"Perante a importância do contexto escolar para o desenvolvimento infantil, urge que qualquer decisão a este respeito possa estar suportada em recomendações técnico-científicas e não em medidas avulsas, de quem pouco ou nada sabe sobre crianças, e com potencial prejuízo para estas", alerta Mauro Paulino, psicólogo clínico e coordenador da Mind - Instituto de Psicologia Clínica e Forense.

Em Portugal, aguarda-se a reabertura das creches e jardins de infância, no dia 18 de maio, bem como a abertura dos centros de atividades e pré-escolar no dia 1 de junho. Segundo o Artigo 13.º B, o uso de máscaras ou viseiras é obrigatório para o acesso ou permanência nos estabelecimentos de ensino e creches pelos funcionários docentes e não docentes e pelos alunos maiores de seis anos.

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No que diz respeito a estabelecimentos comerciais e serviços públicos (por exemplo, supermercados, cabeleireiros, transportes públicos), o uso de máscara é obrigatório para todos os adultos, sendo a lei omissa relativamente a crianças com idade inferior a seis anos. Esta refere apenas que o uso de máscaras ou viseiras é obrigatório pelos alunos maiores de seis anos, nos estabelecimentos de ensino.

Ainda assim, segundo a Academia Americana de Pediatria, crianças com uma idade inferior aos dois anos não devem usar máscara, pois as vias respiratórias encontrarem-se em desenvolvimento e, por isso, o risco de sufoco é elevado. A psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva adverte que das pesquisas realizadas "a criança até pode ficar mais exposta ao vírus", uma vez que o uso da máscara pode "causar impressão" e a criança "estar constantemente a mexer no resto sem lavar as mãos".

O que estão a fazer os outros países?

Em Espanha, o governo espanhol recomenda, sem carácter obrigatório, o uso de máscara para todas as crianças. Com medidas tendencialmente diferentes destacam-se França e Itália. Em França, as creches abriram portas no dia 11 de maio e nas escolas, por exemplo, as mesas encontram-se a uma distância de segurança que permite que as máscaras não sejam usadas durante as aulas, mas somente no recreio.

Em Itália, a reabertura das creches e jardins de infância não exige que as crianças usem máscara, mas apenas os profissionais. Perspetiva-se a retoma de funções nessas unidades no mês de junho, com recurso a grupos de três a seis crianças, até aos seis anos de idade, cuja temperatura é controlada, diariamente, aquando da chegada à instituição.

Assim, "no que diz respeito às creches e jardins de infância portugueses, por oposição ao que aconteceu com as escolas, parecem não ter existido diretrizes ou recomendações acerca do tempo de encerramento", assinala Sofia Gabriel, psicóloga júnior na Mind - Instituto de Psicologia Clínica e Forense.

Em parte, parece que o pré-escolar foi desvalorizado, como se se tratasse de uma dimensão menos importante que os restantes ciclos. "Enquanto que algumas instituições mantiveram contactos diários ou semanais com as crianças, por sua iniciativa, outras não estabeleceram qualquer tipo de contacto entre as crianças e respetivas educadoras", diz Filipa Jardim da Silva.

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Muitas perguntas, poucas respostas

Face ao exposto, o psicólogo Mauro Paulino coloca uma série de perguntas, nomeadamente "qual o impacto do desaparecimento de um adulto de referência durante um período de tempo como dois meses? Se as crianças não foram privadas do contacto virtual com os avós, por exemplo, porquê privá-las do contacto com aqueles que os cuidam diariamente e que se tinham vindo a tornar, consecutivamente, figuras de segurança e cuidado nas suas vidas? E se no caso dos profissionais de saúde felizmente múltiplas equipas e profissionais de saúde mental se disponibilizaram a dar suporte psicológico, que recursos e apoios estão a receber os profissionais das creches e jardins de infância, no sentido de gerirem da melhor forma possível as suas próprias emoções, promovendo uma corregulação positiva junto das crianças com quem voltarão a estar, brevemente? E que recomendações pedagógicas, materiais e atividades estão a ser desenvolvidos para apoiar os mais pequenos a lidar com todas estas mudanças? Cada instituição ficará por sua conta sem diretrizes comuns?".

Para este trio de psicólogos que refletiu e pesquisou sobre este tema, o regresso à instituição, até então considerado um espaço seguro e familiar pela criança, levanta também inúmeras dúvidas. "Por exemplo, qual o impacto de encontrar as educadoras de máscara e luvas, sobretudo depois de um período de tempo alargado com os pais? Apesar da capacidade de adaptação das crianças a inúmeras circunstâncias adversas, desde a uma dinâmica familiar imprevisível ou à ausência de afetos, inevitavelmente, existem consequências. Quais os riscos associados a um ambiente sem rostos, especialmente numa fase de tantas mudanças? É imprescindível refletir acerca do impacto deste ambiente nas competências de interação social, de regulação das emoções e de manutenção de uma relação de vinculação com estas figuras cuidadoras", afirma Mauro Paulino.

A título de exemplo do impacto deste ambiente, é a habitual procura das crianças por pistas nas expressões faciais dos outros, no sentido de interpretar as mensagens e avaliar a perceção de perigo. Estas confiam que através da expressão facial e do tom de voz é seguro ajustar a sua resposta às pessoas e situações.

Se os educadores se encontram com máscara e viseira, como é que esta competência de referenciação social e ajustamento comportamental pode ser desenvolvida? A questão leva Mauro Paulino a frisar que é importante reforçar que, segundo especialistas médicos, a estratégia de usar meramente a viseira não é possível, ainda que potencialmente mais confortável para as crianças, pois era permitida uma maior visão do rosto da educadora. Outro exemplo é o recurso às luvas, o qual retira, em parte, a riqueza do toque físico, do colo e do aconchego.

Quanto aos centros de atividades e tempos livres, vulgo ATLs, as medidas de proteção e segurança também integram custos, em particular para a socialização, na medida em que alguns dos fatores facilitadores das relações sociais durante a infância se encontram em risco.

As barreiras à socialização

Um dos fatores subjacentes ao desenvolvimento de relações na infância é a expressão da abertura interpessoal, no sentido da disponibilidade para estabelecer uma relação. A máscara acresce dificuldade na gestão de potenciais conflitos, dadas as dificuldades na comunicação e na identificação de pistas na expressão facial do outro, as quais dificultam a empatia e resposta às emoções do outro. "Para crianças com dificuldades na interação social, as máscaras podem desencadear inseguranças adicionais, como o medo de ser ridicularizado ou sentir-se intimidado pelo acesso limitado à expressão facial do outro. Por não conseguir ler os sinais do outro, as dificuldades de comunicação e interação podem acentuar-se", acautela Sofia Gabriel.    

É igualmente importante refletir que as crianças em idade pré-escolar ou que se encontram na escola primária tendem a observar os rostos com alguma proximidade e atenção, no sentido de aprender novas palavras e associar as emoções às expressões faciais. Mais uma vez, com os rostos parcialmente cobertos, podem existir prováveis repercussões na aprendizagem, alertam os psicólogos.

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Fuga para as tecnologias

A diversão é outro elemento que facilita o desenvolvimento e a manutenção das relações, a qual pode ser dificultada pelas medidas de segurança, como a distância e evitamento do toque, facilitando o potencial isolamento das crianças e recurso às tecnologias como forma de distração.

Se por um lado, poderão existir crianças com medo da interação, sem esquecer o risco de partilha de ideias erróneas, fantasiosas e assustadoras acerca do vírus, outras crianças podem desvalorizar as recomendações dos educadores e recorrer, como é compreensível em qualquer criança, ao toque e proximidade física para expressar afeto, principalmente após uma fase de distanciamento dos “melhores amigos”. De igual forma, a expressão de sofrimento e dificuldade de adaptação será diferente de criança para criança, mas é importante que os educadores e os pais tenham acesso a informação clara sobre indicadores comportamentais a que devem estar atentos, referem os especialistas.

Falta de meios tecnológicos nos ATLs para assistir às aulas

A reabertura das escolas é indefinida, apesar dos centros de atividades e tempos livres estarem disponíveis em breve. Para os pais que vão trabalhar e, na impossibilidade de deixar as crianças com os avós, por serem população de risco, o ATL pode ser o único recurso. Porém, "nem todos os centros de atividades dispõem de meios tecnológicos (por exemplo, televisões, computadores) para que todas as crianças, de várias faixas etárias e anos escolares, assistam às respetivas aulas escolares transmitidas pela telescola", partilha Sofia Gabriel.

Tome-se como exemplo um ATL que integra crianças do primeiro ao quarto ano de escolaridade, em que se torna impossível, na maioria das vezes, que cada uma destas crianças assista às aulas que lhe pertencem. Por acréscimo, os responsáveis pelos centros ATL tendem a ser auxiliares de educação ou animadores socioculturais e não um professor. Desta forma, para algumas crianças, o único recurso disponível é incompatível com a exigência de assistir às aulas, colocando em risco a sua aprendizagem.

"Em suma, independentemente das decisões tomadas, é importante que existam reflexões que englobem o saber de diversas ciências", diz Filipa Jardim da Silva.

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Stress e efeitos psicológicos

A prevenção da transmissão do vírus COVID-19 é prioritária. Porém, a prevenção do desenvolvimento de potenciais défices psicológicos nesta geração de crianças não pode ser negligenciada.

"As medidas não devem apenas focar a importância destes profissionais de educação seguirem um conjunto de diretrizes de proteção. Importa não esquecer o impacto concreto e descrito que o cortisol tem nos cérebros das crianças mais novas. O cortisol, considerada a hormona do stress, quando predominante no cérebro da criança dificulta o seu desenvolvimento cognitivo e emocional", complementa Mauro Paulino.

Desta forma, deve priorizar-se a saúde física, mas também preservar e promover a saúde mental bem como o bom desenvolvimento infantil, dizem os especialistas. 

No contexto pandémico atual, os pais têm também um papel fundamental. "É importante que estes transmitam segurança, enquanto figuras de proteção e estabilidade – o porto seguro dos seus descendentes", frisa o trio de especialistas.

Um ambiente de silêncio e secretismo é propício ao desenvolvimento de medos e fantasias acerca do vírus e da morte. É fundamental explicar, com linguagem adequada à idade e nível de desenvolvimento cognitivo da criança, a importância do distanciamento social e do uso da máscara.

Eis algumas sugestões para atenuar a ansiedade das crianças:

  1. Usar também a máscara, para a criança não se sentir sozinha ou estranha;
  2. Mostrar fotografias de outras crianças com máscaras;
  3. Personalizar a máscara;
  4. Colocar a máscara no peluche favorito ou desenhá-la na personagem favorita da criança;
  5. Praticar o uso da máscara em casa.

O artigo teve as contribuições dos especialistas:

- Mauro Paulino – Psicólogo Clínico e Forense, Coordenador da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense

- Filipa Jardim da Silva – Psicóloga Clínica, Fundadora e Diretora Clínica do Projeto Filipa Jardim da Silva – Psicologia Clínica, Coaching e Formação

- Sofia Gabriel – Psicóloga Júnior na Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense, Mestre em Psicologia Clínica Cognitiva-Comportamental e Integrativa pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa