Em 1938, na cidade de Boston, começou um dos mais extraordinários estudos científicos feitos até à data sobre a felicidade: o hoje famoso “Estudo de Harvard sobre o Desenvolvimento Adulto”. Os participantes originais (bem como os seus filhos e netos) foram acompanhados ao longo de 84 anos – do berço até à morte. Foram entrevistados, medidos e pesados, fizeram análises ao sangue e eletroencelefogramas. As suas histórias foram analisadas e cruzadas com outros estudos científicos, sempre à procura de uma resposta: qual é a chave para uma boa vida? Tema que dá mote ao livro Uma Boa Vida - Lições do Maior Estudo Científico de Sempre Sobre a Felicidade (edição Lua de Papel), assinado por Marc Schulz, psicólogo, e Robert Waldinger, psiquiatra, ambos envolvidos como investigadores no trabalho já citado.
De acordo com os autores, a saúde e a felicidade não se alimentam do sucesso financeiro ou profissional, mas sim da qualidade das nossas relações pessoais. Os professores catedráticos Robert Waldinger e Marc Schulz, atuais diretores do estudo, oferecem-nos no presente livro as suas conclusões – e muitos conselhos práticos. Uma obra que relata histórias reais e apresenta testemunhos de três gerações de participantes. “No fim, ficaremos com duas certezas: todos podemos aspirar uma vida melhor – e nunca é tarde para começar”, lemos na apresentação ao livro.
De Uma Boa Vida publicamos o excerto que pode ler abaixo:
O que está na origem de uma vida boa?
Quando se lhes pergunta o que querem da vida, uma coisa que muitas pessoas dizem é que querem apenas “ser felizes”. Para ser sincero, Bob poderia responder à pergunta da mesma forma. É incrivelmente vago e, ao mesmo tempo, de alguma forma diz tudo. Marc, provavelmente, demoraria uns instantes e depois diria: “É mais do que isso”. Mas o que significa felicidade? Como é que se manifestaria na sua vida?
Uma forma de encontrar algumas respostas para esta pergunta pode ser, simplesmente, perguntar às pessoas o que as deixa felizes e, depois, encontrar pontos em comum. No entanto, como lhe vamos mostrar, seria melhor aceitarmos todos a dura verdade de que as pessoas são péssimas no que diz respeito a saberem o que é bom para elas. Vamos abordar isto mais tarde.
Mais importante do que saber de que forma as pessoas responderiam à pergunta, temos os mitos não verbalizados e interiorizados acerca daquilo que torna uma vida feliz. Há muitos, mas o principal entre esses mitos é a ideia de que a felicidade é algo que se alcança. Como se fosse um prémio que se pudesse emoldurar e pendurar na parede. Ou como se fosse um destino e, depois de ultrapassar todos os obstáculos do caminho, chegássemos finalmente lá e depois desfrutássemos dela para o resto da vida.
É óbvio que as coisas não funcionam assim. Há mais de dois mil anos, Aristóteles usou um termo que ainda é amplamente utilizado hoje em dia na psicologia: eudemonia. Refere-se a um estado de profundo bem-estar em que a pessoa sente que a sua vida tem significado e propósito. É muitas vezes contrastado com hedonia (a origem da palavra hedonismo), que se refere à felicidade passageira dos prazeres. Explicando de outra forma, se a felicidade hedónica é aquilo a que nos referimos quando dizemos que estamos a passar por um bom momento da vida, então, a felicidade eudemónica é aquilo a que nos referimos quando dizemos que a vida é boa. É uma sensação de que, para além daquele momento, independentemente de ser muito prazeroso ou péssimo, a nossa vida vale alguma coisa e é valiosa para nós. É o género de bem-estar que pode durar tanto nos bons como nos maus momentos da vida.
Não se preocupe, não vamos estar a sempre a falar na “sua felicidade eudemónica”. Mas vale a pena explicar brevemente sobre o que vamos estar a falar e o que significa.
Alguns psicólogos opõem-se à palavra “felicidade”, porque pode significar qualquer coisa, desde um prazer temporário a uma sensação quase mítica de propósito eudemónico que poucos conseguem de facto atingir. Portanto, em vez de felicidade, termos mais diferenciados como “bem-estar”, “prosperidade” e “florescimento” tornaram-se habituais na literatura psicológica.
Usamos esses termos neste livro. Marc gosta especialmente dos termos prosperidade e florescimento porque se referem a um estado ativo e constante de estar, em vez de apenas a uma disposição. Mas ainda usamos “felicidade” às vezes, pela simples razão de que é assim que as pessoas falam acerca das suas vidas. Ninguém diz: “Como está o teu florescimento humano?” Dizemos: “Estás feliz?”
É assim que, em conversas de ocasião, damos por nós também a falar sobre a nossa pesquisa. Falamos sobre saúde e felicidade, significado e propósito. Mas referimo-nos à felicidade eudemónica. E apesar da incerteza acerca do mundo, quando as pessoas param para pensar sobre aquilo que realmente significa, é um termo natural. Quando um casal descreve o seu novo neto e diz “estamos muito felizes”, ou quando alguém na terapia descreve o seu casamento como “infeliz”, é óbvio que a palavra se refere a uma qualidade duradoura da vida, e não apenas a um sentimento passageiro. É neste espírito que usamos o termo neste livro.
Pode estar a questionar como podemos ter tanta certeza de que os relacionamentos desempenham um papel tão central na nossa saúde e felicidade. Como é possível separar os relacionamentos das situações económicas, da sorte e do azar, da infância difícil, ou de qualquer outra das importantes circunstâncias que afetam a forma como nos sentimos a cada dia? Será mesmo possível responder à pergunta: O que torna a vida boa?
Após estudarmos centenas de vidas inteiras, podemos confirmar aquilo que todos nós já sabemos bem lá no fundo — que há uma enorme variedade de fatores que contribuem para a felicidade de uma pessoa. O equilíbrio delicado entre as contribuições económica, social, psicológica e de saúde é complexo e está em permanente mudança. Raramente é possível dizer, com total confiança, que um único fator causa um resultado, e as pessoas vão sempre surpreender-nos. Dito isto, existem mesmo respostas a esta pergunta. Quando olhamos para o mesmo tipo de dados, que se repetem ao longo do tempo, num grande número de pessoas e de estudos, começam a surgir padrões e a tornar-se claros os indicadores da prosperidade humana.
Entre os muitos indicadores da saúde e da felicidade, desde a boa alimentação ao exercício, passando pelo nível de rendimento, uma vida de bons relacionamentos destaca-se pelo seu poder e consistência.
O Estudo de Harvard não é o único estudo longitudinal de várias décadas sobre a prosperidade psicológica humana no mundo, e nós observamos de forma consistente e deliberada outros estudos, para ver se as descobertas são sólidas ao longo de diferentes épocas e com diferentes pessoas. Cada estudo tem as suas próprias idiossincrasias, por isso, a replicação das descobertas através de múltiplos estudos é cientificamente interessante.
A seguir temos alguns exemplos de outros estudos longitudinais que representam, de forma coletiva, dezenas de milhar de pessoas. Os “The British Cohort Studies” incluem cinco grandes grupos, com representatividade nacional, nascidos em anos específicos (começando com um grupo de baby boomers logo após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, incluindo um grupo de crianças nascidas no início do atual milénio) e têm-nos acompanhado ao longo de toda a vida.
O “Mills Longitudinal Study” acompanha um grupo de mulheres desde que acabaram o secundário, em 1958. O “Dunedin Multidisciplinary Health and Development Study” começou por estudar 91 por cento das crianças nascidas numa pequena cidade da Nova Zelândia, em 1972, e continua a segui-las até à meia-idade (e mais recentemente acompanha os filhos).
O “Kauai Longitudinal Study” decorreu durante três décadas e incluiu todas as crianças nascidas na ilha havaiana de Kauai, em 1955, a maioria das quais com antepassados japoneses, filipinos e havaianos.
O “Chicago Health, Aging, and Social Relations Study” (CHASRS) começou em 2002, com o estudo intensivo de um grupo diverso de homens e mulheres de meia-idade durante mais de uma década.
O estudo “Healthy Aging in Neighborhoods of Diversity Across the Life Span” (HANDLS) tem examinado a natureza e as fontes da disparidade na saúde de milhares de adultos negros e brancos (com idade entre os 35 e os 64 anos) na cidade de Baltimore, desde 2004.
Por fim, em 1947, o “Student Council Study” começou a seguir as vidas de mulheres e homens que foram eleitos como representantes estudantis nas faculdades de Bryn Mawr, Haverford e Swarthmore. Este estudo foi parcialmente planeado pelos investigadores que tinham desenvolvido o Estudo de Harvard e foi concebido explicitamente para apreender a experiência das mulheres, que não estavam incluídas na amostra inicial do Estudo de Harvard. Durou mais de três décadas e os arquivos dos materiais originais do estudo foram recentemente descobertos. Por causa da relação entre o “Student Council Study” e o Estudo de Harvard, vai poder conhecer algumas dessas mulheres neste livro.
Todos estes estudos, bem como o nosso Estudo de Harvard, são testemunhos da importância das relações humanas. Mostram que as pessoas que têm uma maior ligação à família, aos amigos e à comunidade são mais felizes e fisicamente mais saudáveis do que as pessoas que têm uma menor interligação. As pessoas que vivem mais isoladas do que gostariam acabam por ver a sua saúde declinar mais cedo do que as pessoas que se sentem conectadas com as outras. As pessoas solitárias também vivem vidas mais curtas. Infelizmente, esta sensação de falta de conectividade com os outros está a crescer em todo o mundo. Cerca de um em cada quatro norte-americanos relata sentir-se só, o que equivale a mais de 60 milhões de pessoas. Na China, a solidão entre os adultos mais velhos aumentou consideravelmente nos anos mais recentes, e a Grã-Bretanha nomeou um ministro da Solidão para lidar com aquilo que se tornou um enorme desafio de saúde pública.
São os nossos vizinhos, os nossos filhos, nós próprios. Existem inúmeras razões sociais, económicas e tecnológicas para isto, mas, independentemente das causas, os dados não podiam ser mais claros: a sombra da solidão e da desconexão social assombra o nosso mundo “conectado” moderno.
Neste preciso momento, deve estar a interrogar-se se é possível fazer alguma coisa acerca da sua própria vida. As qualidades que nos tornam sociais ou tímidos estão simplesmente incorporadas na nossa personalidade? Estamos destinados a ser amados ou a ser solitários, destinados a ser felizes ou infelizes? As experiências da nossa infância definem-nos para sempre? Fazem-nos muitas vezes este tipo de perguntas. Na realidade, a maioria delas resume-se a este medo: Já é demasiado tarde para mim? Isto é uma coisa em que o Estudo de Harvard tem trabalhado para obter respostas. O anterior diretor do estudo, George Vaillant, passou uma parte considerável da carreira a estudar se a maneira como as pessoas reagem aos desafios da vida — a forma como lidam com as situações — pode mudar. Graças ao trabalho de George e ao trabalho de outros, podemos dizer que a resposta a esta eterna pergunta: Já é demasiado tarde para mim?, é um definitivo NÃO.
Nunca é tarde demais. É verdade que os nossos genes e as nossas experiências moldam a forma como vemos o mundo, a maneira como interagimos com as outras pessoas, e a forma como reagimos aos sentimentos negativos. E é realmente verdade que as oportunidades de desenvolvimento económico e de dignidade humana básica não estão igualmente disponíveis para todos, e que alguns de nós nascem em posições de significativa desvantagem. Mas a forma de estarmos no mundo não está inscrita na rocha. É mais como se estivesse escrita na areia. A nossa infância não é o nosso destino. A nossa disposição inata não é o nosso destino. O bairro em que crescemos não é o nosso destino. A pesquisa mostra isto com grande clareza. Nada daquilo que aconteceu na nossa vida nos exclui de nos conectarmos com os outros, de prosperarmos, ou de sermos felizes. As pessoas pensam, muitas vezes, que assim que chegarem à idade adulta já está — que a sua vida e a sua forma de viver está estabelecida. Mas aquilo que descobrimos ao olhar para a globalidade da pesquisa sobre o desenvolvimento adulto é que isto não é de todo verdade. É possível mudar de forma significativa.
Usámos uma frase específica há uns instantes. Falámos acerca das pessoas que estão mais isoladas do que gostariam. Usámos esta frase por uma razão: a solidão não é apenas a separação física dos outros. O número de pessoas que conhecemos não determina necessariamente a nossa vivência de conectividade ou de solidão. Nem sequer as condições de vida ou o estado civil. É possível estar solitário numa multidão e é possível estar solitário num casamento. Na realidade, sabemos que os casamentos de elevada conflitualidade, com pouca afeição, podem ser piores para a saúde do que o divórcio.
Em vez disso, é a qualidade dos nossos relacionamentos que é importante. Dito de uma forma simples, viver no meio de relacionamentos afetuosos tanto protege a mente como o corpo.
Este conceito é importante, o conceito de proteção. A vida é difícil e, às vezes, ataca-nos de frente. Relacionamentos afetuosos e com conexão protegem-nos dos chutos e pontapés da vida e do envelhecimento.
Depois de termos acompanhado as pessoas do Estudo de Harvard até à casa dos 80 anos, queríamos voltar a observá-los na meia-idade, para ver se conseguíamos prever quem é que se tornaria um octogenário feliz e saudável e quem não o seria. Portanto, reunimos tudo o que sabíamos acerca deles, de quando tinham 50 anos, e descobrimos que não eram os níveis de colesterol a meio da vida que previam como é que iam envelhecer, era o grau de satisfação que sentiam com os seus relacionamentos. As pessoas que estavam mais satisfeitas com os seus relacionamentos quando tinham 50 anos eram as mais saudáveis (mental e fisicamente) aos 80.
Ao investigarmos mais esta relação, as provas continuaram a aumentar. Os nossos homens e mulheres mais felizes com os seus parceiros relataram, aos 80 anos, que nos dias em que tinham mais dor física, a sua disposição se mantinha igualmente feliz. Mas quando as pessoas em relacionamentos infelizes relatavam dor física, a sua disposição piorava, causando também dor emocional adicional. Outros estudos chegaram a conclusões semelhantes acerca do poderoso papel dos relacionamentos.
Seguem-se alguns dos principais exemplos de alguns dos estudos mencionados anteriormente:
Com um grupo de 3 720 adultos negros e brancos (com idades entre os 35 e os 64 anos), o estudo “Healthy Aging in Neighborhoods of Diversity Across the Life Span” (HANDLS) descobriu que os participantes que relatavam receber mais apoio social também relatavam menos depressão.
No “Chicago Health, Aging, and Social Relations Study” (CHASRS), um estudo representativo dos residentes de Chicago, os participantes que estavam em relações satisfatórias reportavam níveis mais elevados de felicidade.
Num estudo realizado a partir de um conjunto de nascimentos em Dunedin, na Nova Zelândia, as relações sociais na adolescência previam melhor o bem-estar na idade adulta do que o sucesso académico.
A lista continua. Mas é claro que a ciência não é a única área do conhecimento humano que tem alguma coisa a dizer sobre a forma de viver bem. Na realidade, a ciência acabou de chegar à discussão.
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