Na década de 1920, o mundo libertava-se das garras da Primeira Guerra Mundial e de uma pandemia devastadora, a da gripe espanhola. O mundo celebrava o fim de uma era negra ao ritmo do charleston e do foxtrot. Portugal, não obstante a grave crise que atravessava, à beira da bancarrota, não quis ficar aquém do tempo frenético que corria a Europa. Nas ruas de Lisboa e arredores, uma elite, desfilava roupa vinda de Paris, frequentava as praias, conduzia novos automóveis, praticava desporto por questões estéticas, sentava-se em pastelarias, cafés, dançava e jogava nos clubes noturnos, maravilhava-se frente aos ecrãs de cinema. A capital rendia-se ao lema “ver e ser visto”. Um tempo que a investigadora Paula Gomes Magalhães reabilitou para o seu livro “Os Loucos Anos 20 - Diário da Lisboa Boémia” (edição Planeta). Com a autora, doutora e mestre em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras de Lisboa, percorremos, em entrevista, este mundo de há um século. Entramos nos cinemas e teatros, folheamos os magazines da época, passeamo-nos num Chiado que nos parece próximo nos seus ritmos diários. Vamos à praia e ao hipódromo. Uma breve viagem ao que de mais louco e memorável deixaram os anos anteriores à instauração da ditadura em Portugal.
Seria interessante iniciarmos esta conversa com o contexto da época. Vivíamos o pós-Primeira Guerra Mundial e Gripe Espanhola. Que Europa encontramos?
No fundo, é uma Europa que saía de uma profunda depressão vivida por toda a comunidade. A Primeira Guerra Mundial afetara severamente o nosso continente, naturalmente em diferentes escalas, dependendo dos países. Temos a somar a Gripe Espanhola o que provocou uma crise à escala global. Mais tarde, iremos assistir a algo idêntico com a Grande Depressão de 1929. O que temos, de facto, naqueles anos de 1920, é uma espécie de “explosão” social gradual, repleta de otimismo e progresso. Hoje, após o que vivemos coletivamente neste último ano e meio, entendemos o significado desta libertação. Os espartilhos num determinado período provocam, a jusante, um movimento de libertação. Sobrepõe-se a ideia de que nos pode acontecer algo de menos bom amanhã, logo há que viver o momento.
Como se vivia o momento nos anos de 1920?
Como referi, há um movimento de libertação, mas também de irreverência e extravagância. Em síntese, incrementa-se o consumo, o mercado automóvel cresce, não obstante a precaridade das estradas; surgem eletrodomésticos que facilitam as tarefas domésticas e, com isso, mais tempo para o lazer. Os transportes têm um novo impulso o que estimula o turismo e as viagens. O cinema ganha as salas de espetáculo, com público crescente e a ascensão de artistas estrangeiros e nacionais. A rádio conquista o entretenimento com as primeiras transmissões com esse fim. Os cafés enchem-se, os cabarets animam as noites, as mulheres ocupam cargos habitualmente destinados aos homens.
No entanto, em Portugal vivíamos uma época de instabilidade política, económica e social. Aparentemente a conjuntura não seria propícia a grande festa…
Certo. Se pensarmos na forte instabilidade social, económica e política, Portugal estava a anos-luz do grande desenvolvimento das capitais europeias. Naturalmente, temos de olhar para estes loucos anos 20 de forma estratificada, uma vez que a libertação que referi não é extensível a toda a população. Uma considerável fatia da população continuaria a viver com muitas dificuldades, sem trabalho ou mal remunerada, incapaz de adquirir bens essenciais, e mergulhada no analfabetismo. Sucediam-se greves, manifestações, atentados e governos de curta duração.
No fundo, há uma elite em Portugal [a designada smart set] que ascende à onda libertadora que referi e que mimetiza o que acontece noutras capitais europeias, nomeadamente em Paris. Na realidade, pretendo com o meu livro abordar a Lisboa boémia, já que na época vincam-se os traços de forte modernização, tal como noutros países da Europa. Talvez a distância entre Lisboa e as outras capitais europeias tivesse encurtado naquele período.
Há uma elite em Portugal [a designada smart set] que ascende à onda libertadora que referi e que mimetiza o que acontece noutras capitais europeias, nomeadamente em Paris.
A Paula referiu há pouco as alterações na condição da mulher. Quer pormenorizar?
Sim. Se no vestuário a mulher largou o espartilho, metáfora de libertação em finais da década anterior, também passa a ocupar novos cargos no mercado de trabalho. A Guerra afastou os homens e muitos regressaram do combate incapacitados. Novas tarefas no mercado de trabalho para a mulher, leva-a a simplificar o vestuário. No que toca ao automóvel, as mudanças são ainda mais marcantes. A velocidade que nos permite chegar mais rápido, ter mais tempo para a diversão e estatuto social, conferida pelo automóvel, ganha relevo no caso da mulher. Esta a assumir na época um papel associado ao sexo masculino, o da condução. Na realidade, a mulher condutora não era bem vista por todos os olhos e o conservadorismo era bastante vincado. Aliás, como nos dizem os cronistas da década de 20, nem as próprias mulheres viam com bons olhos as mulheres automobilistas.
Ao vermos imagens da época encontramos as esplanadas de Lisboa apinhadas, o hipódromo lotado. A capital vivia em pleno o ar livre. Se viajássemos ao passado o que encontraríamos?
O automóvel, que acabo de referir, era usado para os espaços de sociabilização da época, por exemplo, os clubes, os teatros e cinemas, mas também a sociabilização na rua. Algumas mulheres deslocavam-se ao Chiado para percorrerem as lojas e pastelarias da moda, para o chá das cinco, ou para o hipódromo, para as corridas de cavalos. A prática desportiva começa a ganhar relevância, quer a masculina, quer a feminina, o que também trouxe alívio na indumentária. Havia que manter um corpo adequado à nova silhueta [risos]. Também começam a ocorrer deslocações, por exemplo, para passar uma noite num hotel. Sem esquecer que no período de veraneio havia uma corrida às praias. Embora o ir à praia não fosse exatamente o que vemos hoje.
Como era ir à praia nos anos de 1920? Encontramos as praias dos ricos e as dos remediados?
Se pensarmos na praia dos menos abonados, o mar era entendido com algum receio, nomeadamente permanecer muito tempo na água. O mar era visto mais como um “medicamento”. No caso da sociedade mais abastada, a vivência da praia era muito diferente daquela que encontramos atualmente. Um cronista dizia que esta sociedade vivia nas praias como nos salões. Ou seja, as pessoas mantinham-se vestidas nos areais. Há um outro cronista do início dos anos 20 que sublinha que quando se começam a promover os espaços de veraneio, sobretudo a Norte, as atividades eram tantas que sobrava pouco tempo para os mergulhos de mar. Vai encontrar, por exemplo, os casinos, os espaços de dança. Fomentava-se o ver e o ser visto. No fundo, um desfile de vaidades. Fora da praia, as corridas de cavalos eram momento para as modistas apresentarem os seus modelos.
Não podemos olhar para a Avenida da Liberdade como a vemos agora. Quando o Teatro Tivoli foi inaugurado duvidava-se do seu sucesso por estar afastado do centro da cidade.
É curioso constatar que já naquela época o Chiado vivia diferentes realidades dependendo da hora do dia. Podemos fazer um paralelismo com o que vivemos atualmente. Concorda?
Julgo que podemos falar em muitos Chiados. De manhã, temos aqueles que se deslocam para o trabalho. Apesar de mais calmo, era um Chiado já bastante movimentado. Tal como no período da Belle Époque, no início do século, a tarde trazia a demanda das pastelarias. Pelas 16 horas, o Chiado tornava-se mais fervilhante, com as muitas mulheres e homens que ali se deslocavam para verem as montras, ou simplesmente mostrarem-se. O chá das cinco estava na moda. Mais tarde, havia o regresso a casa, por exemplo, o das costureiras que trabalhavam naquela zona da cidade. Os fins de tarde traziam as tertúlias políticas, sociais e artísticas aos cafés, como a Brasileira do Chiado, o Chave d’Ouro, o Martinho, o Café Suisso, com a circulação de população desde os Restauradores, com a procura de clubes, teatros e cinemas.
Esta atividade estendia-se até à Avenida da Liberdade, tal como hoje?
Não podemos olhar para a Avenida da Liberdade como a vemos agora. Quando o Teatro Tivoli foi inaugurado duvidava-se do seu sucesso por estar afastado do centro da cidade. Ou seja, a animação que referiu estava concentrada na zona do Chiado, na rua das Portas de Santo Antão, nos Restauradores, no Rossio.
Uma noite frenética…
Há descrições de grande confusão à saída dos teatros, com a passagem e estacionamento de automóveis, inclusivamente porque havia muito receio face ao veículo motorizado. Contudo, nada que se comparasse com outras capitais europeias.
No seu livro cita dois jornalistas da época, João Ameal e Luís Oliveira Guimarães: “As vitrines! Que mundo de ilusões, de loucuras, de ambições, de fantasias, de sonhos loucos”. Lisboa era uma cidade que acompanhava a vanguarda da moda?
Vivia-se uma época em que a imagem era importante. Se pensarmos que há toda uma transformação da silhueta feminina, há, naturalmente, a procura de novos modelos, como marca de modernidade. É importante mostrar e onde mostrar. As mulheres já não recorrem apenas às suas modistas particulares, mas também às lojas. A publicidade passa a ser muito importante no contexto das vitrines. Também importávamos roupa do estrangeiro. Entre as elites, eram frequentes as idas a Paris para adquirirem os novos modelos. Mas também encontra modistas a copiarem modelos a partir de ilustrações que apareciam nas revistas.
Dá-nos a deixa para falarmos das publicações da época. A acompanhar esta vida mundana surge um novo tipo de publicação, o magazine. Quais eram os títulos de referência naquela década?
Nos anos de 1920, temos uma explosão na publicação de magazines semanais ou quinzenais, com um grafismo cuidado e, nalguns casos, com o contributo de artistas conceituados como Stuart Carvalhais, colaboradores como Raúl Brandão ou Jaime Cortesão e jornalistas como Reinaldo Ferreira [Repórter X], assim como colaboradoras, como Fernanda de Castro. Conquistavam um público abrangente, com temas como as atualidades, os desportos então na moda, o teatro, o cinema, artigos literários e científicos. Isto sem que faltassem anúncios a produtos de beleza, eletrodomésticos e automóveis.
O público a quem se destinavam estas publicações era maioritariamente masculino, embora a procurar atrair o universo feminino, com temas recorrentes como moda, gestão da casa e, aos poucos, o papel da mulher no mundo.
Nas bancas, encontrávamos, por exemplo, a revista Ilustração ou a ABC, esta última com capas de sucesso. Também com destaque encontramos a revista Ilustração Portuguesa, relevante nas duas primeiras décadas do século XX, mas também com lugar no início da década de 20. Apresentava conteúdos que equilibravam a modernidade e o conservadorismo. Como vimos, estes loucos anos 20 não foram assim tão loucos para todos.
Num misto de magazine e jornal, temos o surgimento em 1925 d’O Domingo Ilustrado. Encontramos também as publicações onde prepondera a moda feminina, como a Voga, a Eva: Jornal da Mulher e do Lar, a Vida Elegante, muitas delas revistas efémeras.
Nos anos 20, o público também começou a olhar para os palcos de outra forma com o cinema. Nascem muitas salas em Lisboa?
Sim, temos muitas salas, a sedução do cinema era muito grande. Quando falamos dos anos 20, estamos a falar de uma explosão do star system norte-americano, nomeadamente Hollywood. Apesar da prática teatral não entrar em declínio, alguns espaços adaptaram-se ao cinema. O lucro importava e os espaços de sociabilização acompanham o cinema, nos átrios, nas varandas, nas escadarias, nos salões de fumo. Ter os espaços cinematográficos cheios era tentador para os gestores dos teatros. Veja-se o São Luiz que se transformou num cinema para reabrir com o filme Metrópolis, de Fritz Lang. Os periódicos da época, importantes como fonte de pesquisa para o meu livro, identificavam, em Lisboa, entre outros animatógrafos, o Salão Foz, o Chiado Terrasse e o Salão Ideal. Mais tarde, já com a designação de cinemas, encontramos o Tivoli, o Ódeon, o Central, o Royal Cine.
Por outro lado, o cinema português começou a captar as estrelas do teatro. É claro que ainda eram estrelas maioritariamente subsidiárias das estrelas do teatro. Rosa Maria foi uma das primeiras atrizes que se notabilizou sem ter passado pelo teatro, a participar em filmes como Maria do Mar, realizado por Leitão de Barros.
Paralelamente, o teatro de revista também granjeava atenções...
Também. Temos um desenvolvimento enorme da revista com a criação do Parque Mayer, em 1922, e que passa a ser uma espécie de templo deste género de espetáculo. Por ser uma década de forte elemento visual, com a música e a dança a preponderarem, os géneros que mais vingam são aqueles que comportam esses elementos. Daí o incremento da revista, com a comicidade e uma forte relação com o quotidiano. Em paralelo, chegam ao teatro algumas figuras que transformam a revista. Temos modificações por via da estética modernista. A revista passa a ter o contributo de diferentes artistas modernistas, defensores de um visual muito subsidiário daquilo que em tempos tinham visto nos ballets russes. Também não é de menosprezar a presença de artistas estrangeiros que chegam ao nosso país e aqui permanecem.
Muitas companhias internacionais passaram por Portugal e deixaram a sua marca no nosso país, como por exemplo as companhias francesas Bataclan e Revue Negre ou a espanhola Velasco.
Temos um desenvolvimento enorme da revista com a criação do Parque Mayer, em 1922, e que passa a ser uma espécie de templo deste género de espetáculo.
Há também uma Lisboa da cocaína, ópio e morfina. O consumo era preocupante na época?
Alguns artigos da época já denotam alguma preocupação em relação ao consumo de drogas. O que trouxe para o meu livro não é uma análise social, antes o espelho da sociedade. Se pensarmos nestas ambiências noturnas frenéticas, a cocaína permitia aos frequentadores da noite, e aos que dela viviam, aguentarem aquele ritmo horas a fio. Não nos podemos esquecer que o ambiente noturno não era apenas frequentado pela elite, mas por pessoas que acabavam na noite por não terem outras opções. Assim acontecia com as coristas, raparigas que vinham da província, fugindo da pobreza, mas que encontravam na cidade uma outra vivência degradante, inclusivamente a prostituição.
Com o golpe de maio de 1926 há uma mudança gradual nesta vida boémia lisboeta. Não era possível imaginar o estado autoritário que se seguiria?
Percebemos isso através da leitura de periódicos da época. Por exemplo, quando algumas representações no teatro fugiam à norma eram travadas ou tinham críticas negativas por parte de um setor mais conservador. Na verdade, podemos dizer que os ânimos foram refreados progressivamente a partir do golpe de 28 de maio de 1926 [queda da Primeira República Portuguesa e instaurou a Ditadura Militar]. Para além da censura que passou a vigorar, em termos absolutos, a sociabilidade não se ressentiu de imediato, foi gradual. Por exemplo, os clubes noturnos subsistiam muito do jogo ilegal. Ora, a legislação obrigou a que gradualmente os clubes fechassem. Estes eram o símbolo de uma época. Com eles, desaparece toda uma forma de sociabilidade. Não despareceu por completo, mas refugiou-se dentro de paredes. Seria mais recatada.
A Paula ao terminar o seu livro sentiu algum saudosismo?
Tenho saudosismo desde que fiz a minha tese de mestrado sobre o Teatro Ginásio no século XIX. Por vezes digo que tenho saudades de um tempo que nunca vivi [risos]. Sou uma apaixonada por resgatar estes temas.
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