Faz pouco sentido cuidar da saúde mental das crianças e dos adultos e não cuidar, ao mesmo tempo, da saúde mental das instituições, das empresas e dos serviços públicos.
Os traumas da nossa história estão muitas vezes esquecidos ou escondidos, mas marcaram-nos profundamente.
Durante o seu desenvolvimento, muitas crianças são confrontadas com situações em que se sentem extremamente ameaçadas, inseguras e angustiadas. Nestas situações, a criança tenta, desesperadamente, chamar a atenção dos adultos com quem tem uma relação afetiva, para que a protejam e acarinhem. Muitas vezes há uma resposta adequada, geralmente por parte da mãe, e o nível de stress da criança regressa a valores normais. Há, no entanto, muitas outras situações em que a resposta do adulto não é adequada, ou é insuficiente, ou inexistente. Nestas situações é a criança, ainda muito jovem e dispondo de muito poucos recursos, que tem de encontrar formas de se proteger de uma situação que ameaça a sua sobrevivência e integridade, tanto emocional como física, uma situação que a vai ferir, que a vai traumatizar e que a vai transformar. A probabilidade é baixa que, sem ajuda, a criança consiga evitar o trauma.
Os traumas da nossa história de criança
Algumas crianças foram levadas às urgências hospitalares e sentiram o estado de pânico dos seus pais, outras julgam-se abandonadas ou ignoradas pelos seus progenitores, não amadas por eles, ainda outras presenciam discussões frequentes entre os pais, ou o estado depressivo ou desesperado destes. Outras crianças e adolescentes são confrontadas com um divórcio ou agressões emocionais, tais como frequentes comentários negativos sobre o seu comportamento ou aproveitamento escolar. A violência, física e sexual, é frequente e particularmente traumática, assim como viver com graves privações materiais ou socioculturais. Muitas crianças são retiradas á proteção e ao carinho da mãe, ou dos pais, ou da família, institucionalizadas pela justiça e obrigadas a viver ´sem família´ ou em famílias de acolhimento. Por vezes, não menos traumática, é a descoberta pelo/a jovem, da injustiça, da estratificação social, da segregação de género e do racismo. O/A jovem não conhece os conceitos, mas vive-os, de forma traumática, no seu dia-a-dia.
Estas e muitas outras experiências traumáticas, que se traduzem em sensações e emoções muito fortes, alteram o desenvolvimento neurofisiológico e hormonal normal da criança. Quando não detetadas, nem tratadas (e em caso afirmativo, sem o uso de fármacos), estas experiências traumáticas, sensações e emoções, vão dar origem há maioria das perturbações mentais conhecidas, particularmente às mais graves e às que se manifestam já por volta dos 4 ou 5 anos de idade.
Patologias e ´doenças´ (´mentais ou físicas´) resultam, na generalidade, da vida que conseguimos viver, não de uma maldição dos Deuses ou de um aberração genética misteriosa e desconhecida.
Já a partir dos três, quatro anos de idade, é perfeitamente possível constatar que muitas crianças (uma percentagem várias vezes superior à que é oficialmente avançada, de cerca de 25%) não se sentem bem, nem são felizes. Estas crianças têm comportamentos emocionalmente muito fortes, inadequados às situações em que se encontram, comportamentos esses que dificultam o seu relacionamento com o outro, que as expõem à incompreensão e à agressão na família e nas instituições, mas que mesmo assim não conseguem alterar. Estas crianças adoecem frequentemente e são muito sensíveis a infecções tais como constipações e alergias de todo o género. O sistema imunitário destas crianças dá claros sinais de estar debilitado. Após perfazerem os cinquenta anos de idade, começam a manifestar-se problemas de saúde muito mais graves nas pessoas que, em criança ou já na idade adulta, foram expostas a situações traumatizantes e que sofreram um ou múltiplos traumas.
Os traumas do dia-a-dia dos adultos e os nossos traumas socais
O trauma resulta de uma situação vivida como sendo uma agressão muito violenta, repentina, inesperada ou prolongada, por vezes, repetida “vezes sem conta”. As sensações e as emoções, provocadas pelo trauma, vão dar origem a perturbações neurofisiológicas e hormonais. O comportamento da pessoa vai, visivelmente, alterar-se e deteriorar-se com o tempo. No seu último livro (O Mito do Normal), Dr. Gabor Maté define o trauma como sendo ”uma lesão psíquica, infligida no sistema nervoso, na mente e no corpo, que dura muito para além do incidente (incidentes) que a originou e que pode ser despertada a qualquer momento.” O trauma é algo normal e frequente nas pessoas e nas sociedades.
O trauma emocional conduz a uma interrupção da comunicação da pessoa consigo mesma e com o outro, e acrescido isolamento da mesma, uma deterioração do seu desenvolvimento e comportamento, uma acrescida susceptibilidade emocional e física, uma grande dificuldade em estabilizar o sofrimento emocional, que se agrava continuamente.
Quando, numa sociedade, contra todas as expectativas e durante um longo período, nada funciona em condições, expondo as pessoas ao terror do imprevisível e impedindo-as de organizarem a sua própria vida com segurança, é espectável que as pessoas e as famílias se sintam extremamente stressadas e traumatizadas.
A grande maioria das pessoas, sente-se, há já dezenas de anos, ininterruptamente, terrivelmente maltratada, agredida e ignorada pelo “sistema” ou seja, pelas instituições tais como os estabelecimentos de ensino, os serviços de saúde e de justiça, as empresas e a administração pública, os partidos políticos e os governos. Os conflitos laborais e as greves são permanentes, causam enormes transtornos, prejuízos e irritação, sem que nunca, nada, seja resolvido ou melhorado. Os cidadãos, clientes e utentes sentem-se explorados e ridicularizados face a preços e impostos muito elevados, salários, serviços e bens sem qualidade. As condições de trabalho são degradantes, o medo de represálias e a revolta são permanentes, a gestão, a organização e a administração empresarial são arcaicas, rudimentares, sem qualidade empresarial ou social. No ensino, como em todas os outros serviços, berra-se, abusa-se e exige-se silêncio. Em todos os setores a falta de transparência e de humanidade é enorme, assim como a desmotivação. Os professores e todos os outros profissionais, imploram por respeito. Nos locais de trabalho as pessoas são tratadas aos berros, com maus modos, obrigadas a fazerem muitas horas de trabalho, não pago, ameaçadas e agredidas.
Não há um projeto coletivo de sociedade, mas uma democracia formal, sem vida, nem substância.
A arrogância, o abuso e a concentração de poder, assim como a burocracia entorpecedora e embrutecedora, estão tão generalizadas e enraizadas no poder e na sociedade, como a ineficiência e a corrupção. Há pessoas que se comportam muitíssimo mal com todas as outras. Ignoram-nas, são rudes e malcriadas, arrogantes, exploram-nas, mentem-lhes, desprezam-nas, provocam-nas, são agressivas e violentas. Não é normal! Estas pessoas, estão elas mesmas traumatizadas. Pessoas traumatizadas, traumatizam outras pessoas.
Há uma forte sensação de se ser tratado/a com crueldade e de não se conseguir evitar a sensação de mágoa e desespero. As pessoas desligam-se, isolam-se e fogem de um “sistema” que só lhes causa sofrimento e que já não conseguem suportar. O trauma existe como experiência coletiva.
A saúde mental do “sistema” e dos detentores do poder económico, político e empresarial determina a saúde mental (e física) da sociedade e de cada um dos seus membros.
É necessário cuidar, com grande carinho e respeito, da criança, do jovem e do cidadão, independentemente do seu estatuto socioeconómico, mas para que o tratamento faça sentido é absolutamente indispensável cuidar dos traumas da sociedade, das instituições e das empresas, dos detentores do poder económico, político e empresarial. Tudo leva a crer que tal é necessário e que a todos beneficiará.
Um artigo de opinião de Manuel Fernando Menezes e Cunha, Psicólogo da Saúde e Economista do Desenvolvimento.
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