É ponto assente que vivemos dias difíceis. A pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2 mergulhou-nos a todos num mar incerto: entre as vagas de transmissão da doença, entre os parcos avanços e muitos retrocessos do conhecimento científico, a verdade é que o nosso quotidiano mudou irremediavelmente.
E os miúdos sabem disto e sabem-no bem. Nunca, enquanto crianças, nós pensávamos ser possível encerrar a escola. E, no entanto, os miúdos de agora passaram por essa experiência fraturante. Se a escola, o epicentro do seu quotidiano, fecha, então é porque estamos a braços com algo sério.
E não vale a pena iludirmos-nos: as crianças são flexíveis, mas só porque parecem estar bem, não quer dizer que o estejam.
Quando leio a previsão da recessão económica que se avizinha, imagino que, aos cerca de 20% da população portuguesa que vive em risco de pobreza, se junte agora uma franja maior de classe média baixa, os eternos remediados.
E o que é que os miúdos têm quer ver com isto? Pois bem, tudo. Sabemos que de acordo com o grupo etário, existem diferentes fatores ansiogénicos. Se nas crianças em idade pré-escolar, a mudança da rotina ou o encerramento da escola, podem ser de facto, motivos de uma justificada ansiedade, nas crianças mais velhas, a perda do emprego de um dos pais e o impacto no orçamento familiar que isso representa também não é desprezável.
E o que dizer do aumento do número de divórcios motivados pelo decorrer do confinamento? E aqui sim, a separação dos pais é, transversalmente, o fator de grande stress.
Mas se estamos a falar de grandes motivos de ansiedade (a mudança de rotinas, a separação dos pais, a morte ou doença de um familiar e o desemprego bem como o reajuste á pobreza), a verdade é que as nossas crianças também sofrem as suas pequenas ansiedades. Parecem-nos ridículas a nós, adultos, que temos tantas e tão boas preocupações. Mas preocuparem-se porque perderam um carrinho que gostaram, rasgaram o vestido preferido, esqueceram-se de fazer os trabalhos de casa também são preocupações válidas.
E nós, como pais, temos que os ensinar a aceitar e gerir estas pequenas ansiedades.
Não, não é uma parvoíce
Não, o medo que se sente de aranhas não é uma parvoíce, nem o é a timidez súbita que assola o nosso miúdo fanfarrão, no mesmo instante em que chega a uma festa de aniversário cheia de miúdos desconhecidos. É porque nós, os adultos, temos esta forma de desmaterializar as queixas de ansiedades das crianças. Fazemo-lo gratuitamente, com um encolher de ombros e um rebolar exasperado dos olhos: “Que disparate! – dizemos, “Que parvoíce!”.
E se calhar, o primeiro passo que podemos dar é justamente aceitar a ansiedade em si. Reconhecê-la não é a mesma coisa que defendê-la! Vejamos: “compreendo que não te sentes confortável com aranhas, que tem fazem impressão, mas sabias que o Homem Aranha é uma espécie de aranha e não deixa de ser um super herói?” ou “Bem sei que estar numa festa onde não se conhece ninguém não é pêra doce, mas queres começar por brincar comigo com aquela secção de brinquedos ali e depois logo vês se continuas a precisar de mim?”
Reforço, reforço, reforço
Esta nem sempre é fácil, mas nada como transmitir aos nossos miúdos que não é por serem ansiosos em relação a algum assunto que gostamos menos deles. Como por exemplo: “Bem sei que te queres vestir de preto integral porque essa é uma forma de te identificares sem dificuldade com o teu grupo de amigos. O que não tem mal nenhum, desde que tu gostes efetivamente de preto. Na verdade, nada como seres sincero contigo mesmo.”
Não só há um reforço da aceitação (gosto de ti, independentemente da cor que escolheres vestir), como também há uma confiança na decisão (aceito perfeitamente qualquer escolha, desde que seja tua).
E muitas vezes, mesmo com as crianças mais pequenas, reforçar a autonomia, com um interesse e respeito genuíno pelas suas escolhas, acaba por ser o caminho certo para reforçar o nosso afeto. Não se padece de colo, carinho, atenção ou amor a mais, certo?
O elefante na sala
Tendo em conta que, para ajudar os nossos miúdos a enfrentar, aceitar e ultrapassar as suas ansiedades, temos que aceitar que elas existem e reforçar o nosso afeto, não vale a pena tentar ignorar o elefante na sala (mas estás com essas coisas para quê?) ou ralhar-lhe (já te disse para parares com isso!) ou tentar minimizá-lo (mas estás a comportar-te como um bebé porquê?). As pequenas grandes ansiedades das crianças são reais nas suas cabeças, independentemente do que nos parecem a nós, adultos.
Procurar ajuda
Se a ansiedade de alguma forma interfere com a alimentação, o sono da criança ou adolescente, se desencadeia perda de rendimento escolar, isolamento, ou por outro lado, um comportamento de oposição, com muitas birras à mistura e uma enorme raiva e frustração, então pode muito bem ser a altura para procurar ajuda especializada. E como frequentemente a ansiedade se expressa com sintomas físicos como dor de cabeça, náusea, tontura ou a dor abdominal, comece por falar com o seu médico assistente (médico de família ou pediatra), porque é importante fazer um diagnóstico diferencial de todas estas situações.
Adicionalmente, logo numa etapa inicial, podem ser implementadas pequenas estratégias com elevado impacto familiar, que podem realmente ajudar a resolver o problema. No entanto, não devemos nunca descurar a ajuda profissional mais dirigida, com a avaliação cuidada e intervenção por um profissional de saúde mental na área da infância e adolescência.
Um artigo da médica pediatra Joana Martins.
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