Porque vivemos um calvário de sucessivas dietas restritivas? O que falha nestas? Para Sophie Deram, nutricionista doutorada pelo Departamento de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a resposta está na nossa própria biologia. Somos programados para sobreviver às privações. Restringir alimentos despoleta um sinal de alerta no nosso cérebro. Inteligente, o nosso corpo contorna as estratégias das dietas restritivas, finta-as e estas deixam de resultar. Em consequência, ganhamos peso.
“Estamos a fazer um esforço para passar fome, num raciocínio simplificado de peso. Hoje vamos contra toda a ´programação` de milhares e milhares de anos do percurso humano”, salienta Sophie à conversa com o SAPO Lifestyle, tendo como mote o seu livro O Peso das Dietas (Bertrand Editora).
Um peso que não é só físico, mas também psicológico e emocional. “Vivemos numa sociedade que valoriza muito a magreza, muitas vezes que não é natural”, sublinha a nutricionista, que nos propõe a redescoberta do prazer de comer, o reencontro com a autoestima e a construção de uma relação saudável com a comida e imagem corporal.
“A nutrição é uma ciência complexa, mas comer bem é simples. Hoje, perdemos a confiança no nosso corpo. As pessoas estão a terceirizar a sua fome, que lhes digam o que tem de comer e quando. Vamos recuperar a saúde quando recuperarmos este domínio”. Uma equação onde a nutricionista não isenta a indústria alimentar e, nesta, também aquela ao serviço do veganismo. Também aqui há alimentos ultraprocessados, de acordo com a especialista alimentar.
“O mundo está a adoecer e as novas gerações estão a ser prejudicadas”, salienta Sophie, ativista contra as dietas restritivas e defensora do prazer de comer e do comer consciente, que nos deixa pistas para retomarmos um caminho quase perdido: não fazer dieta restritiva, comer mais alimentos frescos caseiros, menos industrializados e cozinhar.
“Barriga vazia não tem alegria”. Parece-lhe um bom adágio para começarmos esta conversa sobre dietas restritivas?
O título do meu livro, O Peso das Dietas, relaciona-se precisamente com o que refere, pois falo de dietas restritivas, aquelas que cortam calorias ou cortam grupos alimentares ou alimentos de que gostamos. Dietas que podem resultar no início mas, depois, a pessoa volta a engordar e a ganhar peso. Essa é a parte física. Também há um peso na cabeça, mental. O meu trabalho centra-se tanto na parte da obesidade, como no transtorno alimentar. São dois lados da mesma moeda. Temos de aprender a fazer as pazes com a comida. Uma dieta restritiva, deixando a barriga vazia, vai desequilibrar todo o nosso sistema.
No fundo, a dieta restritiva vai acionar um grande stress mental e vai modular tanto o centro do apetite como o centro emocional. Aumenta o risco de depressão, ansiedade até síndrome de pânico. É interessante verificar que somos programados para odiar fazer dieta. O professor Howard Steiger que trabalha a mesma área que eu, a predisposição genética dos transtornos alimentares, afirma que fazer dieta é o maior stress para o nosso cérebro. Costumo dizer que só há um stress maior, não respirar. Depois desse é não comer.
Afirma que as dietas restritivas “assustam” o cérebro. Porquê?
O nosso cérebro tem uma grande programação para se defender, para fazer com que voltemos a comer. É ancestral: dentro das cavernas, o maior medo do ser humano era passar fome. O homem pré-histórico pensava continuamente no que comer. Atualmente, parece que invertemos tudo e o maior medo da pessoa é comer. Estamos a fazer um esforço para passar fome, num raciocínio simplificado de peso. Hoje vamos contra toda a programação de milhares e milhares de anos do percurso humano.
As dietas restritivas não estão apenas relacionadas com a perda de peso, mas também com a nossa imagem…
Há uma permanente insatisfação corporal. Estamos numa sociedade que valoriza muito a magreza, muitas vezes aquela que não é natural. O corpo das mulheres atualmente é muito definido, o que não é natural. Da mesma forma, o corpo do homem é trabalhado para ser musculado. A nossa imagem corporal está muito influenciada por estes padrões ideais e vivemos com insatisfação social, que mexe com o nosso bem-estar mental.
Infelizmente, a nossa sociedade confunde saúde e magreza. O peso tornou-se indicador de saúde. Sabemos que não é: vemos pessoas magras com problemas de saúde e pessoas com excesso de peso sem problemas de saúde. Uma das explicações para estas imagens pré-concebidas remonta a 1997, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) usou os critérios de Índice de Massa Corporal (IMC) para categorizar peso saudável, sobrepeso e obesidade.
Ou seja, a partir do IMC 30 a pessoa é considerada obesa. É muito fácil usar o peso como critério para a saúde porque pesamos o paciente e colocamos nele a responsabilidade: “você vai ter de perder 15 quilos”. Há a responsabilização do paciente pela sua saúde, o que faz com que o profissional de saúde entregue o problema ao doente.
Temos de aprender a fazer as pazes com a comida. Uma dieta restritiva, deixando a barriga vazia, vai desequilibrar todo o nosso sistema.
Tudo isto acaba por cria ainda mais ansiedade, certo?
Hoje, considerando os estudos publicados, vemos que usar o peso como critério de saúde não é adequado. É um dado importante, mas é um dado junto com muitos outros dados. Sabemos que essa pressão pelo peso, que é uma pressão pela dieta restritiva também, é provavelmente um dos fatores da epidemia de obesidade que estamos a viver.
Uma outra epidemia de que se fala menos e por isso é silenciosa, também muito importante, pois do foro mental, é a do transtorno alimentar. Há um aumento impressionante de transtorno alimentar. É tão grave quanto a epidemia da obesidade. Eu diria que é mais grave ainda porque estamos no plano da psiquiatria, mais difícil ainda o tratamento.
Não estaremos a olhar para os alimentos não como eles são, mas como nós achamos que poderão ser?
É interessante entender que o ser humano nutre-se de alimentos e de sentimentos. Não podemos esquecer esta parte psicológica do ato de comer. O ato de comer é fisiológico, mas também psicológico. Esta parte psicológica está a ser totalmente esquecida dentro das dietas restritivas. A pessoa que faz uma dieta, naquilo que eu chamo de tirania alimentar, de proibir alimentos ou dizer que alguns alimentos são maus, está a desequilibrar o bem-estar no paciente.
Há uma definição linda da OMS: bem-estar físico, mental e social. O que precisamos de encontrar é este equilíbrio do bem-estar físico, mental e social. Mesmo uma pessoa com diabetes pode ter esse equilíbrio físico, mental e social. Se está com a diabetes equilibrada pode trabalhar, ter filhos, família, vida social. Essa pessoa tem mais saúde do que uma pessoa obcecada por comer saudável [uma doença denominada ortorexia], porque vai deixar de sair com os amigos, porque tem medo de não ter tomates orgânicos na pizza, ou porque evita glúten. Perde saúde social e, assim, saúde mental e física.
O ato de comer é fisiológico, mas também psicológico. Esta parte psicológica está a ser totalmente esquecida dentro das dietas restritivas.
Aliás, a alimentação equilibrada também tem a dimensão do prazer, da convivialidade. Presumo que concorde com a afirmação.
O prazer de comer não é opcional, o prazer de comer é essencial, é a base do nosso bem-estar. Uma pessoa que tem uma alergia alimentar e que leva a sua marmita para um convívio com amigos, `ok´, não o faz com o intuito de emagrecer. Fá-lo pela sua saúde. A pessoa que restringe a sua alimentação para emagrecer, faz uma autoagressão. Sabemos que em dieta restritiva, 95% das pessoas voltam a engordar. Emagrecem no início e, como tal, não podemos dizer que a dieta restritiva não funciona. No curto prazo vai funcionar, mas o corpo de imediato retoma o peso anterior para se defender e nos deixar numa zona de proteção.
Ou seja, o corpo encontra uma forma de contornar as restrições impostas por essa dieta e a pessoa passa sucessivamente de dieta em dieta…
O cérebro tem memória e não vai deixar que façamos a mesma dieta duas vezes. Por exemplo, aquelas dietas extremamente restritivas low carb ou jejum intermitente, podem funcionar no começo. Mas, depois, se tentar fazer de novo, não consegue obter o mesmo resultado. Logo, procura outra solução. Cada novo ciclo será mais curto porque o corpo já tem defesas e está sempre a procurar restrições maiores. Assim, as pessoas fazem coisas muito perigosas porque perderam o foco da saúde, estão apenas focadas no peso.
O ciclo de perda/ganho de peso que vemos em muitas pessoas interessa à indústria das dietas?
É um negócio “multibilionário”. É um sistema altamente lucrativo porque se alimenta da fraqueza. É a indústria da dieta, dos suplementos, da cirurgia, da estética. O próprio paciente procura isso porque acredita que ele é que falhou e não a dieta. A dieta é o único produto que ´compra` e que se não resultar, o consumidor é responsabilizado. É perverso porque a pessoa vai culpar-se, vai perder a autoestima e vai buscar mais.
Na dieta restritiva, a pessoa culpa-se, acha que ela é que fracassou e vai procurar outra dieta e vai empenhar-se ainda mais nessa outra. É um ciclo que passa de euforia, quando encontra uma nova dieta, ao fracasso, baixa autoestima, culpa e retorno à dieta. Há um círculo vicioso extremamente bem descrito na neurociência: o próprio paciente fica preso. O que mais digo no meu consultório é: “coma”. As pessoas têm medo de comer. Em suma, quanto mais restrições nos impomos, mais perda de controlo temos e mais engordamos, porque o corpo está a defender-se.
Vivemos numa sociedade obcecada nas calorias e nutrientes e perdemos o valor e prazer de ingerir alimentos?
A visão "apertada" da nutrição, que olha apenas para o nutriente, descarta o poder do alimento. Cria uma divisão entre o nutriente e o alimento. Já não se come carne com arroz, come proteína com carboidrato. Esta visão redutora é extremamente apetecível para o mundo da indústria, pois cria alimentos com ou sem um ingrediente. Assim começaram os alimentos sem lactose, sem glúten.
Há mais de 40 anos que existe esta tirania alimentar que começou com a gordura, depois os carboidratos, o açúcar, a lactose. Há sempre um vilão. Portugal tem uma cultura fantástica de alimentação, mas tudo foi demonizado. Quem segue essas modas, acaba em desequilíbrio.
Costumo dizer: “se está escrito saudável na embalagem é porque provavelmente não é”. Hoje, comer saudável parece implicar que tem de ser sem alguma coisa ou com a adição de alguma coisa. Tudo o que precisamos está na natureza. Hoje, está claro que a melhor informação nutricional está na natureza. É por isso que o guia alimentar brasileiro é muito elogiado no mundo porque incentiva as pessoas a voltarem a comer o arroz, o feijão. Em Portugal é também um padrão muito saudável. Quando a pessoa descarta hidratos de carbono, glúten, está a descartar alimentos e começa a entrar num comportamento que não leva à saúde, antes aos transtornos alimentares.
O cérebro tem memória e não vai deixar que façamos a mesma dieta duas vezes.
Consegue situar quando nasce este comportamento?
Acho que um drama da nossa saúde é precisamente a terciarização. Nós terceirizamos a nossa saúde nas mãos de outras pessoas e até de aplicações para os telemóveis. Perdemos a nossa autonomia, sabermos lidar com o nosso corpo. Perdemos a nossa autonomia sobre o que comer e ninguém deveria dar opiniões sobre o que comemos. Nas gerações anteriores era expressão de má educação dizer que não podia comer determinado alimento. Atualmente, dizemos com algum orgulho: “estou sem glúten”, como se se estivesse a cuidar de si mesmo. Claro que há uma parte da população que precisa de viver sem glúten porque tem uma doença. Fora isso, quando se retira o glúten da alimentação de uma pessoa, retira-se grande parte da cultura. Muitos transtornos alimentares começam com essas restrições.
As dietas restritivas são tiranas, mas uma certa mensagem associada ao vegetarianismo e veganismo também não será?
Vegetarianismo é um hábito alimentar que pode ser saudável, mas o veganismo já é mais radical, assemelha-se mais a uma religião e com risco de carências. Quando tenho um paciente que se quer tornar vegan, digo-lhe que não o posso ajudar. Encaminho-o para um especialista porque vai ter muitas carências.
Também aí, no veganismo, há uma grande indústria por detrás. Há muitos alimentos novos, inventados, que são fabricados com recurso a engenharia alimentar e que não deixam de ser ultraprocessados.
Afastámo-nos da alimentação natural e ficámos reféns da indústria. Não é por estar escrito vegan que é mais saudável. Nos bastidores dos grandes movimentos veganos estão pessoas com interesses na indústria, porque têm empresas de leite de aveia, de amêndoas. Há um grande conflito de interesses.
Quais são os pilares para esse compromisso com uma alimentação equilibrada?
Deixo sempre três dicas: não fazer dieta, comer mais alimentos frescos caseiros, menos industrializados e cozinhar.
Cozinhar tornou-nos inteligentes. Quando cozinhamos, pré-digerimos, tornando os alimentos mais fáceis de absorver. Se o ser humano comesse tudo cru, ficaria oito horas a mastigar. São totalmente sem noção os movimentos do tudo a cru.
O ser humano desenvolveu-se muito bem cozinhando. E cozinhar pode não ser só com recurso ao fogo, mas usando também micróbios, bactérias, com as fermentações. Tudo isso é engenho do ser humano para manter, conservar, mas também obter mais nutrientes a partir do mesmo alimento.
Hoje, sabemos que a melhor proteção contra a obesidade e a diabetes do tipo 2, é cozinhar e ingerir comida caseira. Vemos que quando cozinhamos, comemos mais legumes, frutas, comemos menos alimentos processados. Cozinhar tem, ainda, um efeito meditativo, estamos em paz, temos uma fome mais tranquila. Atualmente sabemos que a saúde começa na cozinha.
Podemos dizer que o seu livro é um manifesto contra a passividade das pessoas face àquilo que as rodeia?
Não chamaria de passividade. Hoje precisamos de reorganizar a nossa vida. Tudo mudou. As mulheres não são nos nossos dias as únicas responsáveis pela cozinha. É uma realidade que tem de ficar bem clara. As funções têm de ser redistribuídas. As famílias devem encontrar-se na cozinha. E esse papel é do pai, da mãe e das crianças. Devem planear as refeições com conjunto. O problema é que fugindo da cozinha, adaptámo-nos a uma forma mais rápida de comer e dependente da indústria. Há uma reconstrução a fazer. Pessoas que voltam a cozinhar, sentem bem-estar. Temos de revalorizar o ato de cozinhar.
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