurar‑se nos mares intensamente azuis, não apenas para os patrulhar quando espreitava o perigo, como também para comprar e vender azeite e vinho. A religião era praticada na forma de um culto misterioso. No interior do palácio de Cnossos existia um salão enorme, aparentemente destinado à oração e ao ritual. Sacerdotes, sacerdotisas e escravos especiais estavam adstritos ao templo. Quanto ao aprovisionamento de tudo o que era necessário à vida da cidade e à manutenção da ordem pública no quotidiano, eram assegurados pelos que, na Idade do Bronze, exerciam funções equivalentes aos atuais funcionários públicos.
Foi neste mundo que surgiram epopeias como A Ilíada, lendas que cantavam as aventuras e mitos extraordinários e as narrativas fantásticas da época. O rei Minos e o seu monstro foram provavelmente reflexões distorcidas de uma forma mais antiga de culto prestado aos animais (não muito diferente da dos romanos em relação a Mitra, o seu deus‑touro, surgida posteriormente), nunca tendo sido encontradas provas da existência de um labirinto, o que não deixa de causar algum desapontamento. Todavia, o feito alcançado pela professora Kober e Michael Ventris, no século XX, foi espantoso. O seu trabalho de decifração do código funcionou quase como uma máquina do tempo, que deu finalmente ao mundo a oportunidade de compreender melhor uma das suas grandes civilizações. Não o fizeram por obrigação, mas movidos por uma paixão pela descoberta na sua aceção mais pura. O empenho que ambos colocaram na aquisição desse conhecimento oculto acabou por culminar na revelação de um tempo perdido. Neste sentido, a descodificação da Linear B não só fez história como também a alterou de forma subtil.
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