Todos os dias enfrentamos dificuldades, mas não compreendemos porquê. Queremos mudar, mas não conseguimos perceber por onde ou como começar. Perguntamo-nos: Porque é que fiz aquilo? Porque é que não consigo dormir? Porque é que não consigo parar de comer? Que raio se passa comigo?
De acordo com a psicoterapeuta britânica Annie Zimmerman são as perguntas que fazemos a nós próprios que podem não estar corretas. Ensinam-nos muitas coisas no início da nossa vida, mas raramente nos ensinam a lidar com as dificuldades emocionais. À medida que crescemos, não compreendendo verdadeiramente as nossas mentes e as nossas relações, acabamos por ficar presos em padrões nocivos.
Com o livro Terapeuta de Bolso (edição Nascente), a autora entrega ao leitor os conhecimentos que se aprendem na sala de terapia. O guia combina ferramentas práticas com histórias reais.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Que aconteceu com Jay?
Jay agarra‑se à terapia quase tão rapidamente como se agarrou a Yaz. Tudo o que eu dizia era fantástico, cada sessão era transformadora. Entre sessões, pensava imenso, e vinha para a sessão seguinte a rebentar com novas memórias e pensamentos que andara a armazenar para depois me contar. Lança ohs e ahs enquanto eu falo, de olhos esbugalhados, como um rapazinho a comer gelado pela primeira vez.
Esta intensidade pode acontecer quando alguém começa a pensar em si mesmo pela primeira vez; há grande expectativa e excitação em ver as coisas sob uma nova perspetiva e haver alguém a ouvir‑nos, muitas vezes pela primeira vez na vida. Mas há algo nos encómios obsessivos de Jay que parece ser um pouco irreal. Estará ele a idealizar‑me tal como idealizou Yaz? Não vou negá‑lo: ser idealizado desta maneira é um conforto para um ego, mas representa também imensa pressão, como se tudo o que eu dissesse tenha de estar perfeitamente sintonizado e ser muito profundo, para estar à altura da versão que ele tem de mim na sua cabeça.
Depois, acontece o inevitável: faço algo de errado. Engano‑me no seu nome. É um lapso, que corrijo rapidamente e pelo qual peço desculpa de imediato, mas o mal está feito. O seu desapontamento é palpável. Consigo vê‑lo na forma como o seu corpo se empertiga, como os seus olhos se desviam, recusando cruzar‑se com os meus.
— Peço desculpa — repito. — O Jay parece magoado.
— Está tudo bem — responde ele, de olhos ainda a pairar.
O seu recuo é agressivo; sinto‑me como se tivesse cometido um terrível pecado, sem reparação possível. Jay não comparece à sessão seguinte. Pergunto‑me se estará zangado comigo, se é demasiado difícil vir à sessão e dizer‑mo, se me está a castigar ao manter‑se afastado. Depois, recebo um e‑mail:
«Cara Annie, não posso continuar a ir às sessões, obrigado por tudo.»
Levei algum tempo a compreender o que aconteceu, e poderei nunca o compreender por completo, mas desconfio de que, tal como com Yaz, Jay não conseguiu tolerar as minhas imperfeições.
Para algumas pessoas, sobretudo para aquelas que no passado foram desapontadas com gravidade, as pessoas são vistas ou como boas ou como más. É o que acontece mesmo se a pessoa não teve intenção de nos magoar, ou partiu sem ter culpa absolutamente nenhuma. A morte de Malik ensinou a Jay que as pessoas de quem ele gosta o deixam, e portanto não se pode confiar nas pessoas. Assim que alguém nos magoa (mesmo sem intenção) ou comete um erro, o nosso cérebro de criança parte do princípio de que a pessoa já não é boa e que já não se pode confiar nela. Na verdade, as pessoas não são boas ou más; todos nós somos capazes de magoar os outros e de cometer erros, mesmo se fazemos o melhor possível e não temos intenção de o fazer. Quando, como Jay fez comigo e com Yaz, idealizamos as pessoas, estamos a proteger‑nos da possibilidade de um dia poderem estragar tudo e magoar‑nos. Para estabelecermos relacionamentos próximos com as pessoas, temos de correr o risco de nos magoarmos.
Apesar de, conscientemente, querer a terapia e considerar que estava a ser benéfica, Jay sentiu como demasiado arriscada a proximidade e a vulnerabilidade da relação. Portanto, assim que eu cometi um erro e caí do pedestal, suponho que passou a ser demasiado assustador para ele manter a relação e arriscar‑se a que eu o magoasse de novo.
Fiquei com um sentimento de insatisfação e de tristeza por não ter sido capaz de ajudar Jay com esta experiência e falar de como o perturbei e como poderíamos ultrapassar isto. A idealização inicial que Jay fez de mim era uma fantasia. Os terapeutas nunca são perfeitos — ninguém é perfeito. Se Jay tivesse permanecido, aprendendo a aceitar que por vezes as pessoas cometem erros, e que isto é algo que temos de aprender a tolerar se queremos estar próximo das pessoas, então talvez tivesse aprendido a encontrar uma forma de passar de relacionamentos fantasiosos para o Grande Amor que tão desesperadamente queria.
Porque temos relacionamentos fantasiosos?
Os relacionamentos fantasiosos são uma defesa contra a intimidade. Enquanto vivemos dentro da nossa cabeça, não arriscamos o amor real. O amor é assustador. Quando nos permitimos amar alguém, ficamos vulneráveis. Arriscamos que a outra pessoa mude de ideias, se vá embora, nos engane com outra pessoa, morra. Não consigo enfatizar o suficiente quantos de nós andamos a sabotar relações amorosas porque, bem lá no fundo, temos muito medo de nos magoarmos. Isto é especialmente verdadeiro se fomos magoados no passado, quer na infância, quer na fase adulta. Estamos à espera de que o mesmo volte a suceder, deixando‑nos relutantes quanto a deixar alguém aproximar‑se de nós.
Perseguir alguém que está indisponível, com quem criámos todo um relacionamento na nossa cabeça, é uma forma de minimizar este risco. Podemos dizer que queremos um relacionamento, podemos passar fanaticamente a vida em encontros e andarmos obcecados com estar com pessoas, mas o nosso comportamento conta uma história diferente. Sabotamos relacionamentos, escolhemos pessoas indisponíveis, rejeitamos pessoas que gostam de nós e perseguimos outras que não gostam.
Embora muito do que eu disse até agora implique olhar para trás para nos compreendermos, às vezes as nossas questões não têm apenas que ver com o passado, mas com o futuro e o que este reserva. O futuro traz consigo o tempo, o envelhecimento e a perda que ambos representam. Por trás dos relacionamentos fantasiosos pode às vezes estar um desejo de nos mantermos crianças, ainda ligadas aos nossos pais.
Muitos de nós não querem crescer e entrar em relacionamentos adultos, com toda a intimidade e dor potencial que estes podem trazer. Vejamos em pormenor algumas das razões pelas quais fugimos dos relacionamentos, ao olhar para o passado, para o presente e para o futuro.
1. PASSADO. No passado, fomos magoados, quer fosse pelos nossos pais, pelos amigos na escola, por relacionamentos anteriores. Se aprendemos que os relacionamentos nos trazem dor, esperaremos que cada relacionamento decorra da mesma forma. Fantasiar acerca de pessoas e andar atrás de pessoas que não podemos ter ou cujo sentimento não é recíproco evita termos de passar por todo esse sofrimento mais uma vez.
2. PRESENTE. Não queremos estar no presente. No presente, sentimo‑nos sozinhos e envergonhados por todos os nossos amigos terem relacionamentos, enquanto nós estamos solteiros. Se calhar, não queremos sentir essa dor e, portanto, criamos histórias em que a vida é diferente, sem vergonha ou solidão. Ou talvez tenhamos um relacionamento mas estejamos presos na fantasia de que será diferente; não queremos aceitar a experiência atual de estar com essa pessoa, porque, se o fizéssemos, teríamos de nos ir embora. Vivemos numa fantasia para evitar a realidade.
3. FUTURO. Não queremos crescer. Se ainda não nos separámos emocionalmente dos nossos pais, torna‑se mais difícil ter relacionamentos adultos sérios. Se estivemos muito próximos dos nossos pais, mas eles tinham tendência para não nos ver como uma pessoa separada deles, poderemos estar ainda «enredados» neles. Costuma ser o que acontece no tipo de relação com fronteiras que estão fundidas, em que nos sentimos responsáveis pelas emoções dos nossos pais e lutamos para ter opiniões diferentes ou fazer coisas que eles não aprovam. Muitas vezes, quando ainda estamos enredados com os nossos pais, pode ser um desafio desenvolver relacionamentos amorosos adultos, porque parte de nós não quer deixar a sua família.
Como se afastar de relacionamentos fantasiosos
Para abandonarmos relacionamentos fantasiosos e enveredarmos por relacionamentos reais, é importante reconhecer que há uma parte de nós que provavelmente tem medo de estar num relacionamento real. É importante identificar e dar nome àquilo de que temos medo. Pensemos nos relacionamentos que nos magoaram e entremos em contacto com a parte assustada e vulnerável de nós mesmos.
Ao reconhecermos e aceitarmos essa parte, torna‑se menos provável fugirmos. Depois, podemos então refletir no que essas fantasias nos estão a mostrar — elas podem ensinar‑nos aquilo que realmente queremos. Devemos refletir nas nossas fantasias, aprender o que está a faltar na nossa vida e tentar encontrar formas de cumprir esses desejos, quer seja por via de relacionamentos amorosos ou outra coisa qualquer.
Depois, podemos tentar satisfazer essas necessidades por outros meios. Encontrar um amigo com quem partilhar hobbies ou experiências, para ganharmos mais segurança quanto à nossa própria ideia de quem somos. Se conseguirmos satisfazer as nossas necessidades fora de um relacionamento, haverá muito menos pressão para este ter de corresponder às nossas fantasias.
E se um relacionamento for algo que queremos, temos de arriscar. Isto significa manter o relacionamento mesmo quando a pessoa não é perfeita, fazendo o nosso melhor para que as coisas funcionem, desafiando o nosso sabotador interno quando este entra em ação. Sim, abrirmo‑nos ao amor significa que podemos magoar‑nos, mas prometo‑lhe que não haverá problema, porque, mesmo que as coisas corram mal, ainda nos temos a nós mesmos. E não há ninguém que consiga tirar‑nos isso.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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