Os títulos dos livros são ilustrativos da intenção dos autores. No seu caso, intitula o livro Aprender a Comer. Não obstante toda a informação que circula na Internet, os muitos livros publicados, ainda não estamos a comer bem?
Sem dúvida. Vivemos num mundo em que existe, na verdade, excesso de informação, mas falta uma base científica credível. Em meu entender é aqui que está o maior problema. Nesse sentido, o livro é uma ferramenta prática, com sugestões para o dia a dia, para as múltiplas decisões que temos de tomar, mas com uma base científica. Ou seja, recorro a estudos científicos de base credível que leio e procuro traduzi-los para uma linguagem acessível, com conselhos simples, mas que também desmitifique muito daquilo que se cria com informação generalizada que, por vezes, peca por não estar assente na ciência. A verdade é que há muitos mitos que se criam e que até poderão ter alguma base em determinado contexto da nossa vida, mas que não são generalizáveis para toda a gente.
Como por exemplo?
Por exemplo, a ideia de que os hidratos de carbono matam. Ou seja, sabemos que os hidratos de carbono devem ser consumidos em determinadas refeições. Há, com certeza, alguns casos em que não é benéfico consumir de forma regular.
Também lemos na capa do seu livro que este trata a questão da nova “ciência de comer bem”. Muitas vezes achamos que comer é meramente intuitivo e esquecemo-nos que há muita ciência por detrás. Que nova ciência é esta?
Nos dias que correm, precisamos de instruções claras sobre como é que devemos conjugar os alimentos, organizar a nossa alimentação no quotidiano, ou seja, saber bem o que há a comer a cada uma das refeições. Perceber quais os alimentos a ingerir diariamente, embora não precisemos de o fazer a todas as refeições, e alimentos que têm de ter, por exemplo, um consumo semanal. Na realidade, temos de saber interpretar a nossa saciedade. Para esse efeito, criei um manual de boas práticas para quem quer perceber se está saciado. Há um teste de autoavaliação. Julgo ainda que tem de haver instruções claras sobre a quantidade da água a ingerir, sobre a avaliação da nossa relação com a comida, em termos comportamentais. Existem muitos pontos que a ciência aborda que, na verdade, vão tornar a nossa relação com a comida fundada no conhecimento.
A Mariana Chaves pode dar-nos um exemplo prático?
Sim. Por exemplo, a ciência diz-nos que não devemos fazer um consumo regular de açúcar. Sabemos que este consumo aumenta a inflamação, também aumenta o risco de obesidade e, quando consumido regularmente, tem um impacto metabólico muito forte. Deixa-nos mais propensos a inúmeras doenças. Portanto, as instruções são claras sobre o açúcar: devemos fazer um consumo esporádico e em pequenas quantidades. Ora, quando olhamos para o dia a dia das pessoas, vemos que muitas consomem de forma quase diária e em quantidades acima daquelas que a boa ciência aconselha dentro dos limites. Nesse sentido, quando me refiro à nova ciência de comer bem, faço-o no sentido de ajudar as pessoas a irem ao encontro destas recomendações. Então, criei um protocolo de desintoxicação de açúcar: se acha que já está longe daquilo que é considerada a recomendação, então aplique isto para ver se consegue sair desse círculo vicioso e tentar ter este comportamento que nos dizem que é o mais adequado, de acordo com a ciência.
Logo a abrir o seu livro escreve “o que este livro é” e o que “este livro pretende ser”. Quer, aqui, partilhar com os leitores?
Este não é um livro de dietas, na medida em que as pessoas não encontram na obra um plano alimentar para seguir de uma ponta à outra. Também não pretendo que seja livro técnico para os meus colegas da área da saúde. Este livro pretende ser um guia para as pessoas que, realmente, querem aprender a comer com base científica. Trata-se de uma ferramenta prática. E, nesta ferramenta, encontram protocolos que conseguem pôr em prática de forma rápida, encontram autoavaliações e, também, instruções claras sobre, não só, as quantidades a ingerir, como o tipo de alimentos.
No fundo, procuro que as pessoas usem o livro de várias formas. Tanto pode ser um livro de consulta e, como tal, inclui um índice muito detalhado; como, naturalmente, haverá pessoas que se identificarão mais com um problema ou com outro. Essa também é uma forma de consultar o livro. Ou seja, poderemos ler o capítulo que mais nos interessa e ao nosso ritmo. É claro que uma outra maneira de ler este livro é fazê-lo de uma ponta à outra, porque há nele um encadeamento.
Também abordo a questão dos comportamentos alimentares, dos comedores noturnos, das pessoas em teletrabalho. Ou seja, há temas que, por certo, interessarão a grupos específicos de pessoas. E não esqueço as idas ao supermercado. Por exemplo, no caso das bolachas, como é que devemos ler os rótulos. Ou, as estratégias para não nos deixarmos levar pelo marketing. Também para que o leitor perceba se um alimento é, realmente, processado ou não, porque agora já aparecem nas embalagens designações como saudável, biológico e orgânico. Também ajudo na interpretação do Nutri-Score, que é o novo sistema de simplificação da avaliação nutricional dos alimentos. Explico de forma aberta os desafios que estes sistemas trazem e qual será o melhor para o consumidor em geral utilizar. E, ofereço no final do livro, aquilo a que chamo “guia de sobrevivência”, ou seja, aquilo que, considero, ser uma boa escolha de alimentos e também de comportamentos.
Quais são para si alguns dos alimentos essenciais?
No que respeita ao top 10 de alimentos essenciais, o primeiro que trago para a lista são os vegetais de folha verde-escura. Estes incluem, por exemplo, os espinafras e a couve. Não só pela questão de serem baixos em calorias, mas por serem ricos em fibra, vitamina K e a nossa melhor fonte de ácido fólico. O ácido fólico é uma vitamina que entra em todos os processos do nosso corpo e desempenha um papel fundamental em processos celulares, desde a multiplicação até ao desenvolvimento do sistema nervoso central. É essencial, por exemplo, para reduzir o risco de demência e de Alzheimer, o risco de problemas cardiovasculares.
Outro alimento essencial são os brócolos, pertencente ao grupo das crucíferas. Para além de conterem muitas vitaminas, também tem um fitonutriente denominado sulforafano, identificado como sendo importante na redução do risco do cancro de mama. Conseguimos este composto de forma mais concentrada em rebentos de brócolos.
Outro importante alimento são os frutos silvestres. No livro, refiro que a cor das frutas e dos vegetais, que é o pigmento natural que estes possuem, tem uma ação muito antioxidante no nosso corpo. Frutas de cor forte, simbolizam a sua riqueza em compostos bioativos, chamados flavonoides. No caso dos frutos silvestres, encontramos as antocianinas e o ácido elágico, também com uma ação anticancerígena anti-inflamatória. Outro alimento essencial é o peixe gordo. Nós, portugueses, temos a sardinha, a cavala e também contamos com o salmão. O peixe gordo, quer seja fresco ou em conserva, é essencial para a nossa saúde neurológica, mas também para a saúde intestinal, doenças cardiovasculares.
É um perigo olharmos para a alimentação apenas como um caminho para um corpo invejável? Afinal de contas vivemos numa época de comparações.
Sem dúvida. Antes de tudo o mais, a alimentação serve para nos dar saúde, manter o corpo no máximo de eficiência possível. Por outro lado, a alimentação tem uma componente muito importante psicológica e socialmente. A componente estética será uma consequência destes dois pontos iniciais. Não nos podemos esquecer que, quando se fala em alimentação, o estilo de vida tem de lá estar também. Na base da pirâmide mais atualizada da alimentação mediterrânica, vamos encontrar, entre outros elementos, o exercício físico, o descanso adequado, as atividades culinárias, a biodiversidade e a sazonalidade, ou seja, há uma forte componente do estilo de vida. Aliás, refiro no livro os grupos de pessoas mais longevos, aquelas que vivem mais anos [habitantes das denominadas “Zonas Azuis do Planeta”]. E, uma das coisas mais faladas neste contexto, prende-se ao facto de estes indivíduos terem um grande sentido de comunidade. Ou seja, a nutrição vai muito além da escolha dos alimentos.
As redes sociais são aliadas ou inimigas das e dos nutricionistas?
Julgo que são aliadas. Porque, na verdade, conseguem transmitir muita informação de colegas de profissão, portanto, com uma base científica. No passado, a informação que era libertada, por exemplo, em revistas, nem sempre gozava de tanta credibilidade. É claro que pode ser perigoso o facto de existir mais informação dispersa, porque as pessoas têm de saber distinguir. Daí a importância de livros escritos por profissionais da nutrição. No fundo, o que digo é que as pessoas podem, de facto, consultar as redes sociais para, depois, procurar informação credível e científica.
É lícito afirmarmos que mais do que dietas restritivas, devemos assumir um estilo de vida saudável?
Sim, exatamente. Procuro explicar às pessoas que todos somos diferentes. Temos de entender o nosso enquadramento, as nossas dificuldades e as nossas necessidades. O livro, na verdade, não consegue responder a tudo, porque não aborda a doença. Fala, isso sim, da saúde. A alimentação tem o papel de prevenção de muitas doenças. Por exemplo, refiro a quantidade de vegetais e frutas necessárias para a prevenção de doenças cardiovasculares, cerca de 800 gramas/dia. Mas, no caso da prevenção do cancro, já falamos em 600 gramas/dia. Como é que conseguimos implementar isto? Através de um estilo de vida saudável. Este, também terá repercussão no nosso rendimento.
Por exemplo, no que respeita à alimentação para o cérebro, para evitar maior cansaço, para exponenciar a nossa concentração, a nossa resposta face à sociedade, isso obriga-nos a um nível de energia e de resposta mais exigente do que há 20 ou 30 anos. Para acompanharmos esta exigência, temos de tratar muito bem do nosso cérebro. Neste contexto, sabemos que a alimentação é imprescindível. Aliás, sabemos que em determinadas alturas da nossa vida, se fizemos uma alimentação mais cetogénica ou se fizemos jejum intermitente, nesse período em que estamos sem comer, conseguimos níveis de concentrações superiores. A alimentação cetogénica foi definida por médicos para doentes epiléticos. Verificaram que reduzia o número de crises. Na verdade, hoje é aplicada a doentes oncológicos cerebrais e a outras doenças oncológicas, quando faz sentido. Por exemplo, quando temos uma alimentação rica em açúcar, sabemos que esta é muito disruptiva em termos de concentração para o nosso cérebro e de cansaço.
O que é uma alimentação saudável? Enchermos os nossos frigoríficos e despensas de alimentos light, de sementes e de superalimentos?
Há alguns alimentos essenciais para se ter uma alimentação saudável. Mas a alimentação saudável, muitas vezes, não inclui alimentos light. Inclui, de certeza, alimentos reais, aqueles que a natureza nos traz. O comportamento alimentar é, sem dúvida, um fator que temos de entender melhor quando queremos ter uma alimentação saudável. Podemos estar a comer sementes numa salada, mas se nós não mastigarmos bem essa salada, vamos ter aqui várias consequências. Uma delas é que não vamos absorver na totalidade o que estamos a comer.
A Mariana pode pormenorizar?
Sim. Quando não mastiga bem o alimento, este vai ter uma maior necessidade de digestão no estômago. Mutas vezes, vai acabar por prejudicar a digestão que não é completa. O alimento vai chegar ao intestino com dimensões superiores às ideais. Com isso, muitas vezes, vamos “estragando” o nosso intestino, ou seja, vamos aumentando a permeabilidade intestinal. E, desta forma, aumentamos as intolerâncias alimentares. Isto é um círculo vicioso. Não basta ser o alimento certo, também temos de mastigá-lo bem, comer com calma, temos de conjugar bem os alimentos, porque só sementes e folhas de vegetais não nos dão a proteína essencial para mantermos a massa muscular, não nos dão a totalidade de gorduras boas de que precisamos. Ser saudável não é só conhecer os alimentos, mas saber o que fazer com eles, como é que os conjugamos, cozinhamos, a frequência com que os comemos.
Leva para o seu livro a questão dos mitos na alimentação. Há mitos que nascerão da desinformação. Teremos também mitos que interessam, por exemplo, à indústria alimentar?
A indústria alimentar tem evoluído muito nos últimos tempos para nos apresentar muitas opções práticas e saudáveis, como por exemplo os vegetais em miniatura e muitas opções de kefir. Por um lado, há este interesse em nos dar produtos de qualidade e que nos faltavam. Por outro lado, as pessoas recebem a informação de que devem limitar o consumo de carne, não só por uma questão ambiental, mas também para uma questão de saúde. Por exemplo, a World Cancer Research Fund indica que o consumo de carnes vermelhas e carnes processadas, como as salsichas, os enchidos, os presuntos e os fiambres, deve limitar-se a 500 gramas por semana. E, de repente, apareceu um grande boom de alimentos vegetarianos com um sabor análogo ao da carne. Muitas vezes, as pessoas optam por esses produtos e acham que estão a fazer uma escolha mais saudável. Na verdade, estão a escolher produtos ultraprocessados, em vez de consumirem uma carne de qualidade, em quantidade controlada.
Há temas fraturantes também na área da alimentação. Um deles é o jejum intermitente. Como se posiciona a Mariana Chaves sobre esta questão?
Há um jejum que faz bem e que congrega unanimidade em termos científicos. É o jejum das 12 horas. É essencial a partir dos 18 anos. Também, não há dúvida que os jejuns mais prolongados, de forma intermitente, e não sempre regular, trazem muitos benefícios para inúmeros campos da saúde. A questão é que deve haver uma adaptação metabólica. O que quero dizer com isto? Não devemos acordar um dia e propor-nos a iniciar 18 horas de jejum, quando estamos habituados a fazer oito. Com isso, vamos sofrer todas as consequências e efeitos secundários. O jejum faz sentido, mas deve ser feito de uma forma gradual e informada. Há alguns casos em que não faz sentido, por isso não é uma recomendação que possamos dizer que seja para todos. Mas podemos dizer que é para a maioria e que trará benefícios a todos os níveis do nosso corpo.
O seu livro também fala de desintoxicação alimentar. Estamos, realmente, intoxicados com aquilo que comemos?
Sem dúvida. Estamos intoxicados com a grande variedade de produtos ultraprocessados à disposição e também com opções alimentares da restauração que nos entram em casa. Com isso, as pessoas perdem o ritual de preparar as refeições no lar e escolherem os alimentos. As pessoas precisam de dedicar mais tempo a organizar a sua alimentação, para não dependerem tanto dos produtos que referi e que, na verdade, estão a fazer com que as nossas análises de sangue tenham valores de vitaminas e minerais constantemente em carência.
Com a alimentação conseguimos retardar o processo de envelhecimento?
O que se sabe é que o envelhecimento pode ser exponenciado pela alimentação. Por exemplo, com o açúcar, como já referi atrás, mas mesmo com as torradas. O facto de torrarmos o pão traz-nos produtos de glicação, que vão partir o colagénio e, consequentemente, teremos mais celulite e mais rugas. Sabemos, portanto, que alguns alimentos influenciam o envelhecimento. Nas dietas anti-aging, o que estudos revelam é que regimes mais restritivos poderão levar a um controlo do envelhecimento mais eficaz. Mas, sublinho que as pessoas devem informar-se cuidadosamente sobre isto. Ou seja, não é um tipo de dieta específica. São dietas com menos consumo calórico, ou seja, com as pessoas a ingerirem menos calorias. Com isso não estou a dizer que as pessoas vão comer menos alimentos, mas antes pratos com muito mais vegetais.
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