Num tempo em que o debate sobre a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ganha nova urgência, ora pela escassez de recursos, ora pela fuga de profissionais, há uma pergunta que permanece silenciada: que papel estamos dispostos a dar aos enfermeiros na construção de soluções para o futuro do SNS? Porque, se é verdade que o SNS se apoia no esforço coletivo de muitos, também é certo que sem enfermeiros não há cuidados, não há continuidade e, mais grave ainda, não há estratégia que resista.

Portugal enfrenta uma crise silenciosa. Faltam cerca de 14 mil enfermeiros no SNS, uma carência que ameaça a própria sustentabilidade do sistema. Isto acontece apesar de o país contar com cerca de 50 mil enfermeiros no SNS. Portugal continua a apresentar um dos rácios mais baixos da Europa: somente 7,1 enfermeiros por mil habitantes, face à média da OCDE de 9,2. Esta escassez traduz-se numa sobrecarga crónica, leva ao burnout e culmina, inevitavelmente, no abandono da profissão, pelo menos em terras lusitanas. Em 2023, mais de 2.200 enfermeiros portugueses emigraram. Um número que não se explica apenas por razões salariais, mas também pela ausência de perspetivas de progressão, de autonomia e de valorização profissional. Como pode um sistema que ignora e sobrecarrega os seus profissionais esperar sobreviver?

Esta subvalorização tem custos concretos. Em 2024, o SNS gastou quase 108 milhões de euros em horas extraordinárias de enfermagem, um aumento de 20 por cento face ao ano anterior. A dependência crónica de horas extra e de prestadores de serviço é reflexo de um sistema mal dimensionado, que insiste em apagar incêndios com recursos humanos exaustos, em vez de investir numa força de trabalho estável, motivada e preparada para liderar mudanças. A carência estimada de 14 mil enfermeiros agrava-se perante a ausência de políticas de planeamento estratégico, deixando hospitais e centros de saúde vulneráveis à improvisação e à rotatividade.

Mas o problema vai mais além dos números. É, acima de tudo, uma questão de visão. A sustentabilidade do SNS não se garante apenas com mais financiamento; exige melhor organização. E, nesse campo, os enfermeiros são aliados centrais. A evidência internacional é inequívoca: equipas de enfermagem adequadas e lideradas por profissionais experientes reduzem infeções hospitalares, quedas, reinternamentos e mortalidade. Em Portugal, faltam-nos não só enfermeiros, mas também coragem para os integrar nos processos de decisão clínica, organizacional e política. Sem os enfermeiros na linha da frente e no centro das decisões, o futuro do SNS fica comprometido.

No contexto atual, o enfermeiro continua a ser encarado como mero executor técnico de ordens médicas, desvalorizando-se o seu potencial transformador na gestão de cuidados, na prevenção de complicações e na melhoria dos resultados em saúde. Por que razão insistimos em tratar os enfermeiros como executores, quando são eles que asseguram a continuidade do SNS?

A enfermagem de prática avançada, já regulamentada em vários países europeus, representa uma oportunidade que Portugal tem desperdiçado. Enfermeiros com formação avançada e competências clínicas alargadas estão capacitados para garantir o seguimento autónomo de doentes crónicos, realizar prescrições, revalidar terapêuticas e coordenar intervenções interdisciplinares. Nos cuidados de saúde primários, por exemplo, um modelo centrado em enfermeiros especialistas poderia reduzir substancialmente as idas desnecessárias ao hospital, melhorar o autocuidado e libertar médicos para os casos mais complexos.

O exemplo da enfermagem de saúde materna e obstétrica é particularmente elucidativo. Enfermeiros especialistas, com comprovada competência científica e técnica para acompanhar a mulher ao longo de todo o ciclo reprodutivo, continuam muitas vezes relegados para funções secundárias. No entanto, poderiam liderar o acompanhamento de gravidezes de baixo risco, a educação pré-natal e o seguimento pós-parto. Esta não é apenas uma questão de justiça profissional. É, acima de tudo, uma questão de saúde pública. Países que apostaram na autonomia da enfermagem especializada, como o Reino Unido ou os países nórdicos, apresentam melhores indicadores perinatais e maior satisfação das utentes.

Negar aos enfermeiros o reconhecimento como agentes estratégicos é desperdiçar conhecimento, desperdiçar recursos e comprometer o futuro do SNS. Quando lhes é dada a oportunidade de praticar no máximo das suas competências, como sucede em modelos de gestão de casos, enfermagem de prática avançada, cuidados domiciliários liderados por especialistas ou programas de vigilância clínica de proximidade, os benefícios tornam-se evidentes: hospitalizações evitáveis, melhor acompanhamento de doentes crónicos, maior literacia em saúde e maior satisfação dos utentes.

Insistir em manter os enfermeiros afastados dos centros de decisão, das reformas estruturais e dos órgãos de poder não é somente injusto. É uma escolha política errada. A sustentabilidade do SNS requer decisões estratégicas e inteligentes, não meros remendos orçamentais. Uma dessas decisões passa, inevitavelmente, por devolver aos enfermeiros o papel que lhes pertence: o de protagonistas informados, líderes clínicos e agentes de inovação organizacional.

O futuro do SNS constrói-se com decisões claras e corajosas. E está na hora de fazer uma escolha: continuamos a desperdiçar o potencial dos enfermeiros ou colocamo-los, finalmente, onde sempre deveriam ter estado: no centro da estratégia de sustentabilidade da saúde em Portugal?