Diante da complexidade do flagelo da violência doméstica, é de extrema importância entender que a mesma acarreta responsabilidade civil, que visa restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano, numa perspetiva de restabelecimento da harmonia e equilíbrio violados, desde que se extraia um nexo de causalidade entre os factos criminosos ocorridos e o dano sofrido.

Mas o que é afinal o dano?

Sabendo de antemão que o prejuízo patrimonial é o que normalmente paira na conceção do cidadão em geral enquanto dano, é precisamente este que é mais comumente apreciado judicialmente porque mais facilmente identificável e quantificável. O dano patrimonial reporta-se a todos os prejuízos que a vítima sofreu, que têm uma representação monetária, e que podem reconduzir-se a salários que a vítima deixou de auferir e quantias pela mesma despendidas por causa da situação de violência vivenciada.

A par dos danos patrimoniais, existem também os danos morais, que são os que atingem a vítima enquanto pessoa e que acarretam para a mesma dor, sofrimento, tristeza e humilhação.

Sucede que, os danos morais sofridos na sequência de agressões físicas são identificados quando detetáveis no corpo da vítima, seja pela própria, por terceiros, pelas forças de segurança e/ou mediante o exame médico-legal efetuado no âmbito do processo-penal decorrente da denúncia de factos que são suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica. Sabe-se também que as agressões físicas são as que podem provocar as lesões físicas, sejam escoriações, hematomas, feridas expostas e cicatrizes, e que são estas que provocando um dano visível. Pelo que, as lesões físicas são as que quase maioritariamente são valoradas pelos tribunais, precisamente porque visíveis e, nessa medida, os exames-legais atêm-se às mesmas determinando a extensão da lesão, os dias de doença e eventual incapacidade para o trabalho.

Contudo, os danos morais comportam também os danos psicológicos, correspondentes à dor emocional, tristeza, humilhação, medo, designadamente de morte, entre muitos outros, que escapam quase sempre ao olhar da Justiça Portuguesa.

Desde logo, importa ter presente que estes são os danos que não se veem e, como tal, ou a vítima os exterioriza, o que é difícil, ou então apenas as pessoas que fazem parte do seu núcleo de relações próximas, quando as há, poderão verbalizar alguns destes danos, mas nunca todos. Situamo-nos num campo em que para determinar a extensão dos danos morais, a nível psicológico, torna-se necessário que a identificação dos mesmos, a sua extensão e perdurabilidade tem necessariamente de ser levada a cabo por um profissional.

Sucede que, quando a vítima já em acompanhada em psicologia e/ou psiquiatria podem estes profissionais fazer chegar aos autos de processo-crime a necessária informação para que o tribunal tenha em seu poder todos os elementos para poder atuar com maior correspondência e celeridade face à realidade existente.

No entanto, não é assim que habitualmente acontece. Nem todas as vítimas dispõem de apoio psicológico e/ou psiquiátrico ou porque não têm possibilidades económicas para o efeito ou porque não têm consciência que precisam desse apoio, mas também porque quando têm esse acompanhamento os próprios profissionais que apoiam clinicamente as vítimas não informam os processos-crime desse apoio e da pertinência do mesmo refugiando-se muitas vezes no argumento do sigilo profissional. Sempre se dirá que neste último caso, a informação chegada ao processo-crime do apoio terapêutico não constitui em si mesma qualquer violação do sigilo profissional, mas antes uma forma de contribuir para a divulgação da prática do crime de violência doméstica que é um crime público e que é um crime violento, cujo dever de denúncia subjaz aos profissionais que trabalham com as vítimas.

Como identificar então os danos psicológicos sofridos pelas vítimas?

A única forma de o fazer é, numa primeira fase, através do exame médico-legal feito pelo perito do tribunal. Contudo, até hoje assistimos a que os exames médico-legais, para os quais as vítimas são notificadas quando é apresentada denúncia do crime, limitam-se a constatar as sequelas físicas, porque visíveis, e nunca se reportam aos danos psicológicos sem sequer haver a preocupação de encaminhar para um perito forense que possa fazer num outro momento essa avaliação.

Esta é a razão pela qual, quase nunca se conhecem as lesões psicológicas das vítimas, ou seja, não é porque não as tenham é porque ninguém se preocupa em identificá-las.

Sabendo-se ainda que as perícias médico-legais constituem um meio de prova por excelência, consagrado no Código de Processo Penal, porquanto permitem aferir da credibilidade do testemunho e identificar lesões, subsiste a questão de se saber a razão pela qual não são as mesmas utilizadas pelo Ministério Público durante a fase de investigação. É que as perícias não só não são um procedimento regra, como também quase nunca são solicitadas pelo Ministério Público e quando o são também se perceciona não serem devidamente valoradas.

Tudo visto, importa concluir que a maior parte dos danos morais das vítimas são os que perduram nas suas vidas e que só com o decurso dos anos aprendem a geri-las e a ultrapassá-las, quando têm a possibilidade de serem apoiadas do ponto de vista terapêutico, mas esta grande extensão de lesões sofridas pelas vítimas de violência doméstica escapa à apreciação do sistema judicial.

Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.