
“Fomos os primeiros a acabar com a pena de morte”. De acordo com o historiador Ricardo Raimundo, “aqui está um bom exemplo de uma mentira repetida tantas vezes que acabou promovida a verdade absoluta”. O mestre em História Moderna entrega este mês de junho aos escaparates nacionais o livro Fact-Checking à História de Portugal, obra com o subtítulo, “verdades e mitos dos séculos XIX, XX e XXI”. No livro com a chancela da Manuscrito, Ricardo Raimundo desmonta mitos como aquele que abre estas linhas: “não só não fomos os primeiros, como mantivemos a pena capital, em certos contextos, até bastante mais tarde do que outros países”.
Nas perto de 280 páginas do seu novo livro, o historiador desmonta “mentiras com perna curta” e analisa as versões mais populares – e nem sempre verdadeiras – da nossa História. Entre os temas tratados pelo autor na presente obra figuram questões como “foi Portugal um país pioneiro na abolição da escravatura?”, “era ou não fascista o regime liderado por Oliveira Salazar?”, “afinal, quando nasceram os três grandes do futebol português?”, “foi o 25 de Abril de 1974 uma revolução pacífica, sem sangue e sem mortos?”.
Escreve Ricardo Raimundo na introdução ao seu livro: “Num momento em que assistimos ao extremar das ideologias políticas, observamos frequentemente a manipulação dos factos e acontecimentos não só históricos, mas também do presente para justificar determinado tipo de teses. Acima de tudo, vemos o passado ser julgado com os olhos do presente, às vezes por parte de quem tem a obrigação institucional de não o fazer”
Ricardo Raimundo é colaborador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Colaborou no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições afins em Portugal e é autor de uma dezena de livros de divulgação histórica, entre eles Enigmas e Mistérios da História de Portugal, História de Portugal para Gente Curiosa, Grandes Vinganças da História de Portugal.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
Galo de Barcelos: símbolo de Portugal desde sempre ou criação do Estado Novo?
Qualquer turista que percorra as inúmeras lojas de recordações espalhadas pelas cidades de Lisboa ou Porto, ou em qualquer outra parte de Portugal com expressão turística, facilmente se apercebe de que existe uma figura reproduzida nos mais variados itens — desde os tradicionais pins até às miniaturas, passando pelos porta‑chaves, estampagens em T‑shirts, imagens, tudo nos mais diversos formatos, desde os mais pequenos até aos que impõem respeito. Falamos do Galo de Barcelos. Assim sendo, é frequente que o incauto turista associe o galináceo ao símbolo que melhor representa Portugal e os portugueses. Não é de levar a mal, já que até estes últimos, principalmente os que menos atenção prestaram nas aulas de História, reconhecem como verdadeiro e antiquíssimo representante do país o Galo de Barcelos.
Na realidade, estamos perante mais uma das invenções do Estado Novo, principalmente de um homem: António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional (futuro Secretariado Nacional da Informação), o grande responsável, nas primeiras décadas do regime ditatorial de Salazar, pela sua propaganda e imagem. Foi ele o autor e o dinamizador da “política do espírito”, tendo gerido a representação de Portugal no estrangeiro. Foi ainda comissário‑geral das exposições internacionais de Paris, em 1937, e de Nova Iorque, em 1939.
Desempenhou igualmente um papel crucial naquela que foi a grande realização do Estado Novo, a Exposição do Mundo Português, no ano de 1940, tendo dirigido a Revista dos Centenários, órgão de propaganda da mesma. Foi o fundador do Museu de Arte Popular e da Companhia Portuguesa de Bailado Verde Gaio e o presidente da Emissora Nacional em 1941. Na lista de tradições populares que criou, contabilizam‑se, a título de exemplo, as marchas populares em Lisboa, surgidas no ano de 1932, a aldeia mais portuguesa de Portugal, em 1938, que terminou com a eleição de Monsanto, e o famoso Galo de Barcelos.

Foi em 1931 que o galo foi elevado, pela primeira vez, à condição de símbolo de Portugal, numa fase em que António Ferro se multiplicava em ideias e iniciativas. E alcançou essa função por um motivo muito simples: a necessidade, sentida por Ferro, enquanto responsável pela organização do V Congresso Internacional da Crítica Dramática, Musical e Literária, realizado em Lisboa, de gerar o espanto nos congressistas estrangeiros que ele tinha conseguido fazer deslocar a Portugal. Para esse efeito, ofertar‑lhes‑ia, como recordação, uma peça única de arte popular.
Concebido pelos ceramistas de Barcelos, o galo circulava pelas feiras da região havia já alguns anos, sem apresentar qualquer valor significativo. Aparecia conectado, como não podia deixar de ser, a uma lenda bastante antiga, que remontava ao período medieval. De acordo com a mesma, os habitantes de Barcelos andavam muito inquietos devido a um crime, cujo autor ainda não tinha sido descoberto. Em certo dia, surgiu um galego, que se transformou no principal suspeito, e as autoridades decidiram prendê‑lo. Todavia, ele jurava inocência, argumentando que estava simplesmente de passagem por aquelas terras, em direção a Santiago de Compostela e em cumprimento de uma promessa que fizera. Sentenciado à forca, o homem implorou, em desespero, que lhe fosse concedida autorização para se apresentar ao juiz que o condenara. Obtendo resposta favorável, levaram‑no à residência do magistrado, que naquele preciso momento se encontrava a desfrutar de uma bela refeição na companhia de alguns amigos. Voltando a reclamar inocência, ao ver que nenhum dos presentes parecia acreditar no que afirmava, o galego apontou para um galo assado que repousava sobre a mesa e proferiu: “É tão certo eu estar inocente como certo é esse galo cantar quando me enforcarem.” O juiz afastou o prato para o lado e não deu qualquer importância àquele apelo; todavia, quando o peregrino estava a ser enforcado, o galo assado ergueu‑se na mesa e cantou.
O magistrado, tomando consciência do erro que tinha cometido, apressou‑se a correr para a forca e foi então que viu que o galego se salvou devido a um nó malfeito na corda. O homem foi prontamente libertado e mandado em paz. Alguns anos mais tarde, o galego terá regressado a Barcelos para mandar esculpir o Cruzeiro do Senhor do Galo em honra da Virgem Maria e de Santiago. Nele, mandou erguer um padrão de pedra, representando Santiago a salvar um enforcado.
O povo daquela região adorava aquela história e, ao perceber isso, António Ferro encarregou o realizador Leitão de Barros, então seu braço‑direito na organização do Congresso da Crítica, de arranjar os galos. Aquela tarefa foi abruptamente perturbada e interrompida pela Revolta dos Caçadores, que deflagrou em Lisboa, a 26 de agosto de 1931. Os instigadores daquele movimento pretendiam derrubar a ditadura militar. Contando com a participação dos aviadores de Alverca, a conspiração era comandada pelo Tenente‑Coronel Fernando de Utra Machado, que fora ministro das Colónias do governo republicano de António Maria Baptista, pelo Major‑Aviador Sarmento de Beires, pioneiro da aviação, e pelo comandante Agatão Lança, antigo governador civil de Lisboa. A reação a este movimento surgiu de imediato. Lideradas pelo brigadeiro Daniel de Sousa, governador militar de Lisboa, e pelo General Farinha Beirão, da Guarda Nacional Republicana (GNR), as forças fiéis ao regime no poder controlaram a situação ao fim de nove horas de intenso combate, que provocou a morte de cerca de 40 pessoas. Os mandantes da conjura acabaram por ser deportados para Timor. António Ferro não participou diretamente no combate aos revoltosos, mas na defesa do governo alinharam o alferes Jorge Botelho Moniz, que com ele havia participado na revolta de 18 de abril de 1925 (o Golpe dos Generais, desencadeado contra as instituições da I República), e o Capitão David Neto, seu correligionário no Golpe dos Fifis.
Ultrapassado aquele episódio e retomada a normalidade, Leitão de Barros deu continuidade aos trabalhos de que Ferro o incumbira, sem saber muito bem por onde deveria começar a busca. Recordava‑se muito vagamente de ter visto uns galos, alguns anos antes, numa feira do Senhor de Matosinhos, mas pouco mais. Decidiu então pedir ajuda ao seu colega Artur Maciel, fervoroso entusiasta do trabalho de António Ferro e apoiante da ditadura, que conhecia dos tempos da sua passagem pela Ilustração Portuguesa, na época em que aquele era redator de O Século da Noite e tinha fama de “enciclopédico”. Não dispondo também de grande informação, Maciel decidiu pedir ajuda à família Couto Viana, natural de Viana do Castelo, que prontamente resolveu o enigma. De acordo com o testemunho da família, o referido galo nascera em 1925, inspirado na lenda, e dois anos depois começou a ser vendido nas feiras da região. Os críticos estrangeiros que foram agraciados com o galo adoraram a surpresa e contribuíram amplamente para a sua divulgação.
As primeiras peças produzidas eram vermelhas, por serem cozidas a altas temperaturas. No entanto, Ferro logo mandou introduzir um conjunto de alterações, como, aliás, era seu timbre, sugerindo que os galos fossem pintados de branco, preto e amarelo, primeiro, e de outras cores mais folclóricas, depois. Neste plano de transformação, contou com o contributo extremamente importante do pintor natural de Barcelos, Gonçalves Torres, que lhe aplicou cores garridas e estilizou a crista e a cauda.
A aparição internacional do Galo de Barcelos ocorreu em setembro de 1935, quando António Ferro, chefiando o Secretariado da Propaganda Nacional, levou a Genebra uma memorável exposição de arte popular. Aí, obteve um sucesso inesperado. Em 1937, na Feira Internacional de Paris, o pavilhão português obteve o Grand Prix e a olaria barcelense brilhou, mais uma vez devido ao seu galo.
Estes sucessos foram‑se repetindo: em 1939, na Feira Mundial de Nova Iorque e na Feira Internacional de São Francisco; em 1940, o galo voltou a triunfar na Exposição do Mundo Português, com a sua colocação em lugar bem visível no pavilhão dedicado à vida regional.

Foi aquele o momento escolhido para fazer dele, à vista de centenas de milhares de visitantes, nacionais e estrangeiros, o ícone que hoje conhecemos e que representa, muitas vezes, Portugal no estrangeiro. O animal voltaria a estar em destaque em 1947, na inauguração do Museu de Arte Popular, localizado em Belém, continuando, assim, a percorrer o caminho do sucesso. A atestar esta realidade, o Jornal de Barcelos, na sua edição de 2 de abril de 1959, concedia uma parte do seu espaço à transcrição de um telegrama que fora enviado de Paris, a 26 de março de 1959, no qual podia ler‑se: “[O]s galos de Barcelos inundam Paris, anunciando a Primavera. Era a internacionalização do Galo de Barcelos, enquanto marca do turismo português.
Entre os primeiros modelos e aqueles que figuraram na exposição de 1940, a morfologia do Galo de Barcelos evoluiu. Sofreria nova alteração já na década de 1950, período em que surgiu o negro como cor de fundo, que se tornou uma característica do atual galo. O aparecimento do negro deveu‑se à falta de pigmentos químicos durante a Segunda Guerra Mundial e à facilidade de obtenção da tonalidade, utilizando a cola de peixe como veículo e a fuligem das chaminés como pigmento.
Além disso, as técnicas anteriores à década de 30 do século XX não possibilitavam o fabrico de galos com mais de 15 centímetros de altura, sendo as peças dessa época, essencialmente, brinquedos com apito. Deste modo, os primeiros galos vermelhos, grandes e decorativos apareceram a partir dos anos 1930.
A partir da década de 1960, o galo parece ganhar vida própria. Surgem novas versões do animal, como os galos brancos, também conhecidos como «galos de noiva». Pensados pelo escritor e diretor do Palácio de Cristal do Porto, António Pinto Machado, por ocasião da realização dos casamentos de São João, estes objetos foram entregues pela primeira vez em 1961, no almoço realizado nos jardins do palácio. Cada um dos casais de noivos recebeu um galo pintado de branco e dourado, e a decorar as mesas estavam galos pintados da mesma forma e com corações vermelhos. Posteriormente, estes galos desceram até Lisboa para serem ofertados aos noivos de Santo António.
Lançadas as bases por António Ferro, foi já depois da sua morte que o galo ganhou ainda mais força como símbolo nacional. Em 1966, por ocasião da disputa do Mundial de Futebol em Inglaterra, foi a imagem da seleção nacional. No ano de 1974, num programa da estação de televisão italiana RAI, Portugal e o Galo de Barcelos foram as principais atrações.
No período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, o galo continuou a figurar em muitos cartazes de promoção de Portugal enquanto destino turístico. Apesar da mudança de regime, a imagem do país continuava muito similar à do Estado Novo: um país de tradições, de belas paisagens verdes, de sol e praia e, acima de tudo, muito hospitaleiro, graças à simpatia do seu povo.
Já em pleno século XXI, em 2007, a marca de cerveja Sagres, com o intuito de comemorar os 35 anos do lançamento da mini, convidou o ateliê de design Dasein a elaborar um conjunto limitado de rótulos especiais. Um deles tinha o Galo de Barcelos. No ano seguinte, o animal tornou‑se parte da coleção de primavera/verão do estilista Nuno Gama.
A Água do Vimeiro, no ano de 2010, elaborou uma campanha publicitária intitulada Ser Português, em que utilizava símbolos da nacionalidade numa coleção de oito molduras magnéticas. Acompanhando a sardinha, o azulejo, o elétrico, a caravela e a guitarra portuguesa, lá se encontrava o Galo de Barcelos. E, em 2015, a artista plástica Joana Vasconcelos foi convidada a reinterpretar tal símbolo, por ocasião das comemorações oficiais dos 450 anos do Rio de Janeiro. Assim, nasceu o Pop Galo, o símbolo ampliado a uma escala monumental. Com 3,5 toneladas de peso e cerca de dez metros de altura, revestem‑no, aproximadamente, 17 mil azulejos e cerca de 15 mil leds ocupam as superfícies coloridas da obra. Infelizmente, por questões imputadas à cidade brasileira, a obra acabou por não viajar para o outro lado do Atlântico e foi inaugurada em Lisboa, na zona da Ribeira das Naus, em 6 de novembro de 2016, aproveitando o facto de nessa semana ter início a Web Summit. Dali, viajou para Pequim, onde participou nas comemorações do ano chinês do galo, e esteve presente também em Bilbau.
Em dezembro de 2018, foi a vez de Barcelos, cidade que empresta o nome a este símbolo, acolher o Pop Galo. Não deixa de ser interessante que, por essa ocasião, a então secretária de Estado do Turismo tenha referido que “este galo é um dos seus [de Portugal] maiores símbolos, exibindo em todo o mundo as nossas tradições e autenticidades”, acrescentando que se encontrava em preparação uma campanha internacional do turismo português, no âmbito da qual a peça de Joana Vasconcelos seria usada para promover Portugal. Referiu ainda que o galo de Barcelos “é uma das peças mais simbólicas da nossa autenticidade”.
Com as devidas distâncias, não nos parece que o diretor do Secretariado da Propaganda Nacional se opusesse muito a estas declarações e estratégia. Deste modo se construiu um símbolo de Portugal. Não sendo visto como tal, transformou‑se, em função do trabalho de um homem, na representação de um povo, desde tempos remotos.
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