Aos 35 anos, a ‘Mariana’ começa a fazer psicoterapia para gerir a ansiedade que sente quando tem de confrontar o seu chefe. Sempre se considerou uma pessoa independente e confiante. Contudo, quando precisa de expressar uma preferência, ou de contrariar o seu superior hierárquico, é invadida por um enorme receio de que este não goste dela e acabe por a rejeitar. Como consequência, evita qualquer confronto e tem-se sentido cada vez mais infeliz no seu trabalho.
O seu colega ‘Pedro’, de 28 anos, recorreu à ajuda de uma psicóloga há cerca de um ano. Tinha saído de um relacionamento há pouco tempo. Insatisfeito e frustrado, não conseguia compreender por que motivo as suas relações falhavam sucessivamente.
A Mariana e o Pedro são muito diferentes, mas partilham - entre si e com todos nós - um sistema nervoso autónomo extremamente eficaz no que toca a identificar ameaças e a procurar segurança. É este sistema que permite que, quando somos crianças, aprendamos junto dos nossos cuidadores as primeiras regras sobre o que é seguro e o que é ameaçador. A maior parte das vezes, essas regras são fundamentais para a nossa sobrevivência, uma vez que estão associadas a emoções que nos preparam para agir de acordo com as nossas necessidades. Por exemplo, aprendemos que é perigoso entrar no mar sem um adulto. Esse medo protege-nos, numa fase inicial, de nos colocarmos em risco.
É durante a infância, no meio familiar, que outras aprendizagens mais complexas têm lugar. Por exemplo, o que podemos esperar de terceiros ou como nos devemos comportar para garantir segurança na relação com o outro.
À medida que vamos amadurecendo, alguns dos ensinamentos mais antigos são adaptados ou substituídos, mas uma grande parte, devido à sua importância do ponto de vista evolutivo, mantém-se connosco, incorporada no nosso sistema nervoso.
Em termos psicológicos, os problemas podem surgir quando, em contextos de adversidade, procuramos segurança de formas que já não são eficazes ou, por outro lado, vemos ameaças em situações que não o representam. Nesses casos, reagimos como se estivéssemos lá, quando a aprendizagem se formou: é como se a criança que vive cá dentro de repente assumisse o controlo das nossas emoções. Para facilitar a compreensão, regressemos às personagens iniciais.
A Mariana e o seu terapeuta concordaram em explorar, ao longo das primeiras sessões, alguns momentos do passado em que as mesmas sensações estiveram presentes. Foi recordado, primeiro, um professor de música que provocava um efeito parecido: medo de dizer algo errado, ou de questionar, e consequente evitamento de qualquer situação de confronto.
Mais tarde, a Mariana apercebeu-se de que também com o pai esta ansiedade estava presente. Ainda que fosse uma relação de proximidade e afeto, existiram várias ocasiões que recorda como emocionalmente semelhantes. Por exemplo, gostaria de ter estudado História, mas por influência do pai e receio de que não apoiasse a sua opção, escolheu Jornalismo. Recordou-se, ainda, de que era frequente ter afirmação e reconhecimento, mas apenas nos aspetos da sua vida que o pai aprovava. Caso contrário, o que a esperava era um doloroso e punitivo silêncio.
Há muito tempo, a criança que vive dentro da Mariana aprendeu que estar em segurança é ter a aprovação do pai. Nos momentos em que a Mariana mais crescida gostaria de se afirmar perante o chefe (uma figura de autoridade masculina) a criança que vive lá dentro fica muito assustada e procura sentir-se segura, sendo complacente e evitando agitar as águas.
Ao compreender e explorar este processo em terapia, existe a possibilidade de a Mariana aprender e praticar formas novas, mais eficazes e com menos custos de se sentir em segurança na relação com o chefe e, claro, consigo mesma.
Olhemos agora para o caso do Pedro. Ao longo de um ano de terapia, as raízes das dificuldades relacionais que sentiu foram-se tornando evidentes. Depois do divórcio dos pais quando tinha 7 anos de idade, a mãe, com quem viveu a maior parte da sua vida, sofreu uma depressão prolongada e persistente. O Pedro recorda-se de “não poder estar triste” ao pé da mãe, caso contrário ela ficaria ainda mais debilitada. Também não poderia sentir-se zangado porque estaria a perturbar o seu já instável equilíbrio emocional.
Assim, aos poucos, o pequeno Pedro foi percebendo que expressar e falar sobre o que sentia era demasiado ameaçador para o bem-estar da sua principal cuidadora e, como resultado, aprendeu a suprimir as suas emoções para proteger algo profundamente ligado à sua sobrevivência: a relação com a mãe.
Anos mais tarde, as suas relações eram pautadas pela frieza e falta de expressividade emocional. Quando as namoradas o convidavam a comunicar abertamente sobre o que sentia, a criança que vivia dentro do Pedro ficava apavorada e fechava-se. Eventualmente, tornou-se muito difícil para o Pedro mais crescido manter relacionamentos estáveis.
Em terapia, foi possível consciencializar-se das tremendas perdas que esta forma de se proteger lhe custou ao longo do tempo. Para além disso, atualmente o Pedro sente-se mais capaz de negociar com a sua criança interior, tendo aprendido, por exemplo, que na relação com a psicóloga é possível estar com as suas emoções sem que isso seja um perigo ou um peso para o outro. Espera, eventualmente, conseguir aplicar algumas destas formas de estar recém-adquiridas no contexto de uma nova relação amorosa.
Tal como acontece com o Pedro e a Mariana, a criança que vive cá dentro surge, de forma automática, nos momentos e circunstâncias mais desafiadores. Por vezes sente-se sozinha, culpada, faz birra, zanga-se, tem medo. Independentemente do que a criança que vive cá dentro sente e faz, tudo começou por ser um esforço de adaptação saudável a um ambiente que tinha algo de ameaçador. É uma história que faz sentido, sempre.
Infelizmente, não podemos recuar no tempo para voltarmos a ser crianças e termos tudo aquilo que precisávamos. Mas existe a possibilidade de ajudarmos a criança que vive cá dentro a sentir-se protegida de maneiras que sejam saudáveis e equilibradas.
Se estiver indeciso/a sobre iniciar um processo psicoterapêutico, olhe para dentro e escute com atenção. Poderá existir uma voz perdida na memória, que pertence a uma versão sua mais infantil e inocente: um menino ou uma menina que de vez em quando ainda sofre pelas feridas do passado. Todos temos uma criança que vive cá dentro. Procurar ajuda psicológica é algo que começamos por fazer por nós, mas que – como muitas vezes acabamos por descobrir – fazemos por ela.
Inês Amaro - Psicóloga clínica
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