Os nossos sentidos são o elemento central que nos ajuda a “navegarmos” pelo mundo. Segundo Sensações (Bertrand Editora), a redução da nossa paleta de sentidos, altamente potente e deliciosamente variada, a um pequeno leque de apenas cinco faz pouca justiça à experiência sensorial. De facto, poderíamos contar até cinquenta e três - e eles poderiam explicar mistérios como o porquê de nos beijarmos, de que forma a música pode ser uma moeda emocional, e como uma dieta rica em laticínios trouxe uma grande tensão aos primeiros tempos das relações euro-japonesas. Ashley Ward, biólogo, professor e diretor do Laboratório de Comportamento Animal da Universidade de Sydney, mostra-nos até que ponto a nossa realidade sensorial é pouco mais do que uma ilusão fantástica construída pelos nossos cérebros.

No seu livro, o autor convida o leitor a uma expedição sensorial para responder a perguntas como as seguintes: Por que razão as mulheres têm um olfato mais apurado do que os homens? Por que motivo temos visão a cores? Será possível que o iPhone tenha mudado a forma como nos tocamos? O Danúbio parece mesmo azul quando se está apaixonado?

Ashley Ward publicou mais de 100 artigos em revistas, incluindo PNAS, Biological Reviews e Current Biology. É autor de The Social Lives of Animals. Vive em Sydney, Austrália.

Um novo olhar sobre os nossos sentidos – Sensações

A luz, as sombras e as cores não existem no mundo à nossa volta.

— Discurso de apresentação do professor C. G. Bernhard, membro do Comité Nobel de Fisiologia ou Medicina

Está uma gloriosa manhã de primavera em Sydney e sinto um nervoso miudinho enquanto atravesso o campus universitário, em direção ao anfiteatro, onde vou falar sobre os sentidos com o meu grupo mais recente de alunos. Adoro observar os seus rostos quando descrevo as maravilhas da biologia sensorial. É um tema espantoso e quero fazer-lhe justiça; não estou apenas a transmitir informação, estou a pôr em cena uma atuação na esperança de que o meu entusiasmo possa espoletar o deles.

Pelo caminho, atravesso um marco histórico de Sydney conhecido como o Quadrangle, a peça central do campus universitário. Os arquitetos acrescentaram um toque final, uma árvore subtropical, num canto; todos os anos, à medida que a primavera se instala no hemisfério sul, este venerável jacarandá irrompe em flor, as suas flores lilases e perfumadas anunciam o início do ano académico. Os jacarandás de Sydney juntam-se a este, transformando a cidade. Durante um mês, os parques e os passeios ficam cobertos de pétalas. Para mim, é o ponto alto sensorial do ano.

Enquanto admiro a velha e grandiosa árvore, não posso deixar de pensar em como é incrível que fotões de luz e moléculas de cheiro teçam tal majestosidade. Como é que o meu cérebro acede a esta informação básica e a transforma na maior de todas as sinergias para desencadear uma experiência percetiva?

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Embora a minha atenção seja capturada pelo jacarandá, estou ciente de uma série de outras sensações. Uma pega australiana palra de um poleiro no topo de um dos edifícios que rodeiam o Quad. O seu murmúrio, estranhamente metálico, parece uma versão steampunk dos pássaros canoros com os quais cresci em Inglaterra. Simultaneamente, sinto a brisa matinal que vem do oceano Pacífico, passando pelo arco do lado leste do Quad. A minha boca enche-se com o sabor quente de uma das pastilhas de anis em que confio para ter uma voz clara em cada palestra. Simultaneamente, uma combinação de outros sentidos mantém-me de pé, enquanto atualiza o meu cérebro sobre as minhas necessidades corporais e me mantém alerta para o que me rodeia.

E este é apenas um momento fugaz de sensação. O fluxo de sensações variáveis fornece a nossa ligação percetiva ao mundo, uma multiplicidade de mensagens recebidas que se juntam para escrever a autobiografia de cada segundo das nossas vidas. Por muito que a nossa perceção possa parecer uma experiência sensorial coerente e singular, não deixa de ser uma harmonia de muitos sentidos distintos, mas, ainda assim, combinados. A questão de quantos sentidos são carece ainda de uma resposta definitiva vinte e três séculos depois de ter sido feita a primeira tentativa fundamentada para lhe responder.

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créditos: pressfoto/Freepic

O filósofo grego Aristóteles é justamente considerado um dos pensadores mais influentes da História. Por vezes, as suas ideias falharam o alvo, por exemplo, a afirmação de que os bisontes desencorajam os cães de os perseguirem disparando contra eles fezes cáusticas, ou a sua intrigante ideia de que as abelhas são surdas com base no facto de ele não lhes conseguir ver orelhas. Não obstante o passo em falso ocasional, o seu legado é extraordinário. Diz-se que a ciência da biologia surgiu do seu trabalho e muitas das coisas que descreveu há mais de dois mil anos continuam atuais. De facto, é a Aristóteles que se atribui a descoberta, se essa for a palavra certa, de que temos cinco sentidos (ou, mais formalmente, modalidades sensoriais): visão, audição, paladar, olfato e tato. Muitas vezes, Aristóteles tem má fama por causa disso, em grande parte porque parece ter afirmado algo que era simplesmente óbvio. Em sua defesa, isto foi apenas uma pequena parte das suas teorias perspicazes e revolucionárias sobre a perceção e sobre a forma como os sentidos se combinam para nos proporcionarem a nossa experiência do mundo. No entanto, o nome do pobre velho Aristóteles é tipicamente arrastado para a confusão sempre que se faz a pergunta: “Quantos sentidos temos?”

Esta regra dos cinco sentidos ainda é a base para a nossa educação precoce no que toca aos sentidos; contudo, fica um pouco aquém da história toda. Temos certamente mais de cinco e, dependendo da forma como dividimos e organizamos as diferentes categorias, podemos ter até cinquenta e três. O toque, por exemplo, é um composto de múltiplos sentidos diferentes que poderiam ser subdivididos, depois há outros como a equilibrioceção (o sentido do equilíbrio) e a proprioceção (o sentido da posição do nosso corpo), que ficaram fora dos cinco originais. Impor um número preciso aos sentidos, embora possa ser popular como um tópico de debate peculiar, não é especialmente útil. No entanto, é importante saber o que queremos dizer quando descrevemos algo como um sentido.

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O autor publica regularmente no seu site fotografias de Sydney e arredores, cidade onde vive e trabalha. créditos: Ashley Ward

Regra geral, um sentido pode ser definido como uma faculdade que deteta um estímulo específico por meio de um recetor dedicado a esse estímulo. Por exemplo, quando a luz entra no nosso olho, é absorvida por uma molécula conhecida como retinal, que se encontra dentro das células recetoras de luz da retina. A energia da luz faz com que a retina execute uma pequena contorção molecular, desencadeando por sua vez uma reação química em cadeia que acaba por produzir um estremecimento minúsculo de eletricidade. É este pequeno choque que se transmite ao longo do nervo ótico até ao cérebro que está à espera e depois interpreta a mensagem e inúmeras outras que chegam simultaneamente de recetores vizinhos para nos proporcionarem a sensação visual da luz. Este processo de conversão de um estímulo num sinal que o cérebro consegue compreender é conhecido como transdução.

Os recetores do paladar, entretanto, revestem as nossas línguas, o interior das nossas bochechas e o próprio topo do esófago. Dêem-lhes uma molécula e, milissegundos depois, estarão a contar tudo ao cérebro.

Também temos recetores gustativos espalhados pelo corpo em locais como o fígado, o cérebro e até os testículos. Esta última revelação, feita por um artigo publicado em 2013, deu origem a uma moda entre os jovens que começaram a enfiar os testículos em coisas como molho de soja, sendo que alguns chegaram a afirmar terem registado uma pontada de sabor. O problema é que, embora os recetores gustativos possam ser encontrados em lugares tão extraordinários, não estão organizados em papilas gustativas e nem estão ligados ao cérebro da mesma forma que os recetores na nossa boca, pelo que não proporcionam a experiência do sabor. O resultado líquido é que os participantes se expõem não só a gónadas cobertas de condimentos, mas também a acusações de devaneio. Apesar das taças de molho de soja estragado, um sentido só é um sentido se envolver não só recetores especializados, mas uma autoestrada de informação funcional até ao córtex sensorial do cérebro. No entanto, embora as vias nervosas dos nossos sentidos conduzam inexoravelmente dos recetores ao cérebro, seria errado concluir que o cérebro é meramente um computador, que recebe e descodifica de forma neutra a informação que lhe chega.

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O cérebro é a sede de todos os nossos conhecimentos, emoções e personalidade; é a casa dos nossos pensamentos mais íntimos e o lugar onde experimentamos tudo na nossa vida. Situado em segurança dentro da cápsula protetora do crânio, o cérebro encontra-se num equilíbrio fisiológico totalmente controlado. Não tem sensações próprias, mas é aqui que todas as nossas experiências ocorrem. Equipado com uma vasta e complexa rede de ligações aos órgãos sensoriais, o cérebro recebe o equivalente a terabytes de informação a cada segundo. Processa e interpreta toda esta informação quase instantaneamente, misturando a informação proveniente de diferentes fontes numa proeza computacional inigualável. O resultado de todo o trabalho que o cérebro faz a filtrar, ordenar e processar a informação recebida é conhecido como perceção. Mas este é um processo longe de ser passivo.

O cérebro não se limita a recolher e organizar dados, ele regula e condiciona ativamente. Os sinais do mundo exterior são interpretados e estratificados com preconceitos, expectativas prévias e emoções.

Esta integração de sensações e sensibilidades desempenha um papel muito importante nas nossas perceções.

Há muitos anos, na única ocasião em que puseram os pés fora da Grã-Bretanha, os meus avós viajaram para Viena. A minha avó sempre tivera o sonho de visitar Viena, de se divertir na bela cidade, ver a sua arquitetura, provar Sachertorte, ouvir as famosas valsas no seu local de origem. Mais tarde, contou que tinham dobrado uma esquina e tinham dado com o famoso rio que divide a cidade.

— Olha, Jim! O Danúbio! — gritou ela na sua excitação. — Dizem que se estivermos apaixonados, parece azul!

O meu avô não era um homem que se deixasse facilmente comover pela poesia. Com as suas vogais de Yorkshire tão planas como o boné que usava habitualmente, respondeu de forma concisa:

— Parece-me castanho como um raio, cá para mim.

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Embora o senso comum possa ditar que as águas de um rio tão grande e industrializado nunca se assemelhariam a uma lagoa azul e silvestre mesmo para os românticos mais incuráveis, há uma ponta de verdade nisto. Quando estamos emocionalmente excitados, a atividade no córtex visual do cérebro aumenta e o que vemos torna-se mais intenso e mais brilhante, se bem que não necessariamente mais azul. Quanto ao meu avô, as suas sensações nessa viagem foram provavelmente guiadas pelas suas atitudes. A nossa mentalidade, até certo ponto, influencia a atividade neuronal no nosso cérebro, de modo que vemos o que esperamos ver.

Em última análise, a perceção convincente da realidade de que cada um de nós desfruta é, efetivamente, uma ilusão complexa, mas brilhante. Isto, mais do que qualquer outra coisa nas discussões sobre os sentidos, faz com que as pessoas se sintam reticentes. Pensamos em nós próprios como criaturas racionais e criteriosas, portanto, como podem as nossas experiências imediatas ser ilusórias? Para ilustrar este ponto, podemos usar um exemplo simples. Tenho uma caneca de chá à minha frente enquanto escrevo. Se eu pedisse a alguém que a inspecionasse de perto e a descrevesse, talvez me dissesse a cor da caneca e o seu conteúdo, que cheira a chá, que está quente. Se a pessoa bebesse um gole, dir-me-ia que tem um sabor ligeiramente amargo, leitoso e que, em termos gerais, bem, sabe a chá.

A experiência que essa pessoa teria da minha caneca de chá parecer-lhe-ia completa e objetivamente real, e consideraria que a sua realidade se identificava com a minha. No entanto, embora as nossas experiências sensoriais do chá se sobrepusessem em larga medida, a sobreposição não seria completa. A nossa apreciação das subtilezas da cor poderia ser diferente. De igual forma, o cheiro e o sabor do chá seriam diferentes para cada um de nós. Se a outra pessoa tivesse vindo recentemente de um local frio, sentiria o chá mais quente do que eu. Além disso, os nossos sentimentos dão cor às nossas perceções. Talvez a outra pessoa seja do Médio Oriente e fique horrorizada com a ideia de pôr leite no chá. Se assim fosse, a sua resposta à caneca de chá seria moldada, em parte, pelo seu juízo cultural. A experiência parece real para cada um de nós, mas nenhuma experiência é objetivamente correta. Isso não impede que as pessoas tentem argumentar que a sua perceção subjetiva prevalece sobre a dos outros.

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créditos: svetlanasokolova/Freepic

Estas diferentes matizes da realidade são apenas o início da grande ilusão. Torna-se mais fascinante, e muito mais estranho. Uma coisa é as pessoas colocarem a hipótese de poder haver uma perspetiva alternativa sobre a cor, por exemplo, mas outra coisa é as pessoas aceitarem que a cor não existe, de facto, fora do nosso cérebro. Não só não há cor, como também não há som, nem gosto, nem cheiro. O que percebemos como vermelho, por exemplo, é apenas o irradiar de energia com um comprimento de onda de cerca de 650 nanómetros. Não há nada de intrinsecamente vermelho; a vermelhidão está nas nossas cabeças. O que pensamos como som são apenas ondas de pressão, enquanto sabor e cheiro não são mais do que diferentes configurações de moléculas.

Embora os nossos órgãos sensoriais façam um esplêndido trabalho de deteção de cada uma delas, é o cérebro que as constrói, convertendo-as numa estrutura que nos permite compreender esse mundo. Por muito valiosa que essa estrutura seja, é uma interpretação da realidade e, como todas as interpretações, é subjetiva.

A conjugação perfeita de toda a nossa informação sensorial numa experiência única e integrada não é coisa pouca e para a alcançar, o cérebro depende de pequenos truques. Por exemplo, tem de compensar as discrepâncias no tempo que leva a processar os diferentes sentidos: a visão, sendo tão rica em dados, demora uma fração mais do que os outros sentidos. É por isso que, mesmo no século XXI, damos o sinal de partida nas finais das corridas de velocidade com uma pistola, em vez de utilizarmos semáforos. O facto de se usar uma pistola não tem que ver com a tradição, não se trata de uma homenagem anacrónica aos nossos antepassados com as suas sobrecasacas, é simplesmente porque os atletas, tal como todos nós, são ligeiramente mais lentos a reagir à luz do que ao som. A nossa sincronização sensorial só é possível porque o cérebro impõe ligeiras desfasagens nos diferentes sentidos para que tudo se alinhe. Além disso, tudo o que experimentamos já aconteceu na altura em que o registamos. Para acompanhar o mundo real e para compensar este ligeiro atraso, o cérebro tem de prever os movimentos. Se não o fizesse, estaríamos desesperadamente dessincronizados e desajeitados.

Com tanta informação a fluir, exigindo atenção imediata, como é que o cérebro consegue acompanhar tudo isto? A resposta é que não consegue. Filtra e seleciona a informação na sua busca perpétua pelo que é importante. Está especialmente atento à novidade e à mudança; a maior parte da informação sensorial que recolhemos constantemente nunca passa da periferia da nossa atenção para entrar na nossa consciência.

Se estiver sentado agora, não é provável que tenha registado a pressão da cadeira nas suas costas ou da roupa na sua pele — pelo menos até ler esta frase. Isto não é o cérebro a ser preguiçoso, mas apenas a separar o importante do irrelevante. O lado negativo é que o cérebro, muitas vezes, não repara nas subtilezas, e é assim que os mágicos, com destreza, conseguem constantemente enganar-nos.

sensações
créditos: Bertrand Editora

Isto ilustra os obstáculos que existem entre a sensação e a perceção, entre a recolha e o processamento dessa informação ao ponto de tomarmos consciência dela. Isto é particularmente importante no caso da visão. O cérebro procura padrões e segue por atalhos utilizando um molde, conhecido como o modelo interno, daquilo que pode esperar sentir com base na experiência do que já sentiu antes. Isto pode ser incrivelmente útil na medida em que permite que o cérebro trabalhe com dados incompletos, invocando um quadro completo a partir de fragmentos.

No entanto, é também a razão pela qual estamos sujeitos a ilusões, e a visão, em particular, está sujeita a ser enganada. Tomemos, por exemplo, a conhecida ilusão da máscara côncava. À medida que vemos a máscara girar lentamente, podemos ver primeiro a superfície convexa da máscara e isso é fácil; os rostos são o bê-á-bá do cérebro humano e tudo faz sentido. Mas o que acontece quando vemos o lado côncavo da máscara? O cérebro vira-a do avesso, pelo que a vemos, invariavelmente, como uma superfície convexa, como todas as faces que vemos sempre.

Apesar de sabermos que o que estamos a ver é oco, o modelo interno do cérebro sobrepõe-se à nossa razão.

O papel dominante desempenhado pelo cérebro na perceção significa que podemos concebê-lo como o maestro da nossa orquestra sensorial, coordenando e integrando os contributos isolados numa experiência única, coerente e rica. Mas sem uma orquestra, não vale a pena um maestro. O cérebro só existe porque existe informação sensorial para processar. Em resposta à antiga questão de “o que veio primeiro?”, os sentidos são o ovo para a galinha do cérebro. De facto, muitos organismos passam bem sem cérebro, mas muitos deles ainda conseguem realizar a deteção básica. Imagine uma bactéria, muito mais pequena do que pode ser visto a olho nu, procurando nutrientes no meio da extensão de um copo de água. A sua cauda fina, semelhante a um chicote, rodopia, descrevendo círculos microscópicos que a empurram como a hélice de um barco. A bactéria não tem qualquer objetivo em mente, mas pode detetar produtos químicos na água e segui-los até à sua fonte. Localiza um ligeiro vestígio de açúcar, uma refeição de boas-vindas para um viajante esfomeado, e move-se na sua direção. À medida que se aproxima, no entanto, deteta um novo químico, uma proteína, que indica problemas sob a forma de outro organismo. Em reflexo, a cauda gira novamente, desta vez na direção oposta, e a bactéria muda de rumo. Esta história de como bactérias como a Escherichia coli rastreiam os gradientes dos nutrientes é simples, mas descreve o funcionamento de algo fundamental: o primeiro sentido a emergir. A vida evoluiu na água há cerca de quatro mil milhões de anos. Os primeiros organismos eram estáticos, incapazes de se moverem exceto com a ajuda de correntes. Ficar exatamente onde se está não é, no entanto, o plano mais satisfatório. A capacidade de procurar novas pastagens permite a um micróbio aventureiro a oportunidade de explorar recursos novos e inexplorados. As cianobactérias, entre as primeiras formas de vida a aparecer, realizam as suas ambições de mobilidade de várias maneiras. Algumas esguicham pequenos jatos de lodo para se impulsionarem. As bactérias deslizam, rastejam e nadam como forma de se deslocarem. Minimigrações como estas são muito mais eficazes se os organismos forem capazes de navegar. Os gradientes químicos são uma propriedade do mundo físico que lhes fornece indicações sobre a sua localização. A luz é outra. Proteínas fotossensíveis, como a rodopsina, absorvem a luz e, ao fazê-lo, são submetidas a uma reconfiguração química que é a base para a deteção dos raios solares e da energia de sustentação que estes fornecem.

Estes passos fundamentais na evolução da complexa vida sensorial foram acompanhados por outros — a capacidade de detetar alterações na pressão, também conhecida como mecanossensibilidade. As bactérias têm canais nas suas membranas exteriores que se abrem em resposta à pressão. Essencialmente, são estes que as impedem de rebentar depois de exagerarem na refeição, são eles que permitem que as bactérias façam corresponder a pressão do seu eu interior ao mundo exterior.

Tem-se especulado que estes canais sensíveis foram os precursores da nossa própria e mais elaborada mecanossensação. Certamente, quando chegamos a organismos mais sofisticados, por exemplo protistas, como a Paramecium, podemos ver que elas respondem ao toque. Como as bactérias, todo o corpo da Paramecium se resume a apenas uma célula viva, mas dar-lhe um toque suave faz com que a sua pressão interna mude e ela responda desatando a correr na direção oposta. Por incrível que pareça, este simples ripostar à estimulação mecânica foi o que acabou por dar origem à audição e ao tato, tal como a deteção da luz foi o ponto de partida para a visão, e a capacidade que as bactérias têm de rastrear os produtos químicos acabou por produzir os nossos sentidos do olfato e do paladar. Estes avanços ocorreram há milhares de milhões de anos nas criaturas mais simples e é um legado sensorial que foi transmitido a cada um dos ramos da árvore da vida.

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créditos: Yoann Boyer/Unsplash

Ao longo da história da evolução, os organismos subiram uma escada sensorial, sendo que cada novo degrau oferece uma vantagem extraordinária àqueles que o subiram. A moeda de troca crucial para estes avanços é a informação: sobre o ambiente, sobre predadores e presas, sobre concorrentes e potenciais parceiros. Os nossos sentidos foram-nos legados por organismos antigos que seguiam gradientes num pântano primitivo e, em última análise, estes sentidos foram a força motriz por detrás da evolução do cérebro.

De facto, o funcionamento normal do cérebro humano depende de inputs sensoriais e, na ausência destes, começam a acontecer coisas estranhas. Recentemente, visitei uma câmara de privação sensorial nos subúrbios orientais de Sydney. Para ter uma experiência mais autêntica, foi-me explicado, teria de me despir completamente, para evitar a sensação de roupa na minha pele, o que poderia colocar uma barreira entre mim e o êxtase que me esperava. E foi assim que me vi completamente nu e consciente de mim próprio a entrar numa cápsula em forma de ovo, antes de fechar a tampa e abraçar o adormecimento sensorial. Deitei-me, ficando o meu peso suportado por uma piscina rasa de água supersalina à mesma temperatura do meu sangue e com tampões auriculares para abafar os ruídos ténues do exterior.

No início, a minha emoção principal foi uma espécie de tédio irritante, com a minha mente a repreender-me como uma criança rabugenta pela privação de estímulos. Assim que isso passou, mudou para standby e relaxei, mas, na ausência de alguma coisa para ver, a minha mente começou a conjurar coisas — flashes de luz, padrões geométricos que ganharam vida e depois encolheram até desaparecerem.

Isto é formalmente conhecido como o efeito Ganzfeld, ou mais evocativamente, “o cinema do prisioneiro”; já aconteceu a mineiros presos no subsolo escuro e a exploradores polares cuja totalidade do campo visual pode consistir num branco uniforme. Na Grécia Antiga, há registos de filósofos que desceram às cavernas para induzir estas alucinações, na esperança de ganharem discernimento. Com o tempo, o espetáculo de luzes pode, por vezes, desenvolver-se e transformar-se em sonhos mais fantasiosos que sonhamos acordados. Subjacente a tudo isto estão os esforços frenéticos do cérebro para construir o seu modelo interno, ainda que a informação sensorial de que necessita para o fazer tenha sido interrompida. Os resultados são estranhos, embora, para alguns de nós, possam parecer perturbadoramente reais. Na vida normal, para a maioria das pessoas, este modelo interno fornece o quadro sensorial do cérebro, uma ilusão que ele vai aumentando e atualizando à medida que a informação vai entrando. É esta fantasia que paradoxalmente fornece a nossa experiência daquilo a que chamamos realidade.

Mas o que é a realidade, e mais genericamente, o que significa estar vivo? Independentemente da forma como possamos tentar responder a estas perguntas, é razoável dizer que mesmo as nossas tentativas mais eloquentes ficam aquém de transmitir plenamente a experiência absurda, magnífica e milagrosa do ser. Os nossos sentidos estão no cerne de toda esta maravilha. Eles são a interface entre o nosso eu interior e o mundo exterior. Equipam-nos para percebermos a beleza, desde a arte grandiosa à grandiosidade do mundo natural, e para apreciarmos um gole de uma bebida gelada, o som do riso, o toque de um parceiro.

Os sentidos são, em suma, o que faz com que a vida valha a pena ser vivida. Os nossos recetores sensoriais colhem uma multiplicidade de texturas, ondas de pressão, padrões de luz e concentrações de moléculas para fornecer uma miríade de impulsos de informação elétrica, qual exército de estenógrafos hiperativos, ao cérebro, que descodifica, organiza e, em última análise, constrói significado. Esta extração de significado da confusão e do caos da física é o que nos torna quem somos.

A minha própria compreensão dos sentidos é forjada a partir da perspetiva de um biólogo e através dos meus estudos sobre a ecologia sensorial de uma série de animais diferentes na Universidade de Sidney e, antes disso, em universidades no Reino Unido e no Canadá. A minha investigação examinou os estímulos que orientam o comportamento de várias criaturas, desde insetos a baleias, e, assim, de que forma cada uma experimenta o seu próprio mundo. O maior desafio que daqui advém é tentar pôr de lado os meus preconceitos centrados no ser humano para compreender as coisas a partir de perspetivas muito diferentes. Embora nunca consiga perceber as coisas como as outras espécies, posso, pelo menos, tentar desfazer-me das certezas da minha experiência sensorial e esforçar-me, na medida do possível, por ver o mundo através dos seus olhos. Foi este processo, mais do que tudo, que desencadeou a minha paixão por saber mais sobre os sentidos, não só noutros animais, mas também em nós.

Como biólogo, é essencial compreender porque é que a evolução nos equipou com os sentidos com que nos equipou. Para o fazer, mergulho na vida sensorial das criaturas — desde os mamíferos com quem partilhamos uma recente linhagem comum até àqueles que estão longe de nós, tais como crustáceos e até bactérias — para ficar a saber mais sobre as origens dos nossos sentidos e as formas como a nossa experiência difere da deles.