
Há quem descreva o fim de uma relação como uma dor física, real, que paralisa. A ciência confirma: há semelhanças entre a paixão e a adição a drogas, e sintomas de abstinência emocional que colocam à prova corpo e mente. No livro Virar a Página – Como lidar com o fim de uma relação (edição PACTOR), Mauro Paulino e Sofia Gabriel, psicólogos clínicos na Mind, Instituto de Psicologia Clínica e Forense, exploram os efeitos psicológicos da perda amorosa, desconstroem mitos e propõem um percurso de autoconhecimento. A partir da teoria da vinculação, da escrita terapêutica e de estratégias práticas, os autores ajudam a transformar o luto em crescimento. Mote para uma conversa sobre dor, superação e reencontro consigo mesmo.
No livro sublinham que “existem provas de que o amor e as drogas possuem mais em comum do que aquilo que pensávamos”. Há adição numa relação amorosa e, também, dores de abstinência?
Mauro Paulino: Sim, existem vários trabalhos que têm vindo a demonstrar que existe muito em comum entre o amor e as drogas, exatamente pela semelhança com os mecanismos psicológicos da adição. Tome-se como exemplo uma investigação que demonstrou que são exatamente as mesmas áreas do cérebro que são ativadas quando uma pessoa apaixonada vê uma fotografia da sua respetiva pessoa amada e, paralelamente, quando uma pessoa viciada em drogas quando pensa em comprar uma dose e no consequente prazer de a consumir. E, por isso, existem as dores de abstinência.
Há também exemplos claros destas semelhanças. Por exemplo, aquando da perda de uma relação, tende a existir um foco excessivo e obsessivo na pessoa que nos partiu o coração, acompanhado por um enorme desejo de estar com ela. No caso da droga, a pessoa pensa descontroladamente no prazer potenciado pela mesma, acompanhado pelo desejo de consumir. Existem ainda outros exemplos que são documentados, como dificuldades de atenção e concentração, inquietação, batimento cardíaco acelerado, suores, tremores, dificuldades em dormir, perda do apetite e da energia, baixa tolerância à frustração, vontade recorrente de chorar e gritar e sinais de um coração partido, mas que estão presentes no dia-a-dia de uma pessoa adita em abstinência.

Na introdução ao vosso livro referem que “a perda de uma relação amorosa, à semelhança a uma perda por morte, exige um processo de luto”. Mas acrescentam que se trata de uma perda “distinta de todas as outras”. O que a torna singular?
Sofia Gabriel: Na perda de uma relação amorosa, a pessoa perdida continua viva e com a capacidade de causar dano. Por vezes, a pessoa encontra-se “mais viva do que nunca”, a construir a sua vida ao lado da “outra pessoa” – o que se associa à noção de ter sido preterido, havendo supostamente alguém melhor e se constitui como uma imagem destrutiva e violenta para a pessoa em luto, que não só se encontra a sofrer, como a quem ainda lhe é exigido assistir ao bem-estar do outro e a cumprir vários dos planos feitos a dois no passado. É, por isso, uma perda que envolve o luto do passado, do presente e do futuro. O luto pela perda das dinâmicas do presente, como as rotinas do dia a dia do casal; o luto pelo futuro que não foi vivido, o qual envolve todos os planos que não foram realizados; e o luto do passado, que acontece particularmente quando existe um término potenciado por uma traição em que a pessoa se questiona sobre a veracidade dos momentos vivenciados a dois ao longo de toda a relação. É um processo de luto muito desafiante, em que as experiências familiares e íntimas anteriores também terão um papel a dizer.
Existem provas de que o amor e as drogas possuem mais em comum do que aquilo que pensávamos.
Propõem uma jornada de autoconhecimento com a leitura deste livro. Um caminho que traçam em sete capítulos. De que formam levam o leitor desde o início da jornada até ao momento em que, de facto, “virar a página”?
Mauro Paulino: Começamos por responder à questão “Porque dói tanto ter um coração partido?” que exige que o leitor compreenda o impacto das suas primeiras relações, com os seus adultos de referência, nas relações construídas na vida adulta. De seguida, ao abordar o tema da infidelidade, para a libertação dos sentimentos de culpa e pensamentos como “eu não fui suficiente” é exigida uma reflexão sobre a autoestima e a identidade da pessoa em luto. Ou seja, imediatamente nos primeiros capítulos são permitidos momentos de introspeção e de autoconhecimento e esses prolongam-se até aos últimos capítulos. Por exemplo, no capítulo “O Amor é uma Droga”,abordamos a problemática dos nossos padrões nos relacionamentos, isto é, que tipo de parceiros tendemos a procurar e também que tipo de companheiro tendemos a ser. Será que tendo a procurar parceiros emocionalmente indisponíveis, ou seja, que não estão disponíveis emocionalmente para um relacionamento saudável? E será que eu, nas minhas relações, tendo a adotar uma postura de cuidador do outro e a desvalorizar as minhas necessidades individuais?
No capítulo seguinte, dialogamos sobre o que a Psicologia denomina por Crescimento Pós-Traumático, em que, após a vivência de uma experiência traumática, existe a reconstrução da nossa identidade, enquanto pessoas, através de todas as aprendizagens da experiência negativa, em que nos perguntamos: quem eu era antes desta relação? quem eu fui durante a relação? E, mais importante, quem é que eu quero ser agora?
Em vosso entender a sociedade subvaloriza a perda amorosa? Porquê?
Sofia Gabriel: Na nossa sociedade predomina uma conspiração do silêncio relativamente à morte, isto é, uma tendência da sociedade para silenciar a dor das pessoas em luto e para desvalorizar o seu processo de luto. No caso da perda de uma relação, em que não existe uma morte, há ainda uma maior desvalorização do sofrimento e uma maior pressão social para “seguir em frente”, não respeitando o tempo e o espaço da pessoa em luto. São comuns frases-feitas como “era só uma relação”, “ainda és jovem” ou “vais encontrar outra pessoa” que alimentam o estigma social perante este luto, como se de um círculo vicioso se tratasse.
Por acréscimo, predomina também uma tendência para associar a imagem e expressão “coração partido” à adolescência, o que, mais uma vez, facilita a subvalorização deste processo, pois “isso passa, o tempo cura tudo”, que é outro mito. Na nossa prática clínica, uma das principais partilhas das pessoas que pedem ajuda é o quanto se sentiram sozinhas nas suas perdas, dada a tendência da família e amigos para se afastarem, pela frustração e cansaço de não ver a pessoa a “virar a página”, exatamente por sentirem que seria simples.
A idealização da pessoa perdida é uma das estratégias mais perigosas num desgosto amoroso.
Não obstante, a mesma sociedade cultiva a imagem do “coração partido”. Há provas científicas que corroborem uma dor física e emocional capaz de suportar a chamada “síndrome do coração partido”?
Mauro Paulino: Sim, existem. Em primeiro, esclarecer que o que tem vindo a ser chamado de “síndrome do coração partido” diz respeito a uma condição temporária, que dura cerca de duas a quatro semanas e que afeta a capacidade de o coração bombear sangue de forma eficaz, adequada, sem alterações. Esta é desencadeada por um evento de elevada carga emocional negativa, como é exemplo a perda de uma relação amorosa, mas também pode estar presente em processos de luto por morte de um companheiro, com o qual foi partilhada uma vida ou idealizado um futuro.
Há ainda um estudo em que foi solicitado a pessoas que tinham vivido recentemente a perda de uma relação amorosa que observassem fotografias de quem lhes tinha partido o coração. Paralelamente, com o objetivo de ver as diferenças no cérebro entre a experiência de dor psicológica e física, os voluntários foram submetidos a momentos desta última dor mencionada. Os resultados deste estudo revelaram que, quando se pensa na dor emocional da perda, as áreas do cérebro associadas à dor psicológica são exatamente as mesmas que são ativadas em momentos de dor física.
Gostaria de voltar ao “luto”. Num tempo agitado pelo imediato, de relações rápidas, instigadas pelas redes sociais e pelo olhar severo de quem nos empurra para novos encontros e novas relações, há tempo para fazermos o “luto” de uma relação finda?
Sofia Gabriel: Esse tempo existe. Por vezes, o que falha é a pessoa não respeitar o seu tempo e espaço para estar em luto, exatamente devido a essa pressão social, seja das pessoas mais próximas ou das redes sociais. Daí a importância da terapia: falamos de um espaço seguro e totalmente ausente de julgamento ou crítica onde a pessoa em luto, com a ajuda do psicólogo, explora a sua potencial disponibilidade emocional para novos encontros e relações. No nosso livro explicamos, exatamente, como o medo de ficar sozinho tende a ser alimentado pelas redes sociais, particularmente pelas aplicações de encontros, onde cresce ainda mais a pressão porque estamos a falar de encontrar uma relação numa plataforma na qual se admite a existência frequente de perfis pertencentes a pessoas feridas emocionalmente, que tentam lidar com os seus lutos.
Trazem para o vosso livro a Teoria da Vinculação. De que forma se liga esta ao tema em apreço na obra que agora nos oferecem?
Sofia Gabriel: As nossas relações na vida adulta, particularmente as românticas, são influenciadas pelas nossas primeiras relações, as de vinculação com as nossas figuras de referência como os nossos pais ou outros cuidadores. Não raras vezes, a própria relação dos nossos pais funciona como um modelo de referência, o qual tendemos a perpetuar na nossa vida adulta. Daí que, infelizmente, crianças que estiveram expostas a relações violentas na infância apresentem um risco superior de construir relações disfuncionais na vida adulta. O estilo de vinculação de cada um de nós também impacta o nosso processo de luto. A título de exemplo, pessoas com um estilo de vinculação ansioso tendem a experienciar um luto com níveis superiores de sofrimento devido ao predomínio de pensamentos constantes sobre o relacionamento e tentativas de procurar o ex-companheiro e reatar o relacionamento à força, com frequência, graças ao medo de ficar sozinho que está inerente a este estilo de vinculação.
A sociedade espera que sigamos em frente, mas não respeita o tempo do luto.
Podemos ver na infidelidade algo de positivo no crescimento da pessoa traída?
Mauro Paulino: Sim, existe uma possibilidade elevadíssima de crescimento após o fim de uma relação motivado por uma traição. Sabemos que, quando existe uma infidelidade, há uma tendência para a pessoa se responsabilizar, os mencionados pensamentos como “a culpa é minha” ou “eu não sou suficiente”, que vulnerabilizam totalmente a autoestima. E é exatamente a recuperação da autoestima e do bem-estar psicológico, através da libertação da culpa, de sentimentos de falha, de um discurso interno negativo que existe o empoderamento do ser humano e o consequente crescimento. Todo este processo de empoderamento exige uma profunda reflexão de quem fomos naquela relação, do que aprendemos com os sentimentos provocados pela traição e quem pretendo ser, como pessoa e como companheiro, no futuro.
Escrevem que “estudos demonstram que o sexo masculino apresenta um risco mais elevado de cometer uma infidelidade sexual, enquanto a infidelidade emocional é mais prevalente no sexo feminino”. Porquê?
Sofia Gabriel: A Psicologia das Relações explica-nos que os homens apresentam níveis mais elevados de sociosexualidade, isto é, um maior nível de aceitação e de conforto relativos a comportamentos sexuais fora da relação de compromisso em que estão envolvidos. Daí que, segundo a ciência psicológica, o género masculino seja aquele que tende a cometer mais traições e que revela mais fúria e vergonha do que tristeza perante uma traição sexual. Em parte, isso é também explicado pela maior liberdade que sempre foi reconhecida aos homens para se dedicarem e gabarem socialmente de conquistas e traições, assim como pela pressão para reprimirem as lágrimas aquando de uma traição, pois “os homens não choram”. Ou seja, enquanto os homens apresentam uma maior atração pela esfera da sexualidade, as mulheres tendem a privilegiar a esfera da emocionalidade, do companheirismo e do afeto, em detrimento do sexo, embora também o valorizem.
Em vosso entender qual é a pior estratégia que podemos adotar face a um desgosto amoroso/separação?
Mauro Paulino: A idealização da pessoa perdida, ou seja, focar somente nas características positivas da pessoa e, por sua vez, da relação e ignorar totalmente características negativas da pessoa perdida, incompatibilidades, fragilidades no relacionamento, momentos de mal-estar e desgaste emocional, como se tudo tivesse sido perfeito. Até porque esta estratégia tende a alimentar sentimentos de culpa e os mencionados pensamentos como “eu não sou suficiente”, daí ser tão perigosa para o processo de virar a página.
Para colmatar esta tendência, existem estratégias importantes. Por exemplo, construir uma linha cronológica da relação com todos os momentos negativos, tais como episódios de discussão, em que a pessoa não se sentiu valorizada ou feliz; ou desenvolver uma lista de todas as características negativas do ex-parceiro e/ou incompatibilidades em termos de relação.
No processo de cura do “coração partido” referem que é necessário estar em contacto com a dor. Não estaremos com isto a acrescentar mais dor?
Sofia Gabriel: O contacto com a dor é fundamental para seguir em frente. Naturalmente que não podemos estar constantemente em contacto com a dor, assim como não podemos fugir do sofrimento ou tentar evitar o contacto com o mesmo. Fugir da dor faz apenas com que esta ocupe um espaço cada vez maior, que nos persiga; ou que ganhe outras formas que nos continuarão a atormentar (por exemplo, consumo de álcool ou drogas). Desta forma, um luto saudável exige uma oscilação entre duas esferas: “estar em contacto com a dor” e “seguir em frente”. Ou seja, entre chorar em momentos de mal-estar, em que a pessoa necessita de libertar emoções e momentos em que está com a rede social, a divertir-se e a construir novas rotinas e dinâmicas para preencher o vazio deixado pela perda. E existem ferramentas que permitem que o contacto com a dor seja produtivo, como é o caso da escrita terapêutica. Esta é uma ferramenta que permite um contacto com a dor altamente benéfico e saudável, pois facilita a libertação emocional e a organização dos pensamentos sobre o processo de luto. Tome-se como exemplo escrever uma carta de despedida; uma carta a exigir um pedido de desculpas; a construção de um diário em que a pessoa escreve pensamentos, medos e preocupações; a escrita de uma lista sobre os motivos do término da relação ou sobre as fragilidades do relacionamento, para, como mencionado, recorrer nos momentos de idealização da pessoa ou da relação perdida.
Em que momento devemos considerar recorrer à ajuda da psicologia como apoio aquando de uma separação/desgosto amoroso?
Mauro Paulino: Existem sinais que apontam para a necessidade imperativa de ajuda psicológica, como a incapacidade em manter uma rotina ou terminar uma tarefa, devido à intensidade do sofrimento; a perceção da vida como vazia e/ou sem sentido; o predomínio de uma sensação de instabilidade emocional e consequente choro fácil, ou, por oposição, de uma incapacidade em chorar associada a uma sensação permanente de anestesia emocional; e, naturalmente, a presença de ideação suicida (pensamentos sobre a morte e potenciais planos suicidas) e/ou de outros comportamentos autodestrutivos, como o consumo de álcool e drogas, compulsão alimentar e outro tipo de comportamentos autolesivos, como a automutilação. Acrescentaria ainda a presença de sentimentos de amargura e ressentimento com a perda e perante a vida, de “mãos dadas” com uma visão do futuro pessimista e desesperançosa; assim como o predomínio de sentimentos de culpa e autorresponsabilização pela perda, tendencialmente associados a sentimentos de raiva e a uma consequente vontade de vingança da outra pessoa por seguir em frente ou por terminar a relação.
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