“O tempo não cura todas as feridas. As dores da infância não desaparecem miraculosamente com os triunfos da vida adulta, as inseguranças da adolescência não se diluem assim que alcançamos uma carreira estável, e uma relação amorosa traumática não se esquece só porque encontrámos a pessoa ‘certa’. Mesmo que tenhas tido ‘uma infância normal’, ‘bons pais’ ou que o mundo esteja cheio de acontecimentos terríveis bem piores do que aqueles que viveste, muitos dos teus frequentes sentimentos de inadequação, bloqueio ou incompletude podem, afinal, ter origem num trauma”. Estas são palavras que retiramos da sinopse ao livro Quando Algo não Está Bem (edição Manuscrito), assinado por Márcia Inês Coelho. Na obra, a especialista em Trauma, Saúde Mental e Inteligência Emocional, mostra-nos, que não são apenas as grandes tragédias que nos afetam profundamente.

A autora propõe-nos uma viagem aos nossos pequenos traumas, feridas e buracos emocionais. Também nos orienta numa jornada de crescimento emocional. É intenção de Márcia Coelho que aprendamos a reconciliar-nos com a nossa vulnerabilidade e a resgatar a nossa força pessoal.

A Márcia Coelho é especialista em trauma, também é terapeuta e educadora emocional. Em concreto, que abordagens leva a quem a consulta?

Partindo do princípio de que o trauma não é apenas uma experiência psicológica, mas essencialmente fisiológica, o que significa que não acontece apenas na mente, mas também no corpo, uso uma abordagem chamada de “bottom-up”, trabalhando diretamente com o corpo e as suas sensações. Faço-o através de técnicas somáticas que ajudam a regular o sistema nervoso. Com elas, ao invés de partirmos de uma análise cognitiva ou racional do problema, o que seria uma abordagem “top-down”, ou da convencional terapia baseada na palavra, procuro ajudar a pessoa a sentir e a processar as emoções de uma forma mais integrada.

Quando ensinamos alguém, não apenas a pensar sobre o que sente, mas a sentir-se mais seguro com aquilo que sente, estamos também a ajudar o indivíduo a restaurar um senso de segurança interior e a recuperar a capacidade de se conectar, defender, posicionar e viver plenamente. Estas são habilidades tantas vezes limitadas por experiências traumáticas.

Logo a abrir o seu livro, reserva algumas linhas ao item: “o que vais encontrar neste livro”. O que encontramos no seu livro?

Este é um livro onde aprendemos a reconhecer que o trauma pode vir de pequenas experiências ou das ditas “infâncias normais”. Ao longo dos capítulos, explico o que acontece connosco quando vivemos feridas emocionais e como a nossa infância molda a forma como nos vemos e nos relacionamos com o mundo. Além da teoria, trago estratégias práticas e exercícios que nos ajudam não apenas a identificar a dor, mas também a regular emoções difíceis e a transformar a vulnerabilidade em força. Não se trata apenas de entender o que nos magoou, mas de descobrir novas formas de compormos o adulto que somos hoje, sem ignorarmos a nossa história.

Diz-nos a voz popular que “o tempo cura todas as feridas”. A Márcia contraria esta ideia no seu livro. Não é o tempo um bom remédio para as feridas que não se veem?

O tempo é, sem dúvida, um elemento essencial para o processamento das nossas feridas. De facto, precisamos de tempo e espaço para digerir experiências marcantes.

Mas a simples passagem dos dias, meses ou anos pode apenas fazer com que nos acostumemos com uma dor ou, pior, que a ignoremos. É a capacidade de nos envolvermos ativamente com uma experiência dolorosa e de darmos sentido às feridas que carregamos, que faz do tempo um bom remédio ou, pelo contrário, um veneno silencioso que apenas mantem uma dor longe da consciência.

O trauma não diz respeito apenas às características de um determinado acontecimento, mas à experiência emocional que esse evento nos gera.

O que se entende por trauma? Não é o trauma fruto de um evento particularmente marcante/terrível?

O trauma não diz respeito apenas às características de um determinado acontecimento, mas à experiência emocional que esse evento nos gera. Isso explica que um acidente de carro possa ser uma experiência com pouca importância para um indivíduo, mas, para outro, resultar em marcas emocionais mais profundas e limitantes.

Márcia Inês Coelho é terapeuta e educadora emocional. Teve uma infância dita “normal” e talvez por isso tenha aprendido a ignorar uma história cheia de pequenas feridas. Aos 18 anos, mudou-se sozinha para Itália. Regressou a casa não a saber quem era, mas quem não precisava de ser. Hoje, ensina pessoas e grupos a gerir as suas emoções, a acolher as suas feridas de infância e a reconstruir a autoestima. Especializou-se em Saúde Mental, Inteligência Emocional e Terapias de Terceira Geração e fez formações em Psicotraumatologia, Teoria Polivagal e Neurobiologia do Vínculo.

Assim sendo, qualquer experiência que exerça uma sobrecarga no nosso sistema nervoso – sendo precoce demais, intensa demais, rápida demais ou vivida em desamparo – é uma experiência potencialmente traumática.

Olhando para o trauma a partir desta leitura, podemos compreender que ele faz parte da vida de todos. Todos nós vivemos experiências que já nos fizeram sentir um medo paralisante; que nos sobrecarregaram; ou provocaram um forte sentimento de impotência ou desamparo. Acontece-nos a nós, às nossas famílias, amigos e conhecidos. Além disso, o trauma não é apenas o que nos acontece, mas também o que não acontece e deveria ter acontecido. Por exemplo, crescer num ambiente com pouca atenção, amparo ou orientação, pode deixar-nos uma marca tão profunda quanto uma experiência de agressão.

A que indícios devemos estar atentos que nos levam a suspeitar que sofremos um trauma? A Márcia elenca várias dimensões, como a física, emocional, mental…

Antes de tudo devemos descartar outros fatores relevantes. Os nossos sentimentos e comportamentos podem ser influenciados pelos nossos hábitos e estilo de vida, pela qualidade do nosso sono, pelo que ingerimos, pelo conteúdo e informação que consumos. Isto significa que alguns dos nossos sintomas físicos podem ser causados por fatores como deficiências nutricionais, exposição a substâncias prejudiciais ou condições genéticas.

Descartados esses fatores, devemos estar atentos a padrões fixados e reações desproporcionais no nosso quotidiano. Quando somos dominados por emoções intensas, sensações físicas descontroladas, pensamentos irracionais ou comportamentos desproporcionais em situações que não justificam essas reações, é possível que sejam ecos de traumas não resolvidos.

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A verdade é que podemos observar reflexos de feridas não processadas em diferentes dimensões da nossa vida, seja na forma como somos afetados pelas nossas emoções, seja no modo como nos vinculamos com os outros ou até connosco mesmos.

A título de exemplo, podemos perceber-nos com grandes flutuações emocionais, dissociados por longos períodos ou até com um espetro de emoções com muito pouca variabilidade. Por exemplo, estamos essencialmente mais apáticos ou constantemente com raiva.

Além disso, crenças adoecidas e pensamentos distorcidos, como a sensação de não merecer amor ou viver num mundo perigoso, são comuns em pessoas com trauma. Do ponto de vista comportamental, o perfeccionismo, autocríticas severas, autossabotagem ou isolamento, podem ser respostas automáticas a gatilhos do trauma. Por fim, não podemos ignorar que o corpo também pode mostrar os seus sinais, através de dores crónicas, problemas digestivos ou tensão muscular constantes, que estão muitas vezes desconectados de uma situação particular e que podem indicar um sistema nervoso desequilibrado devido ao trauma.

Quando somos dominados por emoções intensas, sensações físicas descontroladas, pensamentos irracionais em situações que não justificam, é possível que sejam ecos de traumas não resolvidos.

Há perfis de personalidades mais atreitos a fazerem de um evento negativo um trauma futuro?

Não diria que existem perfis de personalidade mas, talvez, perfis de vulnerabilidade, ou seja, grupos e contextos que aumentam a probabilidade de uma pessoa ser afetada por um evento negativo de maneira profunda e duradoura.

Um exemplo claro disso são as crianças. Quanto mais cedo ocorre uma experiência adversa, maior a chance de ela deixar marcas profundas.

Além disso, pessoas que fazem parte de minorias sociais, culturais ou étnicas, ou que vivem em contextos de menor suporte social e comunitário, também têm um perfil de maior vulnerabilidade. Isso porque enfrentam não apenas o estigma e a discriminação, mas também têm menos recursos para lidar com as adversidades.

Outro fator de vulnerabilidade é o histórico de traumas transgeracionais. Quando uma pessoa cresce num ambiente onde os traumas não foram processados e continuam a ser passados de geração em geração, está mais propensa a internalizar esses padrões e a reagir de maneira disfuncional a eventos adversos.

Por fim, pessoas que vivem em contextos onde a sobrevivência diária é a principal prioridade, como em ambientes de grande vulnerabilidade económica ou situações de violência constante, estão com o seu sistema nervoso sobrecarregado. Nessas situações, o cérebro e o corpo permanecem num estado de alerta constante, conhecido como "modo de sobrevivência", o que pode prejudicar a capacidade de a pessoa lidar com eventos negativos de maneira saudável.

Porque tendemos a normalizar e aligeirar sofrimentos passados? Para não os termos de enfrentar mais tarde? Porque consideramos que pequenos eventos traumáticos não nos irão afetar?

Muitas vezes o que dificulta o processamento das nossas dores mais antigas, é o facto de vivermos numa sociedade que nos ensina a mascarar o sofrimento. Essa é a mesma sociedade que normaliza vivermos sobrecarregados, premiando o multitasking ou glorificando a ideia de que é sinal de força “darmos conta de tudo sozinhos”. Se sabemos que trauma é, por definição, uma experiência de sobrecarga do nosso sistema nervoso, precisamos admitir que vivemos num mundo que é uma “fábrica de traumatização”.

A normalização do sofrimento e da sobrecarga, como se fossem parte do "preço" a pagar por uma vida bem-sucedida, faz com que muitas pessoas internalizem a ideia de que as suas experiências emocionais não são suficientemente significativas para serem tratadas com a atenção devida. Além disso, o estigma em torno da vulnerabilidade dificulta que as pessoas se sintam à vontade para reconhecer as suas dores e pedir ajuda. Por fim, claro, não damos a devida atenção às nossas feridas, por medo de entrar em contacto com a própria dor ou simplesmente por não sabermos como lidar com elas.

quando algo não está bem
quando algo não está bem créditos: Manuscrito

Pode um trauma passado ser “apagado” da nossa memória?

Na verdade, podemos não ter memórias conscientes de um trauma por duas razões principais. A primeira é que o cérebro, como mecanismo de defesa, pode bloquear ou fragmentar essas memórias para proteger-nos do sofrimento intenso que elas causam. A segunda razão é que, se o trauma ocorreu numa idade muito precoce, antes de termos a linguagem verbal completamente desenvolvida, as memórias podem não ter sido organizadas de forma clara através de palavras ou narrativas cronologicamente coerentes. Contudo, apesar de a mente poder esquecer um trauma, o corpo não esquece. O trauma fica guardado na chamada “memória implícita”, que não se expressa através de palavras, mas sim por meio de sensações físicas, emoções e reações automáticas. Isso significa que, mesmo sem recordarmos conscientemente um determinado evento traumático, o facto de o nosso corpo reagir a certos gatilhos com um aumento na frequência cardíaca, tensão muscular ou uma sensação profunda de medo, isso ainda é uma forma de memória.

Muitas vezes o que dificulta o processamento das nossas dores mais antigas, é o facto de vivermos numa sociedade que nos ensina a mascarar o sofrimento.

Leva para o seu livro alguns perfis de pais com efeito pernicioso no desenvolvimento dos filhos, gatilhos para eventuais traumas futuros. Há algum perfil de pai/mãe que considere particularmente nocivo?

Sim, no livro falo de vários perfis de pais que, com ou sem intenção, podem criar ambientes nocivos para o desenvolvimento emocional das crianças. É importante perceber que “nocivo” não significa apenas um contexto de violência, mas também ambientes de negligência, impermanência ou até de indiferença.

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Quando uma criança não se sente vista, ouvida ou valorizada, mesmo que não seja agredida fisicamente, pode crescer com uma sensação de desamparo. Isso pode acontecer em contextos em que os pais estão ausentes emocionalmente, mesmo que fisicamente presentes.

Se uma criança vive num ambiente onde o amor ou a atenção parecem estar sempre a desaparecer, onde as promessas dos pais não são cumpridas ou onde a estabilidade emocional é constantemente abalada, isso pode criar uma sensação de insegurança profunda.

Para além disso, quando crescemos em ambientes onde as nossas dificuldades, emoções ou frustrações não importam, podemos sentir-nos profundamente abandonados.

É fundamental entender que, ao falar sobre esses impactos, não estamos a culpar os pais. Muitas vezes, os pais agem assim porque também estão a lidar com as suas próprias feridas. O objetivo aqui não é criar mais culpa, mas sim ajudar a perceber que a qualidade do vínculo entre pais e filhos é vital para o desenvolvimento emocional saudável e que, muitas vezes, as crianças são deixadas a lidar sozinhas com as suas próprias experiências porque os pais não sabem como fazer o contrário, ou porque não receberam o apoio necessário para isso. O mais importante é compreender que todos podemos, enquanto pais ou cuidadores, aprender e crescer, procurando apoio para cuidar das nossas próprias feridas e, assim, proporcionar ambientes mais seguros e acolhedores para os nossos filhos.

O capítulo cinco do seu livro é dedicado ao “lado bom do trauma”. Há um lado bom?

Sem dúvida que sim. O trauma, por si só, não é o vilão. O grande problema não é o trauma acontecer, mas permanecermos presos nele, deixando que as suas marcas moldem a nossa vida de maneira contínua e prejudicial. O que encontramos no "lado bom" do trauma é a possibilidade de transformação. Quando somos capazes de ter uma experiência segura de revisitar e digerir o que não foi processado, podemos integrar partes nossas que estavam esquecidas ou reprimidas no passado e sentir-nos realmente mais inteiros como indivíduos. Ao reconstruirmos a nossa vida não apenas apesar das nossas feridas, mas através delas, podemos descobrir uma nova força, resiliência e até uma forma mais profunda de viver. O trauma guarda em si, as duas faces de uma mesma moeda: a dor e o dom. Quando encontramos novos recursos (novos ambientes ou suporte) que nos permitem processar esse sofrimento, descobrirmos novos lugares de força interior, que não só nos permitem superar a dor, mas também encontrar um novo propósito, clareza e sentido na vida.

Também nos fala em agressividade saudável. Coadjuva esta no combate ao trauma?

Sim, a agressividade saudável tem um papel muito importante no processo de recuperação do trauma. Embora muitas vezes associemos a agressividade à violência, ela também é uma forma de energia vital que pode ser canalizada de maneira construtiva para nos ajudar a restabelecer a nossa força interior.

Quando estamos traumatizados, somos frequentemente sequestrados por sentimentos de impotência, falta de controlo ou desamparo, o que pode deixar-nos profundamente vulneráveis. A agressividade saudável ajuda-nos a recuperar a nossa autonomia, sendo essencial para defendermos os nossos limites, protegermos a nossa integridade, cuidarmos de nós mesmos e reconstruirmos a nossa capacidade de lidar com as adversidades da vida. Quando podemos sentir a força dos nossos músculos ou a energia do calor no nosso corpo, por exemplo, estamos em contacto direto com a nossa vitalidade e capacidade de ação. Esses sinais são a expressão da nossa agressividade saudável que, quando experienciada de forma consciente, não só nos permite lidar melhor com as situações desafiadoras, como também nos dá a confiança para enfrentar os traumas do passado com maior capacidade.

O livro que a Márcia nos apresenta tem uma componente prática, com exercícios para combatermos o trauma. Quer, neste contexto, destacar os porquês destes exercícios e como os organizou?

No final de todos os capítulos proponho um conjunto de perguntas de reflexão que vão ajudando o leitor a conectar os exemplos e conteúdos do livro à sua própria realidade e história de vida. Os exercícios práticos que proponho têm a intenção de ir ajudando o leitor a encontrar respostas e recursos para três perguntas essenciais: Como regular emoções difíceis? Como lidar com as nossas partes feridas? Como restaurar a nossa integridade?

Alguns desses exercícios são recursos para nos ajudarem a sentirmo-nos melhor, mas a grande maioria, são um grande convite para nos tornarmos melhores a sentir. Isto, lembrando que quanto maior for a nossa capacidade para sentirmos as nossas emoções em segurança, maior será a nossa capacidade para processarmos e integrarmos os nossos traumas.