Os portugueses sofrem cada vez mais de dependências? Que tipo de dependências trata no seu quotidiano enquanto psiquiatra?

Não é possível responder de forma definitiva, uma vez que existem estudos com resultados que apontam nesse sentido e outros que mencionam uma estabilização. Nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia COVID19, aumentaram as perturbações aditivas, mas, posteriormente, verificou-se uma ligeira melhoria, com o regresso de hábitos mais saudáveis e de uma maior socialização. Em relação aos estudos, existem muitas variações metodológicas e, mesmo dentro das perturbações aditivas, os quadros de dependência serão quadros particularmente graves, mas há outros quadros que já configuram perturbações mentais (por terem impacto na vida do indivíduo). Em relação às dependências comportamentais, tem havido uma maior sensibilização aos riscos de problemas, como apostas a dinheiro, videojogos e redes sociais, bem como uma maior atenção por parte dos técnicos de saúde (exceto no jogo a dinheiro) para perturbações com critérios de diagnóstico recentes, o que também contribui para um maior número de casos a diagnosticar. Posso afirmar que são perturbações com elevada prevalência, principalmente se forem todas somadas, e que, no panorama europeu, estamos mal posicionados em termos de consumo de álcool e canabinoides.

As novas dependências, como o jogo online e o jogo a dinheiro, têm vindo a aumentar, sobretudo junto dos mais jovens. Estas dependências são encaradas da mesma forma que as dependências tradicionais, como o álcool ou as drogas, no âmbito da psiquiatria?

Estamos a falar de perturbações que têm aumentado pela existência de mais casos diagnosticados, pelo crescimento da publicidade e pelo enraizamento da sua prática na nossa cultura. Os estudos revelaram semelhanças com as perturbações de substância, pelas áreas do cérebro envolvidas e pelo perfil psicológico e neuropsicológico dos indivíduos que sofrem este problema, com semelhanças particulares com os utilizadores problemáticos de cocaína. Têm, igualmente, diferenças importantes com as dependências de substâncias, como por exemplo, predominantemente, ameaçarem as finanças e a segurança económica da família e não a saúde física do indivíduo. Não se encontra também equivalência a fenómenos como “perseguir as perdas” (fenómeno de aumentar os gastos para recuperar o que se perdeu), “falhar por pouco” (fenómeno de gastar mais quando quase se ganha em certos jogos), bem como o desenvolvimento de ideias irracionais, como superstições relacionadas com o jogo (achar que “está num dia de sorte” ou que uma “determinada máquina está quase a dar dinheiro”) e uma prevalência superior de ideação suicida que nos preocupa, particularmente como técnicos de saúde mental.

Em relação à abordagem, os serviços de saúde mental estão mais organizados por terem mais anos de prática relativamente às perturbações como substâncias, existindo em comum a abordagem psicológica ao problema (inspiração terapia cognitiva comportamental e entrevista motivacional) com consultas individuais e de grupo, seguimento médico e, nos casos mais graves, a promoção da saída do indivíduo do seu meio com internamentos e/ou integração em comunidades terapêuticas (tratamento psicológico intensivo fora do seu meio habitual e durante vários meses).

Quais são os principais sinais que indicam que uma pessoa pode estar a desenvolver uma dependência de jogos, apostas desportivas ou outras formas de vício online?

Os sinais de dependência de jogos a dinheiro envolvem: o desenvolvimento persistente de necessidade de jogar quantias de dinheiro de forma crescente, de modo a atingir a excitação desejada; a inquietação ou irritabilidade quando é impedido, tenta reduzir ou para de jogar; os esforços mal sucedidos de controlar, reduzir ou parar de jogar; a preocupação frequente com o jogo; a utilização de jogo quando se sente mal; após perdas de dinheiro no jogo, tentar recuperar essas perdas através do jogo; mentir ou dissimular a extensão de envolvimento com o jogo; prejudicar ou perder relações significativas, oportunidades de trabalho ou académicas por causa do jogo.

De que forma estas novas dependências afetam a saúde mental dos jovens?

As novas dependências, especialmente o vício em jogos online e apostas a dinheiro, têm impacto negativo na saúde mental dos jovens por consumirem recursos, como tempo e dinheiro, em alturas críticas da vida, condicionando assim o futuro e o potencial destes jovens, induzindo num stress marcado, perda do gosto de viver, perda de controlo sobre a própria vida, com impacto negativo na auto-estima e padrão de socialização.

Há alguma relação entre as novas dependências e outros problemas de saúde mental, como a ansiedade ou a depressão?

Sim, há uma relação estreita entre as novas dependências e problemas de saúde mental, como a ansiedade e a depressão. Numa fase inicial, os indivíduos recorrem ao jogo online e às apostas como forma de aliviar sintomas de ansiedade, depressão e stress, mas acabam por agravar esses mesmos problemas. A perda financeira, a vergonha ou o fracasso nos jogos também pode gerar sentimentos de desespero, depressão, ideação suicida, perturbação de ansiedade generalizada ou isolamento social.

joão vieira reis
joão vieira reis João Vieira Reis, médico psiquiatra

Quais são os desafios mais comuns para os profissionais de saúde ao tratar dependências relacionadas com o jogo, especialmente entre os mais jovens?

É frequente que o problema preocupe mais os pais ou os cônjuges, sendo numa fase inicial desvalorizado pelo próprio, negando o problema como fonte de sofrimento ou perda de controlo. Além disso, o maior domínio das tecnologias possibilita muitas vezes que possam encarar os familiares e amigos e atrasar a sua intervenção. Também o facto de contraírem dívidas aumenta de forma significativa o stress, induzindo muitas vezes a recorrência no comportamento de jogo como forma de alívio desse stress ou como procura de resolução “mágica” do problema, agravando o problema.

No processo de recuperação, os técnicos e familiares podem ter dúvidas sobre a capacidade do dependente se manter sem jogar, o que é fonte de sensação de injustiça muitas vezes difícil de gerir, e sendo uma fonte de afastamento psicológico que muitas vezes pode representar situações de risco de recaída. Finalmente, ocorre o comportamento de substituição por outra atividade estimulante, como outro comportamento de risco como o uso de álcool ou drogas.

A exposição contínua a estímulos como as apostas desportivas ou jogos online pode ter efeitos a longo prazo na saúde mental? Quais são os principais riscos?

Em geral, a exposição contínua vai agravar a repercussão económica do comportamento de jogo, aumentando também a sensação de perda da esperança, perda de controlo e risco de impacto a longo prazo na carreira profissional, afastamento de amigos e familiares.

O estigma social associado a dependências como o jogo é diferente daquele que existe em relação às drogas ou ao álcool? Como é que isso afeta a procura por tratamento?

Apesar de ser estigmatizado em algumas culturas familiares, principalmente o jogo de casino, outros jogos a dinheiro, como o Euromilhões, raspadinhas e apostas desportivas, estão no imaginário coletivo como jogos pouco perigosos. Particularmente na questão das apostas está muitas vezes associado o gosto por desporto ou por uma determinada equipa, e é visto como apoio ou uma oportunidade fácil de obter dividendos, sendo por isso promovido socialmente. Também a publicidade muito pouco regulada mostra o jogo como um investimento e uma oportunidade fácil de obter riqueza, o que é manifestamente falso, visto que os estudos mostram de forma consistente que quem aposta de forma regular perde dinheiro. Pode contribuir para esse viés o facto de, psicologicamente, as pessoas partilharem mais as vitórias, que são vistas como fruto de habilidade e não de sorte, do que as derrotas.

Que tipo de abordagens terapêuticas têm mostrado maior eficácia no tratamento de dependências comportamentais como o vício em jogos de azar?

A base do tratamento é a psicoterapia de inspiração cognitivo-comportamental (TCC) e a entrevista motivacional. A intervenção médica é particularmente importante quando estejam presentes comorbilidades, como depressão e ansiedade, cujo tratamento vai ter impacto no prognóstico das dependências comportamentais. Também grupos de ajuda com os jogadores anónimos parecem ter um efeito positivo. É importante referir a auto-exclusão como uma ferramenta importante para dificultar o acesso ao jogo.

Independentemente da abordagem, considera-se que a adesão a um programa por parte do indivíduo tem um valor independente na melhoria clínica, sendo que o tipo de abordagem poderá condicionar os resultados, mas sendo menos importante do que a adesão do indivíduo, devendo esta ser promovida como abordagem nuclear.

Que medidas preventivas, a nível familiar ou educacional, podem ser implementadas para ajudar a reduzir o risco de jovens desenvolverem dependências de jogos e apostas?

Podendo ser feita uma vida perfeitamente normal sem essas atividades, devem ser vistas como atividades com potencial problemático, apesar de a maioria das pessoas que as praticam não terem critérios para uma perturbação mental. A nível familiar e educacional devem, por princípio, não ser promovidas e, após o desenvolvimento de problema, a ideia que corresponde a um problema de saúde mental e não a um problema de carácter, o que é particularmente difícil quando pessoas próximas descobrem mentiras ou têm a sua sobrevivência financeira em risco devido a um problema relacionado com o jogo.

É também importante perceber que as pessoas com estas perturbações perdem capacidades sociais que devem ser estimuladas ativamente. Os educadores podem estar, por exemplo, atentos a sinais de desgaste psicológico ou insónias, podendo obter informações através dos pares que, muitas vezes, estão ao corrente da situação.

O que o sistema de saúde em Portugal pode fazer para estar mais preparado para responder ao crescente problema das novas dependências?

O sistema de saúde deve, em primeiro lugar, sensibilizar a população para haver uma melhor sinalização dos casos problemáticos para os serviços de saúde. Esses serviços devem estar dotados de uma equipas multidisciplinares que envolvam psicólogos, médicos, assistentes sociais e outros técnicos (como advogados e contabilistas). Para dar uma resposta eficaz a estes casos, seria vantajoso criar centros especializados que pudessem aumentar a eficácia dos tratamentos neste tipo de patologias. Já em termos sociais e políticos, será essencial promover e criar políticas de saúde que obriguem à regularização das plataformas de jogos e apostas online, com medidas que limitem os gastos e protejam os utilizadores vulneráveis, como os jovens.

O médico João Vieira Reis é especialista em Psiquiatria no Hospital Lusíadas Lisboa e no Hospital Lusíadas Monsanto. É ainda docente de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa, Assistente Hospitalar de Psiquiatria no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) e responsável pela Consulta de Dependências Comportamentais no CHPL.