A estupidez é uma força poderosa. Quando bem disfarçada, tende a ser coletivamente aceite, contribuindo para a manutenção do status quo e impedindo tanto a progressão individual como a evolução social. Esta é uma das premissas centrais do livro Como reconhecer um estúpido (num mundo cheio deles), o provocador ensaio do austríaco Robert Musil — escritor, filósofo e ensaísta — que explora o conceito de estupidez não como simples ausência de inteligência, mas como um fenómeno mais vasto e complexo.

Para Musil, a estupidez pode manifestar-se de formas subtis e perigosas, especialmente quando mascarada de conhecimento ou sabedoria, infiltrando-se nas esferas social e intelectual com efeitos profundamente nocivos. A sua análise antecipa com notável precisão os mecanismos psicológicos e sociais que ainda hoje sustentam discursos autoritários ou pseudocientíficos, legitimados apenas pela aparência de autoridade.

O texto que dá origem a este livro foi inicialmente concebido como uma palestra, proferida por Musil em 1937. Intitulada Über die Dummheit — “que teria como tradução mais direta Sobre a Estupidez”, lemos na introdução da presente edição portuguesa com chancela da Ideias de Ler — “o texto mantém uma inegável relevância nos dias de hoje. A estupidez, tal como descrita pelo autor, manifestava-se de múltiplas formas na sociedade da primeira metade do século XX, mas continua amplamente presente na sociedade contemporânea. Talvez não seja exagerado pensar que muitos de nós, ao observarmos o mundo à nossa volta, sintamos que estamos rodeados de estúpidos. Contudo, é bem provável que aqueles que nos rodeiam pensem exatamente o mesmo, fazendo de nós, na sua perspetiva, os verdadeiros estúpidos. Quem terá razão?”, destaca a nota do editor, incluída nesta recente edição lançada nas livrarias nacionais no mês de junho.

Como reconhecer um estúpido? E porque é importante fazê-lo? Os perigos da estupidez disfarçada de sabedoria
Como reconhecer um estúpido? E porque é importante fazê-lo? Os perigos da estupidez disfarçada de sabedoria Robert Musil em 1930. créditos: Wikimedia Commons

A mesma nota distingue entre dois tipos de estupidez: a “estupidez honesta” e a “estupidez superior”. A primeira, segundo Musil, refere-se a pessoas com um raciocínio lento ou desajeitado. Já a segunda é mais perigosa, pois surge em indivíduos que se atribuem méritos e capacidades que na realidade não possuem. O autor aprofunda também a relação entre estupidez e vaidade, bem como a ideia de que a estupidez não se deve necessariamente à falta de intelecto. De igual relevo é o alerta de Musil para os perigos da estupidez coletiva — quando grupos inteiros, ainda que bem-intencionados, adotam ideias ou tomam decisões absurdas apenas porque estas são amplamente aceites ou convenientemente ignoradas. Esta reflexão revela-se particularmente pertinente num contexto de crescente polarização política e social.

Robert Musil, autor da obra O Homem sem Qualidades, foi uma das figuras mais relevantes da literatura e do pensamento europeu do século XX. Nascido em 1880, na Áustria, formou-se em engenharia e filosofia, áreas que influenciaram o seu rigor analítico e o seu olhar crítico sobre a sociedade. A sua escrita, marcada por uma combinação de precisão científica e sensibilidade literária, reflete uma constante inquietação com as contradições do mundo moderno.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Minhas senhoras e meus senhores!

Hoje em dia, quem quer que se atreva a falar de estupidez, corre o risco de ser ofendido de diversas maneiras: pode ser interpretado como arrogância, pode até ser interpretado como uma perturbação da evolução contemporânea. Eu próprio escrevi há vários anos: «Se a estupidez não se assemelhasse tanto ao progresso, ao talento, à esperança ou ao aperfeiçoamento, ninguém iria querer ser estúpido.» Isso foi em 1931; e não há ninguém que se atreva a duvidar de que o mundo conheceu progressos e aperfeiçoamentos desde essa altura! Assim, começa a surgir aos poucos uma certa urgência na questão: o que é, ao certo, a estupidez?

Também não quero ignorar o facto de, como poeta, conhecer a estupidez há imenso tempo, e poderia mesmo dizer que, por vezes, tive uma relação colegial com ela! E assim que um homem abre os olhos para a poesia, vê-se confrontado com uma resistência quase indescritível, que parece poder assumir todas as formas: seja pessoal, como a respeitável forma de um professor de história literária que, habituado a apontar para distâncias desmedidas, erra desastrosamente o alvo no que diz respeito à atualidade; seja esta uma forma geral e imaterial, como a transformação do juízo crítico em juízo comercial, uma vez que Deus, na sua bondade insondável, também concedeu a linguagem do homem aos cineastas do cinema sonoro. Já descrevi outros fenómenos deste género, por uma ou duas vezes; mas não é necessário repeti-los nem completá-los (e até pareceria impossível, tendo em conta a tendência para a grandeza que tudo hoje possui): é suficiente frisar, como conclusão inegável, que a natureza desprovida de arte de um povo não se exprime apenas nas épocas más e de uma forma grosseira, mas também nas épocas boas e sob qualquer forma, de tal maneira que a repressão e a proscrição apenas diferem em grau, relativamente aos doutoramentos honoris causa, às nomeações académicas e às cerimónias de entrega de prémios.

Como reconhecer um estúpido? E porque é importante fazê-lo? Os perigos da estupidez disfarçada de sabedoria
Como reconhecer um estúpido? E porque é importante fazê-lo? Os perigos da estupidez disfarçada de sabedoria créditos: Ideias de Ler

Desde sempre que desconfio que tal resistência multifacetada à arte e ao espírito mais requintado, por parte de um povo que se orgulha do seu amor por esta, não passa de estupidez, talvez de um tipo particular de estupidez, uma estupidez especialmente artística e talvez também emocional, mas que, em todo o caso, se manifesta de tal forma que aquilo a que chamamos de «bela espiritualidade» acaba por ser também uma bela estupidez; e ainda hoje não vejo muitas razões para me afastar desta opinião. É claro que não se pode culpar a estupidez por tudo o que desvirtua uma vontade tão inteiramente humana como a da arte; tal como nos ensinaram as experiências dos últimos anos, também deve haver lugar para os vários tipos de ausência de personalidade. Contudo, não se deve alegar que o conceito de estupidez não tem aqui qualquer lugar, uma vez que remete para a mente, e não para os sentimentos, enquanto que a arte depende destes. Isso seria um erro. Até o prazer estético é julgamento e sentimento. E peço-vos permissão não só para acrescentar a esta grandiosa premissa, que pedi emprestada a Kant, a recordação de que Kant fala de um julgamento estético e de um julgamento de gosto, como também para repetir os princípios a que esta nos leva:

Tese: o julgamento do gosto não é baseado em conceitos; se fosse, isso seria motivo para um debate (que seria decidido através de provas).

Antítese: este é baseado em conceitos, pois, de outra forma, nunca seria algo discutível (o processo de procura de uma unanimidade).

Agora gostaria de vos perguntar se não é óbvio de que não existe, na política e no caos da vida diária, um julgamento e um criticismo similar, acompanhado de semelhantes contradições? E onde se podem encontrar juízos e razões, não devemos esperar também encontrar os seus pequenos irmãos e irmãs, as várias formas de estupidez? É esta a importância do assunto em questão. Erasmo de Roterdão escreveu no seu charmoso, e ainda valioso, livro, Elogio da Loucura, que, não fosse ter acontecido um ato de verdadeira estupidez, a humanidade nunca teria aparecido neste mundo!

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.