Publicou até ao momento oito livros de ficção. Agora, muda de registo e, como nos diz, traz “um relato pessoal, uma viagem através das minhas inquietações e leituras”. Porque sentiu necessidade neste momento de escrever este livro?

Escrevi este livro durante os meses do confinamento a que nos obrigou a pandemia. O facto de não poder sair de casa afetava-me. Sentia que a minha imaginação parara e que não podia escrever romances. Então, encontrei uma via de escape nas memórias, nas leituras, nas viagens que fiz ao longo da minha vida. Foi como escrever um diário e esse diário era esta história partilhada. Desta forma, pude continuar a escrever.

Podemos entender como um exercício libertador num contexto em que estava fechada em casa.

Sim, de facto foi muito libertador. Senti que não conseguia contar uma história, era como se a minha mente estivesse a gritar para sair, estava a gritar para fugir. E a única forma de escapar era através das memórias.

Sente que este livro é uma obra de afirmação do feminino ou um manual para reconciliar os dois sexos e repensar a história à luz da mulher e do homem?

O que afirmo é que a história foi escrita pelos homens até ao século XX e, nessa história escrita no masculino, esqueceram-se de que as mulheres também estavam lá. Assim, o papel das mulheres tem sido quase uma nota de rodapé. E, no entanto, há inúmeras mulheres cujos contributos nos domínios da ciência, da filosofia, da arte, da literatura, da música, foram verdadeiramente extraordinários para o desenvolvimento da humanidade. No entanto, essa parte da história não foi contada. Queria escrever uma história para realçar o valor dessas mulheres, mas também tinha curiosidade em saber como elas eram, como eram os homens que tinham feito parte das suas vidas. Daí, pareceu-me que seria uma história incompleta se não contasse como eram eles, como eram estes homens, os pais, os maridos, os amantes, os chefes, os professores e irmãos destas mulheres. Não se pode contar a história se não se contar a narrativa de toda a gente. Daí, ser uma história comum, uma história partilhada.

A história foi escrita pelos homens até ao século XX e, nessa história escrita no masculino, esqueceram-se de que as mulheres também estavam lá.

Que homens encontrou na relação com estas mulheres?

Houve homens que tentaram cercear o desejo de liberdade destas mulheres, mas também a sua criação, o seu trabalho. E houve homens que foram estimulantes no desenvolvimento destas mulheres. Há uma história ligada a Marie Curie que me parece muito interessante. Após a morte do seu marido ela manteve uma relação com outro cientista, um homem casado. O assunto foi tema nos jornais e Marie Curie começa a ser falada depreciativamente. Entretanto, vence o Prémio Nobel e a Academia Sueca opunha-se a que ela fosse receber o prémio. Uma hipocrisia. No entanto, há um homem, Albert Einstein, que lhe escreve uma carta onde afirma: "Tens de ir a Estocolmo. Tens de ir receber o Prémio Nobel, porque o recebeste pelo teu talento, não pela tua vida pessoal”. Marie Curie decide ir a Estocolmo porque há um homem, Einstein, que lhe diz: "Ouve, não podes desistir, tens de ir”.

A ciência há de ser rica em histórias como esta…

Sim. Por exemplo, há muitas mulheres cientistas que não puderam assinar as suas descobertas e que foram assinadas pelos seus professores, pelos seus mestres ou pelos seus colegas de laboratório. Isto é absolutamente tremendo, porque eles nunca tiveram a decência de reconhecer que a descoberta que lhes foi atribuída não era deles, mas delas.

Em momentos anteriores referiu que com este livro recupera um pensamento associado ao feminismo clássico, por oposição àquilo que se chama a quarta onda do feminismo. Quer explicar-nos?

Sobre a autora

Julia Navarro nasceu em Madrid, em 1953. Dedicou mais de 35 anos da sua vida profissional ao jornalismo. Trabalhou nos principais meios de comunicação social do país, entre eles a TVE, Telecinco, Canal Sur, Agência OTR/Europa Press. Iniciou a sua carreira como romancista em 2004 com a publicação do livro A Irmandade do Santo Sudário. Sucederam-se-lhe sete livros, entre eles, A Bíblia de Barro, O Sangue dos Inocentes, História de um Canalha, Não Matarás e De Lado Nenhum. Os seus livros são publicados em mais de 30 países. É casada com Fermín Bocos. Na juventude praticou ballet e almejou ser bailarina.

Na base do movimento Me Too, há uma nova forma de entender o feminismo. Por exemplo, em Espanha, as jovens mulheres que tomaram conta do Ministério da Igualdade têm uma ideia de feminismo que choca com a ideia do feminismo clássico, que se baseia na luta pela igualdade. No meu país tivemos duas leis muito controversas, uma ficou conhecida como a lei do “só sim é sim” [o silêncio deixou de poder ser usado como prova de consentimento e abuso sexual e violação deixam de ser crimes diferentes]. Uma lei que supostamente viria punir mais severamente os violadores, mas acontece que nem todos a aplicaram. Trata-se de uma lei que não está bem feita e que tornou possível que homens que abusaram de mulheres estejam na rua. E depois temos a ‘lei trans’ [é possível alterar a identidade de género no registo civil sem se submeter a um tratamento hormonal de dois anos ou obter um diagnóstico médico de disforia de género]. Nesta lei as mulheres ‘desaparecem’, para se tornarem seres gestantes e seres menstruados. O mesmo é dizer que ser mulher é uma decisão. Mas há uma parte do feminismo que diz: “não, olha, isso é um facto biológico, não é uma decisão”. O facto é que, biologicamente, sou uma mulher. As pessoas transgénero merecem que os seus problemas sejam abordados e temos de lhes dar uma resposta, mas não à custa de dizer que as mulheres não existem.

Acredito que ninguém tem uma verdade absoluta e que o debate é interessante. A única coisa é que, nesta quarta vaga de feminismo, as mulheres são um pouco hedonistas. Não nos podemos esquecer que as conquistas que foram feitas no domínio da igualdade, foram-no porque muitas mulheres, antes delas, lutaram muito para o conseguir. Trata-se de uma conceção do feminismo que me interessa conhecer e debater, mas julgo que estas mulheres têm uma posição um pouco intransigente.

Considera que o debate sobre o papel do homem e da mulher na sociedade se radicalizou?

Penso que não nos podemos compreender uns sem os outros. Por isso, penso que é importante termos uma perspetiva alargada, uma perspetiva em que todos nos encaixemos. Por outras palavras, para avançarmos no caminho da igualdade, há que o percorrer juntos.

Tendemos hoje para a uniformidade de pensamento?

Sim. Parece-me que estamos a viver uma situação muito perigosa de regressão da liberdade. O movimento woke, que impõe uma única forma de pensar, é um movimento reacionário, é um movimento que atenta contra a liberdade e que também trata os cidadãos como se fossem crianças pequenas. Assim, parece-me que esta tentativa de uniformizar o pensamento, de nos dizer o que é correto pensar e dizer, é um verdadeiro atentado às liberdades coletivas e individuais.

O movimento woke, que impõe uma única forma de pensar, é um movimento reacionário, é um movimento que atenta contra a liberdade.

Sente-se limitada na sua liberdade quando escreve?

Não. Não vou dar um passo atrás. No passado foi difícil recuperarmos em Espanha as nossas liberdades, sofremos censura. Por isso, estou demasiado velha para aceitar qualquer tipo de censura e não vou exercer autocensura. Estou aberta ao debate, a discutir com os outros as suas posições, sejam elas quais forem, e elas podem, ou não, convencer-me. Mas, o debate parece-me ser o que nos faz avançar, o que nos faz progredir. O que não estou disposta a fazer é que me imponham o que devo pensar. Preocupa-me muito que haja muita gente com medo de não ser, como dizemos em Espanha, politicamente correto. Isto não se refere apenas à política, refere-se a todos os aspetos da vida. Portanto, esta cedência de liberdade por medo do que as redes sociais possam dizer, por medo do que aqueles que foram eleitos possam fazer…não sei, acho que estamos a viver numa espécie de big brother, aquilo ao que George Orwell chamava o Ministério da Verdade. Vivemos numa sociedade absolutamente orwelliana, em que nos dizem o que temos de pensar, o que temos de dizer, parece-me absolutamente monstruoso. Essa é a semente do fascismo.

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Defende que se deveriam rever os livros escolares. Também aí falta a história contada numa perspetiva feminina?

Penso que as mulheres devem ser incluídas nos manuais escolares, porque há centenas de mulheres que não são estudadas e, no entanto, os seus contributos no domínio da ciência, da literatura, da filosofia e da arte foram fundamentais. Contudo, não figuram nos livros dos mais jovens. Algumas destas mulheres são incluídas, aos poucos, nos manuais, mas parece que tudo foi descoberto pelos homens, tudo foi feito pelos homens, tudo foi pensado pelos homens. Isso é falso. Por conseguinte, penso que é dever dos responsáveis pela educação, em todos os países, rever os manuais escolares e incluir as mulheres cujos contributos foram fundamentais para o desenvolvimento da educação.

Exerceu jornalismo durante 35 anos. Também nesse meio sentiu que havia uma história a ser contada apenas por homens?

Quando comecei a trabalhar em jornalismo, as redações eram maioritariamente masculinas e as mulheres eram relegadas para as páginas da cultura, como se a cultura fosse um assunto menor, e não escreviam quase nada sobre política. Portanto, era como se a política fosse uma coisa séria, assunto de homens, e nós ficássemos com outros temas. Acontece que tive a sorte de entrar no jornalismo com a chegada da democracia ao meu país e isso fez com que muitas jovens mulheres vissem de repente a oportunidade de começar a praticar jornalismo em pé de igualdade com os homens. Também não foi fácil. Vejamos, quem tem poder não o cede facilmente e os homens não estavam dispostos a ceder o poder facilmente. Não tanto o poder, porque não se trata de poder, mas do seu lugar no mundo, do seu lugar na profissão. Portanto, não vou dizer que foi muito difícil, mas também não foi fácil. Felizmente, hoje, em Portugal, em Espanha, em França, em muitos outros lugares, liga-se a televisão e há mulheres jornalistas. Mulheres que estão neste momento em Israel a contar o que se passa, ou que estão na Ucrânia, ou que estão em qualquer outra parte do mundo. Mas não só no jornalismo, em inúmeras profissões as mulheres exercem chefias intermédias. Normalmente quem tem a última palavra continua a ser um homem.

A certo momento, mais ou menos a meio de livro, diz que “me meti numa alhada quando comecei a escrever esta história”. Porquê?

[Risos] Bem, porque me questionei, primeiro se os meus leitores me iriam acompanhar neste salto do romance para o ensaio. Depois, porque o debate no mundo do feminismo é muito forte em Espanha. Além disso, é um debate cheio de arestas e de confrontos. Por isso, pensei: “bem, nem toda a gente vai gostar deste livro. Este livro vai ter detratores, ou melhor, detratoras. E, se calhar, estou a meter-me numa confusão”. Acho que, por vezes, vale a pena metermo-nos em confusões para provocar um debate na sociedade, porque saímos sempre melhores dos debates. Saímos melhores porque pode haver um confronto de ideias, de posições. Em suma, é a essência da democracia.

O que presidiu à escolha das mulheres que levou para o seu livro? Disse em momentos anteriores que o livro resultou de um improviso...

 Sim, porque é um livro muito pessoal, é como um diário. Por isso, comecei a escrevê-lo sem uma ordem, mas pensado. Tentei dar-lhe uma certa linha de enredo, mas escolhi as mulheres de que me lembrava. Depois, quando acabei o livro e o publiquei disse: “mas faltam-me muitas mulheres que foram importantes para mim”. Para começar, não sabia se o ia publicar. Por isso, escrevi-o com uma enorme liberdade.

Por vezes, vale a pena metermo-nos em confusões para provocar um debate na sociedade, porque saímos sempre melhores dos debates.

 O livro esteve para não ser publicado?

De facto, o livro foi guardado até novembro do ano passado. O editor quis saber como estava a correr o romance que eu estava a escrever. Como referi, tinha-o adiado. Diz-me o meu editor: "É uma pena que não tenhas nada”, ao que respondo: “Tenho uma coisa, mas não sei se a vais querer editar”. E ele diz-me: "Bem, eu quero lê-lo". Passado uns dias liga-me e anuncia-me que o lançamento do livro seria em fevereiro deste ano. Foi uma surpresa.

No seu livro não se detém apenas em mulheres reais, também vai buscar histórias aos mitos e lendas. Porque lhe pareceu importante incluir estas mulheres fictícias?

Porque são protótipos, porque de alguma forma estas mulheres representam uma forma de estar na vida. Ou seja, estas vidas reais ou fictícias são vidas de mulheres que nos ensinam algo ou nos fazem refletir sobre o papel que desempenharam. Por exemplo, Medeia existiu ou não? Sempre me irritou muito, por exemplo, dizer que Medeia é uma bruxa, é má, é uma assassina. Tudo isso é verdade, mas sempre me irritou muito o facto de Jasão ser um herói e ninguém dizer que todos os crimes que Medeia cometeu são para benefício de Jasão. Este nunca a protege, nunca lhe diz: “Ei, não faças isso”. Ou seja, são protótipos que utilizo para refletir em voz alta sobre o papel das mulheres e dos homens.

Com este livro encontrou novas histórias de mulheres? Alguma a impressionou particularmente?

Sim, em particular cientistas. A falta de conhecimento que temos sobre as mulheres no mundo da ciência, precisamente porque não estão nos manuais, levou-me a tentar investigar. E, de repente, comecei a encontrar mulheres que foram realmente génios. A matemática, a física, a química, a astronomia não teriam atingido o nível de desenvolvimento que atingiram sem o contributo e as descobertas dessas mulheres.

Ao lermos o seu livro sentimos o fascínio que nutre pelo mundo clássico…

Penso que os mitos do mundo clássico contêm todas as grandes paixões do ser humano e são uma fonte permanente de aprendizagem sobre a condição humana. Por exemplo, a leitura da Ilíada é quase um guia da condição humana, com todos os seus aspetos bons e terríveis.

Julia Navarro
No decorrer de um dos momentos de apresentação do novo livro em Portugal. créditos: Bertrand

Ao olharmos para o céu, há estrelas, constelações e outros objetos espaciais com nomes de mulheres. Contudo, esquecemos o seu papel na astronomia. Leva para o seu livro histórias de mulheres astrónomas. Quer partilhar alguma delas?

Uma das coisas que mais me surpreendeu quando pesquisei o papel das mulheres na ciência foi o das astrónomas. Não poderíamos compreender a astrofísica sem o contributo no feminino. Contributos que foram deixados nas mãos dos homens para quem estas mulheres trabalharam. Assim foi, por exemplo, com as astrónomas do chamado “harém de Pickering”, denominação que se deve ao apelido do diretor do Observatório Astronómico de Harvard. Era um grupo de mulheres que nunca recebeu o reconhecimento que merecia. Foram contratadas para contar e classificar estrelas. Teria sido impossível ao mundo da astronomia avançar como avançou sem as contribuições de todas essas mulheres anónimas. Resta-nos um nome, aquele que era o chefe do departamento de astronomia, mas ninguém sabe os nomes daquelas mulheres, ninguém fala delas.

E há uma mulher que me interessa particularmente, Hedy Lamarr, que foi uma grande atriz, uma bela mulher e que é a ‘mãe’ da ligação wi-fi. Claro que, durante muito tempo, as pessoas não quiseram reconhecer a sua inteligência, o seu génio, ou que ela é realmente a ‘mãe’ da banda larga. Quase no fim da sua vida, não tiveram outra hipótese senão reconhecer que Hedy Lamarr se voluntariara para trabalhar no departamento de criptografia na Segunda Guerra Mundial.

Penso que os mitos do mundo clássico contêm todas as grandes paixões do ser humano e são uma fonte permanente de aprendizagem sobre a condição humana.

Diz de Hedy Lamarr que sofreu o “amargo dom da beleza”…

Sim. Hedy Lamarr chegou à velhice com uma enorme amargura. Ou seja, todas as suas contribuições, todo o seu talento não reconhecido, simplesmente porque era uma mulher bela. Nela, os homens recusavam-se a ver tudo, menos aquilo que estava à sua frente, a beleza desta mulher.

Também escreve no seu livro os feitos de cientistas espanholas...

Temos muitas mulheres cientistas. Há uma que nos é particularmente querida, Margarita Salas, bioquímica com trabalho na área da biologia molecular e genética. Ela, a par de outras, são mulheres muito poderosas do ponto de vista intelectual, que estão agora a ser reconhecidas pelos seus contributos e pelo seu valor, mas que não tiveram uma vida fácil.

No campo das filósofas, alguma influenciou com relevo o pensamento do seu tempo?

Sou de uma geração em que as mulheres estavam absolutamente encantadas com a francesa Simone de Beauvoir. Era muito nova quando comecei a ler Beauvoir. A personalidade que, realmente, me abalou foi a alemã Hannah Arendt. Hoje diríamos que não era politicamente correta. Colocava sempre um problema que incomodava os outros e nunca procurava a resposta fácil, mas deixava o problema em cima da mesa e dava-nos várias saídas, nenhuma delas confortável. Por isso, interessava-me muito por ela.

Uma história partilhada
créditos: Bertrand

Porque incluiu no mesmo capítulo escritoras, poetisas e freiras?

Há muitos anos, ao ler um livro do ensaísta Octavio Paz, a propósito da figura de Juana Inés de la Cruz [freira do século XVII], ela afirmava que se tinha tornado freira para poder pensar. Essa frase teve um impacto enorme em mim. E apercebi-me de que era verdade, que nos séculos XVI e XVII, muitas mulheres estavam condenadas a passar da casa do pai para a casa do marido. Não havia meio-termo. A única forma de terem uma vida própria era num convento. É preciso dizer que estamos a falar de mulheres que pertenciam à nobreza ou às classes abastadas. Não eram as mulheres do povo. O que estas mulheres fazem é dizer: "Não. Eu quero escrever, quero outra coisa". E, portanto, o convento era a saída, como dizia Octavio Paz, para poder pensar, para poder escrever, para ter uma vida intelectual. E percebi que havia muitas mulheres que tinham encontrado nos conventos a forma de continuarem a ser elas próprias.

A personalidade que, realmente, me abalou foi a alemã Hannah Arendt. Hoje diríamos que não era politicamente correta.

Porque foi Dona Emilia Pardo Bazán uma feminista inesperada como escreve no seu livro? O rol de atividades desta mulher é espantoso: romancista, jornalista, ensaísta, crítica literária, poetisa, tradutora, dramaturga, editora, catedrática.

Porque de certeza que Dona Emília nunca pensou que era feminista. Mas era feminista sem que o soubesse. Era uma mulher que vivia e fazia o que queria, independentemente das convenções do seu tempo. Era uma mulher absolutamente livre. Fê-lo quando alcançou uma posição social que a apoiava, mas acima de tudo teve uma enorme coragem. É uma mulher que nunca deu um passo atrás no exercício da sua liberdade e no papel que ocupou na sociedade do seu tempo.

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No seu livro fala-nos da Geração de 98 [século XIX] e da Geração de 27 [século XX] em Espanha. Quer explicá-las aos leitores portugueses?

São duas gerações muito importantes do ponto de vista literário em Espanha. A geração de 98 é uma geração derrotada, é a geração da Espanha que perdeu as suas colónias, a Espanha que deixou de ser um império. É a Espanha que não se encontrava a si própria. E começou a olhar para os intelectuais da época. As mulheres também começaram timidamente a alargar o seu espaço. Houve uma redescoberta de mulheres escritoras que eram realmente interessantes. São mulheres que viveram a mudança, que começaram a correr mundo.

E a Geração de 27?

A Geração de 27 é filha da República. Foi um momento da nossa história em que as liberdades foram alargadas a todos, em que as mulheres começaram a ter acesso à educação, acesso com dificuldade também à universidade. Há grupos de mulheres intelectuais nos liceus, que eram centros de debate, um ponto de encontro para as mulheres que escreviam, para as mulheres que pintavam, para as mulheres que não queriam estar na esfera familiar.

Há que dizer que se trata de uma geração de mulheres que era de alguma forma privilegiada. Ou seja, isso não se estendia ao resto da sociedade. Mas, há de facto uma geração de mulheres muito importante. Entre elas, Luisa Carnés era a única mulher que vinha da classe operária. Todas as outras vinham da burguesia com um meio familiar que as tinha ajudado a desenvolver-se intelectualmente.

Quando terminou o livro o que mudou em si na forma como olha para as mulheres?

Bem, a verdade é que o livro me deu uma enorme satisfação interior e ao mesmo tempo também um pouco de frustração, fruto de todas as mulheres que ‘deixei no tinteiro’. Ou seja, há centenas de mulheres cujas histórias têm de ser contadas e que não incluí no meu livro. E a frustração de perceber que estas batalhas que nós, mulheres, travámos no Ocidente, não chegaram a outras mulheres, noutras partes do mundo. Não posso ficar satisfeita enquanto houver mulheres no Afeganistão presas dentro de uma burca. Não posso ficar satisfeita quando as raparigas no Afeganistão, no Irão e em tantos outros países, não têm acesso à educação simplesmente por serem raparigas.

Não posso ficar satisfeita quando há milhares de raparigas que, todos os anos, ainda crianças, são oferecidas em casamento sem poderem escolher. Não posso ficar satisfeita quando há mulheres que sofrem mutilações em nome de costumes que têm de ser combatidos.

Créditos da imagem de abertura do artigo.