Um abrigo para animais em Santo Tirso foi afetado pelos incêndios que deflagraram perto da região, há poucos dias. Vários cães foram resgatados por populares, mas dezenas de outros animais terão morrido. Este lamentável acontecimento veio intensificar a indignação e o horror de muitas pessoas perante as condições indignas, negligentes e de maus-tratos, perpetuadas pelos denominados acumuladores de animais.
Ao mesmo tempo, eleva-se a questão da necessidade de reflexão e ação sobre os traços de personalidade respeitantes aos acumuladores de animais, bem como aos responsáveis pelas associações que gerem abrigos, canis ou albergues de animais abandonados e a patologia denominada como Síndrome de Noé.
Não sendo um fenómeno recente, a acumulação de animais tem tendência para se agravar num futuro próximo, dado o crescente envelhecimento da população e o maior número de casos de isolamento social. Do mesmo modo, mas numa vertente diferente, fora do âmbito patológico, urge a necessidade de encontrar ações direcionadas para os acumuladores de animais que, numa perspetiva puramente comercial, acumulam para a reprodução ilegal.
A Síndrome de Noé é identificada como uma variante da Perturbação de Acumulação e caracteriza-se pela aglomeração negligente de um número desmesurado de animais domésticos sem que lhes sejam prestados os devidos cuidados médico-veterinários básicos, de higiene, de espaço e, inclusive, de alimentação. Esta perturbação pode surgir também associada à Síndrome de Diógenes, a qual está relacionada com a acumulação descontrolada de objetos ou de lixo.
Em ambos os casos, os primeiros sinais podem surgir na adolescência, agravam-se na idade adulta e têm seu pico de prevalência numa idade acima dos 60 anos. A acumulação é particularmente perigosa para os idosos que apresentam limitações físicas ou cognitivas, dado que pode afetar, significativamente, o seu funcionamento básico em casa e contribuir para o sofrimento dos animais.
Ambas as síndromes de acumulação têm repercussões sociais, familiares e económicas significativas.
As pessoas com Síndrome de Noé padecem de um problema psiquiátrico. Por inerência a esta condição, vivem em condições de insalubridade, de isolamento e com negação pelas regras sociais. São, regra geral, pessoas deprimidas e sem capacidade de reconhecer que os seus comportamentos têm consequências na sobrevivência e bem-estar dos animais que mantêm a seu cargo.
Quando confrontadas com a dimensão do problema e das condições de vida em que elas próprias e os animais vivem, rapidamente negam ou desvalorizam. Estas pessoas começam por acolher um ou dois animais e com o tempo vão atingindo um número cada vez maior. Chegam a ser centenas, sem que tenham, de facto, qualquer capacidade para assegurar as mínimas condições de sobrevivência e de bem-estar aos animais. Geralmente, são abnegadas e envolvidas na ajuda, resgate e realojamento de animais. Podem trabalhar em associações de proteção animal, em canis ou em conjunto com as autoridades, dadas as fragilidades do sistema.
Nas suas convicções acreditam que ninguém consegue tratar os animais tão bem quanto eles, temem os abates levados a cabo pelas autarquias e não resistem a ajudar “só mais um bichinho”. Estas razões que encontram para os acumular, acabam por ter efeitos adversos, de aprisionamento e miséria, passando a protagonizar condutas de imensa crueldade.
Os acumuladores de animais recusam qualquer ajuda externa. Por conseguinte, qualquer tentativa de ajuda ou de abordagem terapêutica é muito difícil de concretizar. Talvez devido a estas circunstâncias, a taxa de reincidência da perturbação de acumulação de animais seja de quase 100%.
Apesar da investigação ainda ser escassa, vários fatores são apontados como causas da Síndrome de Noé, como por exemplo, perturbações da personalidade, acontecimentos ansiogénicos ou experiências traumáticas (abuso e negligência na infância, experiências disfuncionais de apego precoce, abandono parental, luto patológico ou perda de um adulto com quem havia uma forte ligação).
Com os animais, contrariamente ao que sucede com os objetos, é estabelecida uma relação recíproca, na qual o animal é sentido como seguro, amigo e confiável. Dentro de um funcionamento patológico, o doente com Síndrome de Noé sente os seus animais como ajudas preciosas e imprescindíveis para fazer face a condições de sofrimento, tais como o abandono ou a solidão.
Os acumuladores de animais que não se inscrevem na Síndrome de Noé visam, apenas, o lucro financeiro com a venda ilícita de animais, com recurso por vezes à reprodução ilegal e, à obtenção de doações de bens e monetárias. Distintamente das pessoas que padecem da Síndrome de Noé, estes têm consciência das consequências das suas atitudes negligentes e/ou de maus-tratos nos animais acumulados. Em muitas situações, provocam sobrepopulação grave ou são omissos nos cuidados que prestam aos animais, demostrando baixa ou total ausência de empatia ou culpa pelas condições de vida que propiciam aos animais.
Nestes casos de cariz criminosa, a pena judicial produz o efeito desejado, ou seja, a redução de reincidência.
A degradação ambiental que decorre dos acumuladores de animais apresenta sérios riscos para a saúde pública, para a saúde e vida do acumulador e para a saúde e vida dos animais acumulados. A segurança de todos quantos estão envolvidos pode ficar, igualmente, comprometida por quem padece da Síndrome de Noé ou por quem acumula os animais sem qualquer perturbação associada.
Estima-se que a perturbação da acumulação afeta entre 4% a 6%, da população adulta, a nível mundial. No entanto, os especialistas receiam estar perante uma “pandemia oculta” ou a ponta de um iceberg, ou seja, receia-se que possa haver um elevadíssimo número de casos ocultos por identificar, sobretudo nas grandes cidades.
Não teria sido este incêndio e tudo continuaria na mesma, pois ao que parece, até para o Ministério Público é aceitável ter animais acorrentados 24 horas sobre 24 horas e "não existe crueldade em ter animais em abrigo sujo, com lixo e dejetos". É caso para dizer que ainda bem que o nosso Código Civil reconhece que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza, conforme a Lei n.º 8/2017, de 03 de Março.
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