Durante quatro anos, na década de 1960, Karen Armstrong viveu num convento apartada do mundo exterior. “Não ouvíamos notícias. Caso excecional, fomos informadas acerca da Crise dos Mísseis”. As superioras de Karen esqueceram-se, contudo, de a avisar do fim do incidente internacional. “Assim passámos três semanas esperando ansiosamente pelo Armagedão”, escreve em tom vivaz a britânica, nascida em 1944, na introdução ao seu mais recente livro publicado em Portugal. Em Natureza Sagrada (edição Temas e Debates)¸ Karen Armostrong lança uma reflexão sobre a nossa relação com o ambiente: “Em vez de nos sentarmos em contemplação junto a um rio ou a ficar com deslumbramento uma cadeia de montanhas, fotografamos obsessivamente o que vemos”. A frase sintetiza a forma como atualmente nos posicionamos face ao que nos cerca. “Hoje, quando admiramos uma árvore ou uma paisagem majestosa, raramente vemos a natureza como sagrada”, lemos na apresentação do livro.  Para Karen, estamos a distanciar-nos da natureza, fazendo-a uma “realidade simulada”. Para a autora de títulos como Uma História de Deus e Grandes Tradições Religiosas, alguns de nós experienciam um sentimento de “alienação e perda”. Não é uma novidade no percurso humano, como vemos no poema datado do século XVIII que abre o excerto que aqui publicamos. Trata-se, não só de uma perda estética, mas danosa para o meio ambiente natural e o impacto que tem e terá na vida humana.

Como recuperar o nosso vínculo com o mundo natural? As respostas na voz da britânica karen Armostrong
Karen Armostrong, autora do livro "Natureza Sagrada". créditos: Vogler/Wikimedia Commons

No seu livro, Karen Armostrong propõe-nos que olhemos para um modo de vida primordial hoje apenas sobrevivente “numas poucas comunidades de povos tribais indígenas”, numa relação de reciprocidade entre humanos e ambiente natural. Uma realidade que, de acordo com Karen Armstrong, se encontra submersa num quotidiano onde “a vida urbana cada vez mais nos retira do mundo da natureza para o da tecnologia”. Para a autora, “temos de recuperar a veneração da natureza que os seres humanos cuidadosamente cultivaram durante milénios”, um projeto que “vai requerer imaginação e esforço”.

Armstrong também aborda a forma como a relação entre religião e natureza mudou ao longo do tempo, por vezes distanciando-se desta última, enfatizando a autoridade e o poder em vez da conexão com o divino.

Karen Armostrong é embaixadora das Nações Unidas para o projeto Aliança das Civilizações, cujo objetivo é reforçar o diálogo entre o Ocidente e o mundo islâmico.

“Houve um tempo em que prado, bosque e riacho.
A terra e toda a vista comum, me pareciam
vestidos de luz celeste.
A glória e o frescor de um sonho.
Não é agora como foi outrora.
Volto-me para onde quer que possa.
De noite ou de dia
Não posso mais ver agora as coisas que vi".

William Wordsworth (1770-1850), citado no livro Natureza Sagrada

De Natureza Sagrada publicamos o excerto “Mythos e Logos” e a reflexão que nos traz sobre a forma de pensar, falar e adquirir conhecimento acerca do mundo.

Uma grande parte da discussão ambiental é científica: ouvimos constantemente falar de emissões, partículas, níveis de poluição e camada de ozono. Isto fornece-nos informação essencial e familiariza-nos com a terminologia, mas não nos move emocionalmente. Tendemos hoje a usar o termo “mito” de modo bastante vago para significar algo que não é verdadeiro. Quando ouvimos falar de deuses a caminhar na Terra, um morto a caminhar para fora do seu túmulo ou de um mar a separar-se para libertar um povo escravizado, descartamos estas histórias como “apenas mitos”. Mas, no passado, “mito” significava algo inteiramente diferente.

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Durante a maior parte da história humana, existiram duas formas de pensar, falar e adquirir conhecimento acerca do mundo: mythos e logos. Ambas foram essenciais para compreender a realidade: não estavam em oposição uma à outra, mas eram formas complementares de chegar à verdade, e cada uma tinha a sua especial área de competência. Mythos estava relacionado com o que era considerado intemporal. Olhava tanto de volta para as origens da vida e da cultura como para dentro, para os níveis mais profundos da experiência humana. Estava relacionado com o sentido, não com assuntos práticos. Os humanos são criaturas que procuram sentido. Se as nossas vidas carecem de significado, caímos com muita facilidade no desespero, e foi o mythos que apresentou as pessoas a verdades mais profundas, conferindo sentido às suas vidas moribundas e precárias ao dirigir-lhes a atenção para o eterno e universal. Tanto quanto sabemos, os gatos não agonizam acerca da condição felina, não se preocupam com a situação dos gatos noutras partes do mundo nem tentam ver a vida de uma perspetiva diferente. Porém, desde um período muito recuado, os humanos sentiram-se compelidos a elaborar histórias que lhes permitiram colocar as suas vidas num cenário diferente e lhes trouxeram a convicção de que — contra todas as provas depressivas em contrário — a vida tinha algum sentido e valor.

natureza
créditos: Kien Do/Unsplash

Um mito é um acontecimento que, em algum sentido, aconteceu uma vez, mas que também acontece a toda a hora. A mitologia aponta para lá do fluxo caótico dos acontecimentos históricos para aquilo que é intemporal na vida humana, ajudando-nos a vislumbrar o cerne estável da realidade. Também se enraíza no que chamamos a mente inconsciente. Os mitos são uma antiga forma de psicologia. Quando as pessoas contavam histórias de heróis a descer ao submundo, debatendo-se através de labirintos ou lutando com monstros, estavam a trazer à luz medos e desejos das regiões obscuras da mente subconsciente, que não é acessível mediante pura investigação lógica, mas que tem um efeito profundo na nossa experiência e no nosso comportamento. O mito não podia ser transmitido mediante prova racional; as suas visões eram intuitivas, como as da arte e da poesia. O que é mais, o mito tornava-se uma realidade ape- nas quando era incorporado em rituais e cerimónias, habilitando os participantes a apreender as mais profundas correntes da vida. O mito e o ritual eram tão inseparáveis que é um tema de debate académico saber qual surgiu primeiro. Sem prática espiritual, a história mítica não faria sentido — em grande medida, da mesma forma que, para a maioria de nós, uma partitura musical permanece opaca até ser interpretada instrumentalmente.

Hoje estamos muito mais familiarizados com o logos, o qual é bastante diferente do pensamento mítico. Ao contrário do mythos, o logos corresponde a factos objetivos. O logos é totalmente pragmático: é o modo racional de pensamento que capacita os seres humanos para funcionarem. Ele é a base da nossa sociedade moderna. Nós usamos os nossos poderes lógicos quando queremos fazer alguma coisa acontecer, alcançar algo ou persuadir os outros a adotar uma opinião particular. Onde o mito olha de volta para as origens, o logos vai em frente, desenvolve novas perceções e inventa algo novo. Ele também nos ajuda, para o bem e para o mal, a alcançar um maior controlo sobre o meio ambiente natural.

Porém, o logos, tal como o mythos, tem limitações. Não pode responder a questões sobre o valor último da vida humana. Não pode aliviar o nosso sofrimento. Pode desvelar novos e maravilhosos factos acerca do universo físico e fazer as coisas funcionar mais eficientemente, mas não pode expor o sentido da vida. Desde muito cedo, o Homo sapiens compreendeu isto de modo instintivo. Usou o logos para desenvolver novas armas e técnicas de caça; e voltou-se para o mito, com os rituais que o acompanham, para o reconciliar com a inevitável dor e sofrimento que de outro modo poderiam esmagá-lo.

Antes do período moderno, tanto o mythos como o logos eram considerados essenciais, mas pelo século XVIII as populações da Europa e da América haviam alcançado um tão impressionante sucesso na ciência e na tecnologia que começaram a rejeitar o mito como falso e primitivo. A sociedade já não estava completamente dependente de um excedente de produção agrícola — como todas as civilizações anteriores —, mas dependia de modo crescente de recursos tecnológicos e do constante reinvestimento do capital. Isto libertou a sociedade moderna de muitas das restrições da cultura tradicional, cuja base agrária havia sido sempre precária. O longo processo de modernização demorou cerca de três séculos e implicou mudanças profundas: industrialização, a revolução agrícola britânica, a reforma política da sociedade e um “iluminismo” intelectual que dispensou o mito como fútil e obsoleto. No entanto, embora o nosso mundo desmitologizado possa ser confortável para aqueles de nós suficientemente afortunados para viver em países do Primeiro Mundo, não se tornou o paraíso terrestre previsto por Francis Bacon e outros filósofos do iluminismo.

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Temos de nos dissuadir da falácia de que o mito é falso ou que representa um modo inferior de pensamento. Podemos ser incapazes de regressar em massa a uma sensibilidade pré-moderna, mas podemos adquirir uma compreensão mais matizada dos mitos dos nossos ancestrais, porque eles ainda têm algo para nos ensinar. E, é claro, nós continuamos a criar os nossos próprios mitos, mesmo se não os descrevemos como tal.

O século XX viu a emergência de alguns mitos muito destrutivos que acabaram em massacres e genocídios. Não podemos combater estes maus mitos apenas com a razão, porque o logos puro não consegue lidar com medos, desejos e neuroses profundamente enraizados. Precisamos de bons mitos que nos ajudem a reconhecer a importância da compaixão, que desafiem e transcendam o nosso egocentrismo solipsista e tribal. E, crucialmente, necessitamos de bons mitos que nos ajudem a venerar uma vez mais a Terra como sagrada, porque, a menos que haja uma revolução espiritual que desafie a destrutividade do nosso talento tecnológico, não iremos salvar o planeta.

cidade
créditos: Meiying Ng/Unsplash

Os grandes mitos do passado apresentaram o mundo natural como impregnado de sacralidade. Mas — repito — um mito não faz sentido a menos que seja traduzido em ação prática. Os mitos não eram apenas contos cautelares: tinham de ser postos em prática e eram por isso sempre acompanhados pelo ritual. O ritual, como o mito, costuma ser mal compreendido no nosso mundo pragmático; no início do período moderno, foi rejeitado, mesmo por pessoas religiosas, como uma superstição ultrapassada. Todavia, as cerimónias rituais eram indispensáveis para a religião pré-moderna, e jamais foram questões apenas espirituais, mas envolviam o corpo e, mediante o corpo, as emoções. Os neurofísicos dizem-nos que, sem estarmos cientes disso, recebemos e transmitimos informação importante através dos nossos sentidos, movimentos físicos e gestos. Rituais cuidadosamente elaborados, que fazem uso de música emotiva, dança e teatro, podem trazer de forma dramática um acontecimento mítico do passado para o presente. Se concebidos com suficiente habilidade, podem também gerar um êxtase estético que possibilite aos participantes “estarem fora” dos seus eus mundanos por um momento. Desempenhando um papel ritual com mestria e concentração, podemos deixar o eu para trás e, paradoxalmente, encontrar autocrescimento. Através das artes, experienciamos uma forma mais intensa de ser e sentimo-nos parte de algo maior, mais importante e completo. Só se o mito for traduzido em ação descobrimos a sua relevância e o seu sentido.