Na sua edição de 2007, o britânico Oxford Junior Dictionary (OJD) suprimiu às suas páginas palavras como “bolota”, “lontra” e “ostra”, para incluir termos como “banda-larga” e “copy/paste”. Nos anos seguintes, uma onda de oposição cresceu. Em 2015, uma carta aberta ao OJD foi assinada por artistas e escritores incluindo Margaret Atwood, o ilustrador Jackie Morris e o defensor do mundo natural, Robert Macfarlane. A missiva reclamava contra a extinção no papel de palavras que nos ligam à natureza. A britânica Lucy Jones recupera este episódio para o seu livro Perder o Paraíso (edição Temas e Debates). O mundo assiste a uma extinção em larga escala, vivemos entre quatro paredes, desligados do contexto natural, alheios à devassa dos ecossistemas e a todas as perdas.

Aquilo que a escritora e jornalista Lucy Jones nos propõe, e que serve de mote a esta conversa, é o regresso a um modo de vida mais próximo da natureza e de como esta influi positivamente no nosso bem-estar psicológico. Lucy embrenha-nos nas florestas do seu país natal, no banco de sementes de Svalbard, na Noruega, em laboratórios californianos e divãs de ecoterapeutas. A autora persegue a resposta à pergunta: quando perdemos a nossa ligação ao mundo natural, estaremos a perder também uma parte de nós mesmos?

Uma obra escrita com sensibilidade e que flui ao sabor da relação da mãe, Lucy Jones, com a sua bebé e da ligação de ambas à natureza, mesmo que esta se expresse num recanto de um jardim inglês. A mensagem é de esperança, embora sem esquecer a premência de um tempo que se esgota. No preambulo à obra, a autora ensaia uma conversa futura de uma neta com a sua avó: “- Porque é que a natureza morreu avó? A avó soltou um suspiro: - Não a amámos o suficiente – respondeu – E esquecemo-nos de que nos transmitia paz.”

natureza
natureza créditos: Alexander Sinn/Unsplash

O seu livro é um testemunho de amor à natureza. Organiza-o por capítulos que percorrem uma história desde a plântula até à árvore morta. Este caminho do nascimento até à morte replica aquilo a que assistimos no presente com a natureza?

Pretendo que as pessoas possa interpretar esse caminho como quiserem. Gosto da sua interpretação. Talvez, inconscientemente, tenha seguido esse caminho, embora, se for deixada no solo, a árvore tombada certamente não estará morta; está cheia de vida nos microorganismos, nas hifas, no micélio, nos fungos viscosos, nos colêmbolos [artrópodes de seis patas], ácaros e bichos-da-conta. É um habitat agitado e próspero. O livro termina com uma nota de esperança que associo à simples vontade e desejo de que toda a vida na Terra sobreviva. Eventualmente, se fosse menos otimista, teria terminado de uma outra forma, simbolicamente com os troncos cortados e prontos a entregar a um comerciante de madeiras.

No prólogo do seu livro publica um diálogo entre uma neta e a sua avó e situa-o no futuro. A criança pergunta porque é que a natureza morreu e a avó responde-lhe que “não a amámos o suficiente”. Nunca a amámos ou deixámos de amá-la e em que momento?

A teoria da biofilia de Edward Osborn Wilson [naturalista e ecologista norte-americano) é convincente. Ele sugere que os humanos têm a tendência inata para buscar conexões com a natureza e outras formas de vida. Wilson argumenta que existe uma necessidade inata, emocional e celular de comungar com o resto do mundo vivo. Podemos ver isso em todos os lugares, e mesmo num passado distante. Os screensavers mais populares são imagens de praias tropicais. As pessoas amam as suas plantas domésticas. Usamos roupas decoradas com padrões das pelagens de animais, de flores, de formas geométricas que encontramos na natureza. Contudo, inúmeros fatores poderosos conspiraram para nos separar do mundo natural.

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Pode dar-nos alguns exemplos desses fatores?

Sim, expressam-se ao longo do tempo, como a Revolução Industrial; o pensamento iluminista; a separação entre sujeito e objeto, mente e corpo, humanos e natureza. A interpretações de textos bíblicos, o Capitalismo, a supremacia branca, o neoliberalismo e o poder viciante do consumismo.

Os humanos têm a tendência inata para buscar conexões com a natureza e outras formas de vida.

Fala do conceito de “extinção da experiência”. Trata-se de um conceito que transmite uma importante mensagem. Quer explicá-la aos nossos leitores?

Robert Pyle [lepidopterologista, ecologista e escritor americano] cunhou a expressão “extinção da experiência” para descrever a contínua e crescente perda de contacto direto com o resto da natureza e a alienação humana do mundo vivo. Hoje, passamos entre 1 e 5% do nosso tempo ao ar livre, o que significa que nos tornamos muito menos conscientes, simplesmente, do que está a acontecer e do que estamos a perder ou a destruir através das tomadas de decisões dos humanos. Como Pyle perguntou: “O que é a extinção de um condor para uma criança que nunca viu uma carriça?”

São muitos os exemplos que nos apresenta de extinções. Como forma de sintetizar a catástrofe que se abate sobre a natureza, quer aqui relatar-nos um desses exemplos?

A perda de insetos voadores como a borboletas, as abelhas, as mariposas e os besouros, tornou-se percetível no Reino Unido no decurso da minha vida. Na década de 1990, recordo-me de ver as janelas do nosso carro salpicadas de insetos no final de uma viagem. Hoje, não se encontra quase nada. Os dados confirmam isso: no Reino Unido, a população de insetos voadores diminuiu 60% em aproximadamente duas décadas (entre 2004 e 2021). A boa notícia é que há um caminho de possibilidades para o regresso dos insetos: deixem os vossos jardins e espaços verdes públicos sujeitos a menos intervenção humana, deixem ao ar livre pilhas de madeira e toros, cultivem plantas amigas dos insetos, abatam menos árvores.

natureza
natureza créditos: Robert Lukeman/Unsplash

A desconexão com a natureza está a deixar-nos doentes até que ponto?

Julgo que as evidências são agora inequívocas. As pessoas recuperam mais rapidamente e completamente do stresse num ambiente natural em comparação com um ambiente construído. É claro que a saúde de cada pessoa e as suas relações individuais com o mundo natural são heterogéneas, mas mesmo as pessoas que não são geeks [entusiastas] da natureza parecem beneficiar da “natureza de fundo”. Ou seja, das árvores existentes numa rua ou áreas naturais próximas. Se as pessoas são privadas de conctato e ligação à natureza por, digamos, desigualdade de acesso a “espaços verdes”, falta de oportunidades para as crianças brincarem em áreas mais selvagens, as evidências sugerem que este é um problema de saúde pública.

Diz-nos no seu livro que a natureza é um tratamento suplementar para pessoas com crises de saúde mental e doença mental crónica. Para os mais céticos, a Lucy Jones quer dar-nos algumas evidências deste facto?

A horticultura social e a terapêutica têm uma longa história no Reino Unido em prisões, instalações psiquiátricas e grupos comunitários para pessoas que sofrem de problemas de saúde. Nas últimas duas décadas, os cientistas tentaram medir e quantificar se e quão eficazes essas intervenções baseadas na natureza podem ser para pessoas com doenças físicas e mentais, para criar uma base de evidências. Estudos conduzidos pela Thrive (organização sem fins lucrativos de jardinagem pela saúde e terapia hortícola], com sede no Reino Unido, revelam que a jardinagem em programas organizados tem um impacto positivo junto de jovens com demência ou que a horticultura num ambiente natural é terapêutica e aumenta o bem-estar mental das pessoas em serviços de saúde mental. A “prescrição social verde” está a crescer no Reino Unido. Desta forma, os médicos podem prescrever terapias na floresta ou natação em ambiente selvagem ou terapia de jardinagem. É claro que a saúde mental e a doença mental são envolvem questões complexas que se cruzam com muitos fatores sociais, económicos, históricos e ambientais, mas a evidência quantitativa está agora a unir-se à evidência qualitativa de que uma ligação à natureza é crucial para a saúde.

A horticultura social e a terapêutica têm uma longa história no Reino Unido em prisões, instalações psiquiátricas e grupos comunitários para pessoas que sofrem de problemas de saúde.

A própria Lucy conta no seu livro a sua história e de como perdeu e reencontrou a natureza. Quer sintetizar-nos essa história?

Tive uma adolescência e um início de vida adulta bastante comuns. Passava a maior parte do tempo em pubs, clubes, concertos e trabalhava longas horas num escritório. No final dos meus 20 anos, tive uma crise de saúde mental e entrei em recuperação face ao vício. Na época, quatro coisas evidentes ajudaram-me: a psiquiatria, a medicina, a psicoterapia e o apoio de amigos e familiares. Mas, caminhar junto a um pântano nas proximidades da minha casa e, aí, ‘conviver’ com árvores, falcões, plantas e o céu, tornou-se profundamente importante. Pude sentir a mudança nos meus pensamentos ruminantes, depressivos e ansiosos e no stresse que aprisionava o meu corpo. Nesse momento escrevi o livro Losing Eden para descobrir o porquê.

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Cita no livro John Muir, naturalista e filósofo, ao afirmar: “a natureza é uma necessidade”. Podemos juntar-lhe uma outra citação: “Entre os troncos de dois pinheiros há uma porta para uma nova forma de vida”. Se existe na natureza este apelo a uma nova vida, porque insistimos em ver nela um ambiente hostil e refugiamo-nos em cidades sobrelotadas?

Parece que o desejo de se afastar da natureza e das suas forças indomáveis, também reveladas na decadência e na fragilidade da vida, pode muito bem ser parte do impulso de negarmos a morte. Julgo que a teoria da gestão do terror traz uma luz interessante sobre o assunto.
Psicólogos da Universidade de Groningen, nos Países Baixos, pediram a um grupo de estudantes que relatassem com que frequência pensavam na morte em diferentes ambientes – quando estavam no deserto, num ambiente natural controlado e no meio citadino. Os investigadores descobriram que 76,7% dos alunos inclinavam-se a pensar mais sobre a morte no deserto do que num ambiente natural controlado. Por sua vez, 68,9% pensava mais na morte na natureza selvagem do que na cidade. Por outro lado, também associaram mais a liberdade à natureza, sugerindo uma ambivalência de sentimento.
Os investigadores levantaram a hipótese de que a teoria de gestão do terror (TMT) poderia explicar o que estava a suceder. A premissa da teoria é que as pessoas têm uma necessidade fundamental de se protegerem da ideia de que sua própria morte é inevitável e, em última análise, fora de seu controlo, e da ansiedade que esse pensamento gera.

É compreensível, mas espero que estejamos a evoluir para um lugar onde possamos aceitar e reconhecer esses medos existenciais e, em vez de dominar e destruir numa espécie de pânico cego, tenhamos uma resposta mais calma, gentil e sábia ao modo como vivemos, ao lado dos nossos coinquilinos neste planeta.

A própria literatura está a banir das páginas inúmeras palavras ligadas à natureza. Quer dar-nos alguns exemplos destas palavras e o porquê para a sua extinção?

Em 2007, as palavras “bolota” e “ranúnculo” foram retiradas do Oxford Children’s Dictionary, em favor de palavras como “banda larga” e “copy/paste”. “Hamster”, “garça”, “arenque”, “martim-pescador”, “cotovia”, “leopardo”, “lagosta”, “pega”, “peixinho”, “mexilhão”, “tritão”, “lontra”, “boi”, “ostra” e “pantera” também foram removidos. Assim que as pessoas perceberam que as palavras haviam sido subtraídas ao dicionário, houve um alvoroço e uma campanha no Reino Unido chamada “Lost Words” [“Palavras Perdidas”], promovida pelos escritores e artistas Robert Macfarlane e Jackie Morris. Julgo que é um bom exemplo de biofilia: podemos esquecer a nossa afiliação com a natureza e que somos parte dessa natureza, mas se a nossa atenção estiver centrada nesses factos, muitos de nós não quererão destruir os ambientes.

No momento em que lemos esta conversa alguém estará a plantar um relvado algures. Como refere no seu livro, só nos Estados Unidos há 16 milhões de hectares de relvados sintéticos. Que argumentos usaria para convencer esta pessoa a desistir desta tarefa?

Vivemos uma crise de extinção. Os cientistas alertaram que a queda no número de insetos e enfatizam como o facto “ameaça o colapso da natureza”. Uma parte da razão para que isso aconteça passa pela destruição dos habitats. O mundo adora sentar-se nos relvados ou a aí jogar à bola, fazer um piquenique. Mas, será que precisamos de toda essa relva cortada e bem cuidada? Para reverter o drástico declínio das espécies, precisamos compartilhar a Terra.

Vivemos uma crise de extinção. Os cientistas alertaram que a queda no número de insetos e enfatizam como o facto 'ameaça o colapso da natureza'.

A Lucy apresenta-nos no livro a sua bebé. Imaginemos que dentro de 30 ou 40 anos dedica à sua filha um livro sobre a saúde do planeta Terra nesse futuro. Em síntese, o que gostaria de escrever no prólogo desse livro que fosse uma mensagem de esperança?

Temo que as condições no planeta Terra sejam muito mais instáveis dentro de 30 ou 40 anos, à medida que a crise climática se intensificar. A minha esperança é de que existam formas de viver na Terra que sejam diferentes daquelas prescritas pela nossa civilização e, em última análise, mais fortalecedoras, edificantes e harmoniosas. Os modos de vida indígenas e os sistemas de conhecimento tradicionais podem ensinar-nos como vivermos em equilíbrio e com equilíbrio. O pensamento ecológico pode nos ajudar a romper com padrões de pensamento e sistemas de extração e exploração. Acredito que a própria Terra é uma fonte de conhecimento e sabedoria, abundância e cuidado, ao mesmo tempo que é, sim, hostil, perigosa e desafiadora. Um relacionamento fundamental renovado pode colocar-nos num caminho melhor.