Temos medo de falar sobre a morte, tememos a perda dos que mais amamos. E quando a perda acontece sem aviso, onde não há espaço e tempo para preparação e em condições quase indescritíveis? E quando parece que ninguém percebe esta minha dor? Dói também o medo de aceitar que, afinal, tudo (até quem amamos) pode deixar de estar ao nosso lado em poucos segundos.
Quantas interrogações cabem na imprevisibilidade destes acontecimentos – a natureza atirou os sobreviventes dos incêndios de junho de 2017, numa corrente de perguntas, numa vontade de procurar a ordem, a justiça, o sentido e a segurança em falta. Com tantas perdas, inesperadas e incompreensíveis, temos de falar de luto.
A catástrofe, enquanto fenómeno ecológico e súbito, provoca uma destruição de tal forma severa que excede a capacidade de confronto e os recursos psicológicos das pessoas e da comunidade. Tendo causado muitos mortos, inúmeros feridos, centenas de pessoas desalojadas e arrastando muitas para o desemprego, os incêndios deixaram marcas profundas na vida das pessoas e na memória coletiva, com inegáveis consequências individuais, familiares, comunitárias, sociais, económicas e políticas.
As características deste acontecimento (potencialmente traumático), particularmente, o início súbito, a imprevisibilidade e a incapacidade/impossibilidade de controlo, são marcadores importantes para a intervenção no luto e na compreensão do risco de desenvolvimento de luto traumático. Quando pensamos na intervenção neste contexto há que destacar alguns aspetos: (1) pode surgir um período de diminuição do funcionamento adaptativo das pessoas, (2) as respostas individuais e familiares são variáveis, (3) a expressão da dor assume diferentes dimensões – comportamental, biológica, psicológica e social.
É muitas vezes na incapacidade de reorganizar o que sempre foi, no novo de agora, que se esgotam os recursos pessoais e que se identifica a necessidade de pedir ajuda, num espaço seguro e especializado. No pedido de ajuda, e numa fase inicial, há espaço para a expressão da dor nas suas várias dimensões, onde é importante dar espaço a tudo mesmo que não pareça “lógico” ou “útil”. Tudo terá uma função importante para essa pessoa - «Se não tivesse saído de casa, eles não teriam morrido».
No contacto direto com as pessoas, surgem dúvidas sobre o que aconteceu e como aconteceu, angústia perante o futuro que não vai ser vivido e face à dor de não saber a configuração de um amanhã que afinal, à luz dos acontecimentos, parece não fazer muito sentido planear (para quê fazer planos?). Pode surgir medo, horror, ansiedade intensa com rutura do sistema de vinculação (não vale a pena voltar a ligar-me a alguém, pode ser perigoso), gerando insegurança e desorganização, com sentido de falta de ajuda e desamparo (por falta de controlo sobre o que aconteceu) e comportamentos primitivos de luta/fuga e/ou paralisia/medo.
De repente (e porque tudo foi literalmente de repente), tudo é colocado em causa, nomeadamente o sentido da vida – «Para que é que trabalhei tanto para construir aquela casa, de que me valeu trabalhar tanto sem ter férias, de que me serviram todos os sacrifícios?». Questões que procuram o sentido, interrogações lógicas sem respostas lógicas, frases que traduzem necessidades. E, de facto, o luto não é somente um resultado do que aconteceu, mas é também uma resposta a necessidades muito mais profundas que ligam o passado, ao presente e ao (medo) do futuro.
O luto dói porque implica rever a relação que se tinha com a pessoa que morreu, vai-se muito atrás (a outras perdas, à infância, ao que foi vivido e ao que ficou por viver, ao que foi dito e ao que não se teve oportunidade de dizer, a lutos não resolvidos). É também um processo cheio de desafios e de diferentes trajetórias para reaprender a viver na perda, num “como” lidar com a dor da perda e na incerteza de encontrar um significado numa vida nova e com um futuro não antecipado. Precisamos de sentir que pertencemos a algum sítio, que fazemos parte de um grupo, de uma comunidade e precisamos também de atribuir um significado ao que vivemos, às escolhas que fazemos.
As experiências de perda, luto e trauma estão intrinsecamente interligadas e cada pessoa tem um percurso único, totalmente individual. As perdas - reais ou simbólicas, foram várias, desde casas, objetos pessoais, familiares, amigos e pessoas de referência na comunidade, a sentido de comunidade e de justiça, a perda de projetos de vida, de expectativas, de rotinas, de espaços e lugares comuns. A mudança, neste contexto, é determinada pela(s) perda(s). O luto, processo inevitável, implica a integração da(s) perda(s) e os sintomas deste processo são a expressão da dor.
Por sua vez, esta integração não se faz necessariamente por fases, mas sim através de tarefas terapêuticas a vários níveis - intrapessoal (dentro de nós), interpessoal (no que fica na relação com os outros) e existencial (no que passamos a ler do mundo e do seu sentido). Por exemplo: ao mesmo tempo que existem tarefas individuais (o que sinto, o que penso, o que faço…), por outro existem as tarefas comunitárias que são, muitas vezes, a extensão do trabalho que individualmente as pessoas vão fazendo. A pessoa não pode ser dissociada do contexto.
Sobre a ideia de que com o tempo tudo passa, estas pessoas (sobreviventes) saberão responder-nos que talvez não passe. Talvez, como nos diz Ana Cláudia Arantes “o tempo passa no tempo dele, indiferente ao desejo para apressar ou retardar a sua velocidade”. Importa, sobretudo, o que as pessoas vão fazendo neste (e com) tempo a passar.
Texto: Margarida Teixeira, Psicóloga Clínica (PIN)
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