Ao longo dos anos, a ciência psicológica tem vindo a tentar compreender as fragilidades que surgem de forma tão precoce na saúde mental dos mais jovens. As respostas até agora alcançadas apontam para a perpetuação de ciclos familiares disfuncionais, isto é, gerações e gerações de famílias em que existe conflito, discórdia e relações baseadas no distanciamento e frieza emocional.
Neste sentido, um elemento comum à perpetuação de ciclos familiares disfuncionais e a fragilidades na saúde mental é a vivência de experiências traumáticas, com destaque para o conceito de trauma intergeracional.
De acordo com a Associação Americana de Psicologia, estamos perante um trauma intergeracional quando o descendente de uma pessoa que viveu uma experiência traumática apresenta reações emocionais e comportamentais semelhantes à do seu ascendente/familiar.
Por outras palavras, diz respeito ao processo de transmissão de experiências e eventos traumáticos de uma geração para a outra. Entende-se por experiências traumáticas as experiências de abuso na infância (psicológico, físico e/ou sexual), exposição a violência doméstica, prisão de um dos progenitores, divórcio conflituoso, perturbações associadas ao uso de drogas e álcool, desastres naturais, entre outros.
Este conceito de trauma intergeracional foi introduzido já no ano de 1966, pelo psiquiatra americano Vivian Rakoff, através de investigações com crianças descendentes de pessoas sobreviventes do Holocausto. E, ao longo dos anos, os estudos chegaram, não raras vezes, à mesma conclusão de que os estudos pioneiros do referido psiquiatra: as crianças cujos ascendentes (pais, avós, bisavós) tinham sido vítimas de experiências traumáticas (por exemplo, vítimas do Holocausto; vítimas dos genocídios de Ruanda) apresentavam sintomas de depressão, défice de atenção e perturbações do comportamento, particularmente, dificuldade na gestão da impulsividade e agressividade.
Mas, de que forma pode ser transmitido o trauma intergeracional?
Segundo Matt Boland, psicólogo especialista em trauma e doença mental, pode acontecer através dos nossos genes ou das conversas que temos ou escutamos à mesa, com a nossa família, mesmo desde a infância.
No domínio da epigenética (ciência que estuda a forma como o ambiente e os comportamentos do ser humano podem causar mudanças que impactam a forma como os genes funcionam), destaca-se a teoria de que este fenómeno seria resultado de mudanças no ADN do ser humano, as quais afetariam negativamente a saúde das gerações.
No que remete para as conversas que temos ou ouvimos à mesa com a nossa família, tome-se como exemplo a escritora americana Merissa Nathan Gerson, cuja família sobreviveu ao Holocausto e que, após ter ouvido os familiares falar sobre os horrores das câmaras de gás durante um jantar, começou a sentir ansiedade sempre que pensava em usar uma sauna. Existem, assim, estudos que abordam o trauma intergeracional como resultado da ideia de que viver com uma pessoa traumatizada pode ser, por si só, uma experiência traumática. Tome-se como exemplo as crianças, as quais aprendem por observação e replicam o comportamento dos modelos de referência, que tendem a ser os familiares mais próximas. Neste sentido, existe um risco elevado de uma criança que assistiu a violência doméstica, aquando da sua vida adulta, poder vir a ser uma vítima ou um agressor.
No entanto, numa revisão bibliográfica de 2018, concluiu-se que podem existir diferentes fontes de transmissão do trauma intergeracional, nomeadamente: modificações no ADN; experiências vividas no útero da progenitora pelo bebé; o desgaste emocional associado à vivência de vários eventos de carga emocional negativa na família; narrativas familiares associadas a sofrimento; normalização do ódio, práticas de crueldade e desumanização em relação aos outros pelas figuras de referência; agressões (físicas e/ou emocionais) nas dinâmicas familiares.
Um fator facilitador da transmissão do trauma intergeracional é a utilização de estratégias pouco saudáveis que as vítimas tendem a usar, nomeadamente a negação (recusa em reconhecer a experiência como verdadeira) e a minimização (ignorar e desvalorizar o impacto emocional da experiência traumática). Ou seja, a forma como os membros da família lidam com o trauma intergeracional pode constituir um precedente para as gerações mais novas. Por exemplo, uma avó que se recusa a explorar e admitir o impacto emocional negativo do seu trauma pode estar a ensinar os seus netos (intencionalmente ou não) a ignorar o impacto das experiências negativas em que tropeçam.
A Associação Americana de Psicologia resume que existe, portanto, uma relação entre o trauma intergeracional e a degradação da saúde.
No domínio da saúde mental, existe um risco elevado de ideação suicida (particularmente se já existir um histórico de suicídio no seio familiar) e de patologias como a depressão, perturbações da ansiedade, perturbações do sono e perturbações associadas ao consumo de álcool e drogas. Ainda neste domínio, mesmo na ausência de doenças mentais, parece predominar uma baixa autoestima, pensamentos negativos intrusivos (pensamentos negativos automáticos que a pessoa sente que não controla e que roubam o bem-estar), sentimentos de vergonha e de incompreensão pelos demais, uma elevada reatividade ao stress e dificuldades em gerir os impulsos agressivos, tendência a não confiar na intenção dos outros e a perspetivar o futuro com desesperança e desamparo. Na esfera da saúde física, a literatura da especialidade aponta para um risco elevado de doenças crónicas, como a diabetes, assim como de doenças cardíacas.
Contudo, existem estratégias que permitem ajudar a quebrar ciclos familiares disfuncionais. Não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o futuro. Peça ajuda psicológica, não se encontra sozinho(a)!
As explicações são de Sofia Gabriel e de Mauro Paulino da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.
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