Será que existem realmente alimentos “saudáveis”? Face à proliferação de informação sobre alimentação e saúde, muitas vezes sem qualquer base científica, assente em modas, mitos e veiculada por agentes sem preparação técnica para o fazerem, a professora e investigadora Conceição Calhau oferece aos escaparates o livro Deixemo-nos de Tretas – A Ilusão da Comida Saudável (edição Contraponto). A Professora Catedrática de Bioquímica da NOVA Medical School detalha o que se entende, realmente, por alimentação saudável. Aproxima-a de um regime alimentar mais próximo da origem, da dieta mediterrânica e prefere chamar-lhe “alimentação adequada”. Em entrevista, assume que um dos motivos que a levou a escrever a presente obra foi o “desassossego” de perceber a desinformação que circula nas redes sociais, um cenário ao qual “os jovens estão expostos”. Na introdução ao livro, a doutorada em Biologia Humana, relata que “quanto mais sabemos acerca de alimentação e de nutrição, pior as pessoas comem. A democratização da informação teve aqui, como em muitas outras áreas, o efeito oposto: com tanta coisa que se diz e, em muitos casos, que se contradiz, como distinguir a banha da cobra daquilo a que devemos realmente dar ouvidos?”. Nesta entrevista trazemos um contributo para esclarecer esta questão.

 Treta é por definição, um estratagema, um engano. Quis com o título do seu livro dizer-nos que vivemos um embuste no que toca à comida saudável?

O título é um pouco provocador no sentido em que procura desenvolver um espírito crítico no leitor. Pretendo com o livro alertar para o facto de, atualmente, aquilo que se utiliza como estratégia de comunicação é extremamente perigoso e, muitas vezes, a condução da informação já não está entregue a profissionais das ciências da comunicação. No fundo, este livro também acaba por alertar para duas realidades ou, se quiser, para duas ciências que começam a não ser valorizadas: por um lado a nutrição e, por outro, as ciências da comunicação. Hoje, qualquer pessoa dissemina informação, temos redes sociais que não contam com vigilância, mesmo do ponto de vista legal. Trata-se de um alerta para aquilo em que podemos ‘tropeçar’ e que não é propriamente verdade. Se há muitas coisas nas quais podemos ‘tropeçar’ que não fazem nem bem nem mal, outras podem ser prejudiciais para a saúde. Nesse sentido, a palavra ‘treta’ surge por termos promessas para tudo e mais alguma coisa, desde tratar doenças à perda de peso.

É lícito afirmarmos que a abundância alimentar nas sociedades ocidentais nos está a matar?

De facto, a abundância é um dos fatores que encontramos presentemente como uma variável de risco. A verdade é que se olharmos para os números diários de mortes a nível mundial associados à fome, percebemos que o óbito de indivíduos com excesso de peso é praticamente igual. Se somarmos a obesidade ao excesso de peso, então encontramos um desequilíbrio na balança face às pessoas que padecem de fome. De facto, a questão da fome mantém-se como um problema, embora circunscrito. Efetivamente, vulgarizou-se a abundância alimentar, o acesso fácil a alimentos, sobretudo aqueles densamente calóricos ou energéticos e muito pobres em nutrientes. Acresce que a globalização acaba por retirar deste contexto muitas das recomendações que encontramos de acesso a alimentos sazonais e locais, com tudo o que isso implica.

Influencers e alimentação saudável: “Estamos perante um problema de saúde pública e de desinformação”
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Escreve no seu livro que a comida de que dispomos é, muitas vezes, pior do que aquela de que dispunham os nossos pais e avós. No entanto escutamos amiúde as benesses que nascem dos avanços da tecnologia alimentar e da industrialização. Como podemos olhar para esta questão?

Na nota introdutória ao livro abordo essa questão e procuro explicar o campo da indústria alimentar. Faço uma afirmação com fundo científico, baseada na Harvard Medical School, que tem a noção clara da observação das populações. Percebem que quem cozinha em casa, ou seja, quem prepara os alimentos, tem menos peso, menos excesso de peso ou menos obesidade, face aos que compram refeições pré-cozinhadas. Há aqui uma mensagem que se prende à preparação das refeições em casa. O facto de não termos tempo para preparar refeições, ou de não sabermos como as confecionar, é uma barreira. Há que a saber identificar. Repare, com esta afirmação não estou a dizer que tudo aquilo que é feito em casa é bom e que tudo aquilo que se compra já preparado é mau. Claro que podemos fazer logo esta extrapolação. Eventualmente, pode-se depreender que o que procuro transmitir é que os dados revelam que quem prepara as refeições em casa tem menos peso, face aos que compram tudo feito. Mas, sublinho, eu não escrevi isso. Na mesma nota introdutória escrevo que a indústria alimentar, em paralelo com a indústria farmacêutica, nos apresentam soluções. E, a verdade, é que a segurança alimentar, a oferta de novas fórmulas que podem ser mais interessantes do ponto de vista de saúde, são uma ajuda. É importante termos presente que quando digo que os alimentos ultraprocessados têm efeitos nefastos, não estou a dizer que tudo aquilo que não é processado, não acarreta nenhum problema.

Hoje, estamos a viver um pouco da informação que sublinha os efeitos negativos do ultraprocessado, o que diaboliza a indústria alimentar no seu todo. E isto não é verdade, mais não seja por ser importante do ponto de vista financeiro e económico para o país. Não nos podemos esquecer que esta mesma indústria também responde à procura. E a procura é que tem de mudar. A oferta faz-se conforme a procura. Logo, se há desinformação, se o consumidor teima em comprar, por exemplo, alimentos salgados, quando a opção com menos sal é oferecida. Obviamente que a indústria não vai pôr um produto no mercado que o consumidor não consome.

No fundo há aqui uma grande responsabilidade por parte do consumidor. As modas alimentares também terão a sua influência…

Tudo o que possa ser uma moda do ponto de vista do consumo pode trazer um problema. Num tempo anterior, cada cultura ou cada região do globo tinha os seus alimentos próprios para aquela região. Hoje, toda a gente come soja ou pera-abacate, apenas para dar dois exemplos. Isto causa problemas de sustentabilidade e, depois, obviamente temos a pegada ambiental, outro dos temas recorrentes. Normalmente, só se fala da pegada ambiental quando nos referimos aos animais que, efetivamente têm patas [risos], mas as plantas também causam pegada. No fundo, estamos a falar de radicalismos e de extremismos, de falta de moderação. Toda a gente tem de comer muito de um alimento porque este é moda.

Sobre a autora

Conceição Calhau é Professora Catedrática na NOVA Medical School, regente de Bioquímica Nutricional do curso de Medicina, fundadora da licenciatura em Ciências da Nutrição nesta escola médica e fundadora do Mestrado em Nutrição Humana e Metabolismo.
Durante 23 anos foi investigadora e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde se doutorou em Biologia Humana em 2002, e se agregou em Metabolismo em 2010. A sua área de investigação incide maioritariamente na microbiota intestinal, nos efeitos dos alteradores endócrinos na disfunção metabólica e nos compostos bioativos presentes na alimentação. Cofundou a YourBiome, uma spin-off da Universidade NOVA de Lisboa, dedicada à pesquisa e desenvolvimento de novas terapias com base na microbiota intestinal para tratamento das doenças metabólicas.

O que pode explicar, como refere no livro, que “quanto mais exótico e disparatado for um conselho alimentar, mais as pessoas aderem e ele”? Falta literacia em saúde?

Sim, prende-se com o que refere, mas também com outro facto e este passa pelas técnicas de propaganda. Ou seja, muitas vezes está-se a causar espanto para que a pessoa preste atenção ao que se transmite. Por exemplo, vou prestar atenção a um determinado profissional de saúde só porque ele me diz que ao pequeno-almoço me fará bem beber x mililitros de água morna, com quatro gotas de vinagre e duas de limão e vai esperar 15 minutos. Provavelmente, a pessoa vai seguir a receita religiosamente. É claro que esta terá o efeito de placebo. É mais interessante do que dizer que tenho de ingerir 20 gramas de proteína ao pequeno-almoço, suportada em determinados fornecedores de proteína, sobretudo de origem vegetal. A pessoa vai achar que isto é um aborrecimento e que não estou a dizer nada de extraordinário. Por isso é difícil as pessoas aderirem à dieta mediterrânica, porque é simples e não tem tofu. Se eu disser às pessoas para comerem almôndegas de feijão, não hesitam, mas já não quererão o feijão por si só.

E também invertemos as quantidades no prato, quando falamos, por exemplo, de uma feijoada, muitas vezes estamos a falar de uma quantidade enorme de carne e desmerecemos a leguminosa.

Sim. Aliás, há uns anos, participei nuns programas de televisão e, nesse contexto, explicava a química de alguns alimentos. Recordo-me que, a dado momento, levei dois pratos para discutir a densidade nutricional. Apresentei um arroz branco acompanhado de bife de frango grelhado e um prato de feijoada. Foi-me dito: “Ah, professora, esta feijoada não, isto é pesadíssimo”. A minha resposta foi: “Errado”. O prato de arroz com peito de frango é que não tem interesse praticamente nenhum. Na feijoada tenho o feijão, a cenoura, as couves. Agora, qual é o problema nas feijoadas? É o sal e são os enchidos. Se reduzir no sal e se não tiver enchidos, nem excesso de carne, tenho ali um prato equilibrado. A ideia do prato pesado também decorre da dificuldade de as pessoas fazerem bem a digestão de leguminosas. Porque fomos perdendo o hábito de comer leguminosas regularmente. Portanto, o processo digestivo não vai funcionar bem.

As redes sociais e os influenciadores estão a contribuir para ampliar a desinformação?

Sim. Existem comportamentos alimentares que podem, efetivamente, ser um risco como, por exemplo, os detox, em que há uma carga de hidratos de carbono brutal. Por exemplo, ponho numa taça três ou quatro peças de fruta, depois ainda lhes acrescento mel e agave. Sigo aquilo que o influenciador disseminou. E isto é muito perigoso porque os miúdos seguem à risca. É claro que também podemos ver em alguns destes influenciadores uma oportunidade e não uma ameaça. Sabemos que muitas das estratégias da Direção Geral da Saúde e do Ministério da Saúde, passam por chamar influenciadores para serem o veículo desta informação.

Esta questão prende-se, precisamente, com um dos temas que referiu no início desta conversa, a ameaça que pende sobre as ciências da comunicação e nutrição. Estamos a colocar a questão da nutrição, que é uma matéria complexa, nas mãos de pessoas que no fundo não têm qualquer preparação nesta área.

Com certeza. Não têm essa competência. No livro refiro um episódio.  Há uns tempos a ouvir rádio enquanto conduzia e ouço a locutora a anunciar um chocolate com amendoim saudável. A receita incluía manteiga de amendoim, chocolate com 80% ou 90% de cacau, farinha e óleo de coco. Ou seja, ingredientes que os jovens acham que são os designados superalimentos. A ideia transmitida é a de que estamos perante algo saudável. Na NOVA Medical School temos uma escola de verão, a Summer Medical School, que recebe crianças para aprenderem a cozinhar e a ter uma melhor relação com os alimentos. No ano passado, os miúdos consumiam ao lanche boiões de manteiga de amendoim. Não consigo perceber porque estão estas crianças viciadas em manteiga de amendoim. Têm, isso sim, de pôr outras coisas no pão como, por exemplo, queijo fresco, pesto, ovos mexidos, azeite, tomate assado. Ou seja, como se identificam qualidades na manteiga de amendoim, parte-se do princípio de que quanto mais desta comermos, melhor vamos ficar. Aliás, termino o livro a citar Paracelso: “na alimentação como em tudo, o que faz o veneno é a dose”.

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A palavra saudável está carregada de armadilhas. O que é, em génese, uma alimentação saudável?

Genericamente e seguindo as recomendações de saúde pública, a alimentação saudável baseia-se na dieta mediterrânica. Julgo que atualmente se vulgarizou o termo alimentação saudável. Banalizou-se e, creio, está a descredibilizar-se. Prefiro utilizar a designação alimentação adequada. Adequada a todos os níveis: do ponto de vista ambiental, do ponto de vista do indivíduo, do ponto de vista financeiro. Repare, se pensarmos bem no próprio do adjetivo, estamos a adjetivar o alimento. Saudável deve dirigir-se ao consumidor. Como tal, até brinco um pouco com isso e digo: “Só espero que o alimento não esteja doente”. Porque, na realidade, vulgarizamos e interpretamos mal quando dizemos que o chocolate é saudável ou que o açaí saudável.

De tudo o que temos estado a falar depreende-se a importância da frase que chamou para subtítulo do seu livro. Vivemos a “ilusão da comida saudável”.

Há dois tipos de ilusão. Por um lado, a de se achar que é saudável o bolinho caseiro que fiz com óleo, manteiga e açúcar de coco, ao qual se acrescenta uma tâmara. Por outro lado, ao considerarmos que o bolo é saudável, então achamos que podemos comer mais e, com isso, vamos ficar mais saudáveis. É um erro. Outro exemplo, é o de se achar que se pode comer sem limites bolachas de água e sal. Nesses casos costumo explicar que água e sal é igual a mar, não é uma bolacha. Também se puser num rótulo a indicação de que não tem adição de açúcar, de sacarose, estou a dizer rigorosamente verdade. Mas acrescentei frutose ou dextrose.

A alimentação também é produto da sociedade e do tempo em que vivemos. Dormimos pouco e mal, somos sedentários, trabalhamos muitas horas, sucumbimos ao stresse, afundamo-nos no sofá a consumir séries. Será que esta agenda familiar permite o reencontro com um horário de refeições também ele saudável?

A própria emancipação da mulher trouxe a este tema novos desafios. Ou seja, se por um lado temos a exigência da mulher profissional, a exigência da mulher com saúde, também uma líder; por outro lado, também não foi resolvido o problema da doméstica. Quem é que prepara as refeições e cuida da família? Quem é responsável pelas compras? É a mulher. Ou seja, quem é que tem tempo para preparar as refeições de forma que se jante às sete da tarde? Isto tem de ser falado, porque, caso contrário, vamos continuar a fazer recomendações sem perceber que há que mudar este cenário. Digo isto com à-vontade porque sou mulher e confronto-me com estas exigências. Dou-lhe outro exemplo: a Organização Mundial da Saúde diz que a mulher deve amamentar exclusivamente até aos seis meses. Ora, quem é que conta com uma licença de maternidade de seis meses? É muito importante que reflitamos sobre estas recomendações.

Também leva para o seu livro a alimentação vegetariana e vegana. Também nelas encontra pontos fracos. Quer explicar-nos?

Claro. Espero que as pessoas leiam atentamente o que escrevo no livro. O que procuro transmitir é que o vegetariano, em regra, é uma pessoa mais informada sobre a alimentação e, portanto, terá também um estilo de vida mais adequado. Praticará exercício físico, se calhar cuida melhor do sono e tem preocupações com a alimentação. Mas não digo que a dieta vegetariana é a mais equilibrada. Também escrevo que tem algumas fragilidades identificadas, embora se forem colmatadas seja uma alimentação adequada. Agora, o que escrevo no livro é que a dieta mediterrânica é aquela que nos traz mais vantagens.

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Estamos obcecados em contar calorias?

Ainda estamos muito obcecados em contar calorias, mais não seja pelas inúmeras aplicações para telemóvel com esse fim. Mais importante do que o valor energético é, de facto, aquilo que os alimentos nos trazem. Há uns 20 anos, o consumidor olhava para o valor energético do ponto de vista da rotulagem. Penso que neste momento já não estamos nesse ponto. Já há alguma preocupação, por exemplo, com a quantidade de açúcar. Parece-me que com o sal e a gordura ainda não estamos nesse ponto. Agora, a verdade é que o livro alerta para a importância de outras variáveis como o exercício físico, a distribuição das refeições ao longo do dia e a qualidade do que comemos, ao invés de ter como principal critério o valor energético.

Há um excesso de atenção em relação às intolerâncias alimentares. Ou seja, estamos a diabolizar alimentos? Pode ser uma moda?

Podemos encontrar o consumidor que escolhe alimentos que não têm lactose ou que não têm glúten só porque sim; como também podemos ter o consumidor que não consome determinados alimentos, porque os associa a determinados sintomas de desconforto intestinal, ou outro tipo de manifestação. Aquilo que me parece importante considerarmos é perceber porque é que há uma prevalência muito grande de desconforto intestinal com a ingestão de certos alimentos. A ciência atual diz-nos que o processo digestivo pode estar comprometido por muitas razões e são essas aquelas que temos de estudar. Não é normal as pessoas terem aerofagia, não é normal as pessoas terem obstipação, não é normal as pessoas ficarem inchadas. Se as pessoas têm estes sintomas e os associam a alguns alimentos, isso não é propriamente uma moda. O que queremos dizer é que é muito prevalente.

Quer falar-nos da YourBiome entidade que cofundou?

É uma spin-off da Universidade de NOVA de Lisboa criada em 2019. Neste contexto criamos transplante de microbiota fecal. No contexto internacional existem inúmeros ensaios clínicos a decorrer sobre a utilização do transplante fecal para o tratamento de variadas doenças, não apenas as doenças inflamatórias do intestino, mas também o autismo, a depressão, a obesidade, o cancro, a diabetes e muitas doenças autoimunes. Portanto, desenvolvemos na faculdade um banco de fezes com a identificação de dadores. Isto, para que no futuro se possa encontrar respostas clínicas.