Em 2018, um pilar de mármore com 4.500 anos que permaneceu na cave do Museu Britânico durante 150 anos foi reconhecido como o primeiro marco a assinalar uma disputa de fronteira. Coube a Irving Finkel, curador do departamento de Médio Oriente do Museu Britânico, a decifrar as inscrições no bloco de pedra, talhadas em escrita cuneiforme e a descreverem uma longa e sangrenta disputa sobre uma exuberante extensão de terra reivindicada pelas cidades-estados rivais de Lagash e Umma.

O local exato da descoberta deste pilar com cerca de 50 cm permanece desconhecido, numa região algures na Mesopotâmia, território correspondente ao atual Iraque. Transportado desde a região, eventualmente através do recém-inaugurado Canal do Suez, ou contornando o Corno de África, para aportar meses mais tarde no rio Tamisa, em Londres.

Esta é uma das inúmeras narrativas que o historiador britânico James Crawford apresenta no seu livro O Poder das Fronteiras (edição Saída de Emergência), num périplo que nos leva às paisagens glaciares dos Alpes austríacos-italianos ao único local da Terra onde a Europa e África se encontram; do Walled off Hotel de Bansky, no conflito israelo-palestiniano, ao deserto de Sonora e às linhas fronteiriças EUA-México. Uma viagem que não esquece as fronteiras virtuais da Internet.

De O Poder das Fronteiras publicamos o excerto que nos leva, precisamente, ao momento em que o pilar de mármore da antiga Mesopotâmia é decifrado e um mundo antigo que mistura história com deuses desperta para o século XXI.

O Extremo da Planície

A minha mão tocava na fronteira mais antiga do mundo. Ou, pelo menos, a fronteira mais antiga que ainda sobrevive de uma forma para a qual podemos olhar hoje e dizer, com certeza, “Isto sim; isto é uma fronteira”. Toquei na sua superfície fria e calcária. Era um cilindro robusto branco‑creme, raiado aqui e ali com costuras cristalinas que brilhavam como gelo. Com quase meio metro de comprimento, tinha quase o mesmo tamanho e forma que uma estaca de betão.

Como sabemos que se trata de uma fronteira? Porque ela o diz. Está coberta de inscrições. De início, pareciam‑me pegadas de aves na areia molhada. Deixei as pontas dos dedos percorrerem aquelas ranhuras desgastadas pelo tempo.

Há 4500 anos, alguém se debruçou sobre este cilindro de pedra, tal como eu fazia agora, estudando‑o à luz do meu candeeiro de pé anguloso. Munido de martelo e cinzel (estaria a trabalhar à luz do fogo ou do Sol?), começou a picar e esculpir. Longas linhas verticais em jeito de colunas. E essas colunas estavam cheias de figuras aracnídeas em forma de cunha. A forma de escrita mais antiga conhecida: o cuneiforme sumério.

Não sei ler cuneiforme. Quem é perito e sabe diz que é preciso cerca de dez anos de estudo para aprender tamanha gama de símbolos: os seus potenciais significados, múltiplos e contraditórios. Ainda assim, escrever é escrever. E isso, pelo menos, eu sei fazer. O texto diante de mim podia ser ininteligível, mas a mão que o escrevera não o era. Movi a lâmpada para que a luz oblíqua iluminasse a superfície lisa, e, quando olhei para baixo e à volta das colunas, percebi que conseguia sentir os momentos em que as impressões se aprofundavam, as sombras escureciam, e a narrativa acelerava: onde o cinzel tinha mordido com força a carne e a cartilagem da pedra.

E assim o autor prosseguiu, usando quase todo o espaço disponível. O que ele estava a documentar — esculpir, preservar — era a história de uma fronteira. É a mais antiga que existe. Talvez até tenha sido a primeira tentativa de escrever História.

Esta história começa no início dos tempos.
Enlil, o pai de todos os deuses, concedeu a dois dos seus filhos imortais, Ningirsu e Shara, uma cidade a cada um como bens pessoais. A cidade de Lagash era de Ningirsu e a cidade de Umma era de Shara. Como as terras pertencentes a estas duas cidades estavam lado a lado, o próprio Enlil demarcou uma fronteira entre elas. Uma fronteira divina.

Na fronteira mais antiga do mundo. Uma história revelada após 4.500 anos
Irving Leonard Finke, o filologista que decifrou o milenário marco de fronteira.

Mas, diz‑nos o escriba, o povo de Umma não respeitaria a divisão. Atravessaram a linha sagrada de Enlil para tentar tornar suas as terras de Lagash. Apoderaram‑se dos “campos amados” de Ningirsu, conhecidos como Gu’edina — o “Extremo da Planície” —, um trecho de terra rica e fértil, ao longo da fronteira noroeste de Lagash. E, assim, Enlil interveio, instruindo o seu representante na Terra, Mesalim, governante do reino neutro de Kish, a marcar a fronteira mais uma vez: medi‑la, cavar um longo canal fronteiriço, e, para evitar futuras divergências, inscrever os direitos específicos do território e da propriedade numa tábua de pedra, ou estela, a ser erigida na própria linha divisória. Esta estela foi “o tratado de Mesalim”: o mais antigo tratado de paz conhecido na História. Um dos primeiros documentos jurídicos do mundo.

A paz não durou. Um novo governante de Umma, Ush, recusou‑se a aceitar o tratado. Arrancou a estela do chão, atravessou o canal e apoderou‑se das terras do Extremo da Planície.

Como explicar as circuncisões? E o caminhar sobre brasas? Ou o beijar os dados antes de os lançar? O antropólogo Dimitris Xygalatas procurou as respostas
Como explicar as circuncisões? E o caminhar sobre brasas? Ou o beijar os dados antes de os lançar? O antropólogo Dimitris Xygalatas procurou as respostas
Ver artigo

Passaram‑se anos, talvez algumas décadas. Então, privado dos seus campos sagrados e consumido pela raiva, Ningirsu criou um novo líder para Lagash: Eanatum, um homem gigante super‑heroico, amamentado à nascença pela deusa Ninhursag e destinado a reverter a sacrílega apropriação de terras.

Eanatum conduziu a sua carruagem de batalha, dissipou as forças de Umma, lideradas por Enakale, e restabeleceu a fronteira. Mais do que isso: voltou a destacá‑la, transformando o canal num duplo aterro cheio com as águas de um amplo canal de irrigação. Ele colocou a desenraizada velha estela Mesalim de volta no lugar, ergueu novos marcadores fronteiriços, construiu santuários para Enlil e Ningirsu e instituiu uma zona de exclusão de quilómetros de largura no lado de Umma do canal. Como concessão, destinada a evitar futuros conflitos, concedeu àqueles habitantes o acesso a um pequeno trecho do Extremo da Planície, com a condição de que pagassem a Lagash uma parte das receitas da cevada que ali colhiam.

No entanto, a disputa não desapareceria. Brotou o ressentimento, passando de geração em geração. Prontamente o filho de Enakale, Urluma, indignado com os termos “vergonhosos” acordados pelo seu pai, se preparou para a guerra. Depois de se recusar a pagar o devido da colheita a Lagash, marchou até à fronteira, arrancou, queimou e esmagou os pilares de Mesalim e Eanatum, destruiu os santuários e “secou” o canal, redirecionando a água para as terras da Ummaite.

Desta feita, foi Enmetena, sobrinho do grande Eanatum, a responder. Confrontou Urluma, o «ladrão do campo», mesmo à beira da fronteira, na “colina do cão preto”, a partir de onde massacrou as forças de Ummaite. Urluma fugiu a sete pés pelo canal da fronteira, «passando pelos ossos dos seus soldados espalhados pela planície»3. Urluma pode ter escapado, mas o seu destino foi, na mesma, selado. Seria assassinado num golpe palaciano, logo depois de regressar à cidade de Umma.

No rescaldo, Enmetena reconstruiu os santuários, alongou o canal fronteiriço — que percorria agora cerca de 60 quilómetros — e içou mais uma série de marcadores fronteiriços ao longo de todo o seu comprimento.

O pilar para o qual eu estava a olhar agora, que contava esta história, era um desses marcadores.

Que viagem tem sido desde então. Era o início de janeiro, na entrada da terceira década do século XXI. O pilar estava sobre um retângulo macio de espuma preta, numa longa mesa de madeira, na sala de estudo ornamentada da Coleção do Médio Oriente do Museu Britânico.

A minha mesa encontrava‑se no centro de uma linha de mesas, que passava sob cinco arcos abobadados. Acima estavam três andares de varandas de ferro forjado e prateleiras. Dez compartimentos conduziam a este espaço central, acomodando bandeja após bandeja de artefactos, protegidos em caixas altas de madeira e vidro. Ao meu lado, uma mulher manuseava fragmentos de cerâmica da antiga cidade assíria de Nimrud. Noutra mesa mais abaixo, cilindros cuneiformes despedaçados encontravam‑se dispostos para estudo em montes de papel branco. Até as cadeiras em que estávamos sentados pareciam ser artefactos — os seus estofos de couro tão secos e rachados, aqui e ali o recheio de fora, que pareciam estar a uso desde que esta sala fora aberta em meados do século XIX.

Virei o pilar. Era espetacularmente pesado. Havia uma densidade muscular compacta no calcário. O cuneiforme era mais comummente grafado em argila húmida, usando um estilete feito de juncos de rio. A tarefa de o esculpir em pedra, em tão ínfimo pormenor, deve ter sido difícil, um trabalho meticuloso.

Tal como o trabalho de tradução. Foi só em 2018 que Irving Finkel, o encarregado assistente das inscrições da Antiga Mesopotâmia do museu e uma das principais autoridades mundiais da escrita cuneiforme, veio a decifrar a longa inscrição do pilar. Durante pelo menos o século e meio anterior, o artefacto tinha estado ignorado numa cave sob Bloomsbury. Apenas um pedaço de pedra a colher pó numa prateleira, um objeto entre milhões de outros.

Exatamente como e quando o pilar chegou aos armazéns ainda não é claro. Os próprios registos de aquisição do museu dizem apenas que foi “provavelmente adquirido antes de 1884”. Deve ter viajado para Londres de navio, algures na segunda metade do século XIX, navegado pelo Tamisa até um cais e provavelmente sido descarregado nas movimentadas docas de Gravesend. Terá passado pelo então recém‑construído canal do Suez, ou dado uma volta maior, navegando pelo Corno de África? Antes disso, embalado numa de muitas caixas de madeira, teria descido numa barcaça o percurso sinuoso do Tigre até ao Xatalárabe, o “rio rápido” que desagua no Golfo Pérsico e no Mar da Arábia.

O local exato da sua descoberta permanece desconhecido: algures nos desertos secos das outrora exuberantes planícies da Mesopotâmia, o lugar a que agora chamamos Iraque. Muitos locais de escavação apareceram por toda aquela área no século XIX; muitas trincheiras foram escavadas e muitos dedos percorreram aquelas areias. Terá havido um grito entusiasmado no momento da descoberta? Ou um indiferente encolher de ombros como se estando apenas diante de mais um objeto adicionado ao transporte daquele dia? Seja como for, chegou o momento em que este cilindro foi retirado do pó, para ver de novo a luz do dia em milhares de anos.

“A sociedade banalizou a palavra génio. A maioria dos prodígios não são génios e nunca serão” - Craig Wright, professor emérito em Yale
“A sociedade banalizou a palavra génio. A maioria dos prodígios não são génios e nunca serão” - Craig Wright, professor emérito em Yale
Ver artigo

Só agora, porém, é que nos apercebemos da sua verdadeira importância. Enquanto Finkel estudava a inscrição, descobriu anomalias no texto. Como qualquer forma de linguagem, o cuneiforme mudou e evoluiu ao longo do tempo. Todavia, o relato inscrito no pilar fora redigido usando algumas das formas mais antigas e arcaicas da escrita suméria — símbolos redigidos pela primeira vez mais de 800 anos antes. Algumas marcas eram rasas ou semiacabadas, feitas para parecer, mesmo aquando da inscrição, como se tivessem sido erodidas pelo tempo. Os cortes mais profundos na pedra foram reservados para Ningirsu, cujo nome foi complementado com três versões diferentes do cuneiforme para “deus”. Pelo contrário, onde o texto mencionava o deus de Umma, Shara, o trabalho de cinzel era muito fraco e errático, quase ilegível. Esta evidência parece denunciar um gesto deliberado. O escriba estava, possivelmente, a insultar o povo de Umma e a forjar provas — eram fake news e trolling em cuneiforme: uma tentativa de fabricar uma prova de que o direito de Lagash ao Extremo da Planície remontava ao início da linguagem, mesmo à origem do mundo.

Havia outra coisa, no entanto, na inscrição, uma frase em particular. Neste pilar, pela primeira vez que se saiba na História, pode ler‑se a expressão “terra de ninguém”. O autor usou‑a para descrever a zona de exclusão criada pelo tio de Enmetena ao longo do lado de Umma do canal fronteiriço. Era apenas uma nota acessória, uma formulação literal para designar um pedaço de território que deveria permanecer vazio e intocado, onde “nenhum homem” deveria entrar. Há 4500 anos, tal combinação de termos não tinha praticamente peso. Mas ela tem viajado ao longo da História. E, longe de se ter perdido e sido enterrada, tem experimentado um constante processo de acreção: crescendo exponencialmente ao longo dos milénios — e durante o século passado em particular — para alcançar uma densidade supermaciça e trágica.

Terra de ninguém.

Hoje, tais palavras evocam que a história tem corrido mal. Elas atingem o coração da natureza problemática da humanidade: a nossa infinita capacidade de lutar pelo espaço. E neste caso a frase foi esculpida no mais antigo marcador de fronteira que se conhece, na forma mais antiga de escrita, numa das nossas tentativas formativas de registar a História.

Aqui jaz a nossa primeira narrativa. Há muitos, muitos anos, do outro lado da terra de ninguém, havia uma fronteira…

Tinha a tradução de Finkel na mesa ao meu lado, com os carateres sumérios para a “terra de ninguém” escolhidos. Tentei escrevê‑los no meu caderno: um processo de cópia incompreensível. As inscrições originais eram compostas por uma série de linhas que terminavam em triângulos — como pequenas bandeiras —, dispostas em formas discretas. A minha tentativa foi confusa, as linhas vacilantes e manchadas de tinta, as formas aleatórias. Tentei novamente e saiu melhor desta vez: as linhas formadas com golpes mais confiantes, encorajadas por conseguirem já transformar as “bandeiras” em letras.

“Taprobana”, o livro que viaja à história conturbada de Portugal no antigo Ceilão
“Taprobana”, o livro que viaja à história conturbada de Portugal no antigo Ceilão
Ver artigo

Estava determinado a descobrir onde, exatamente, a frase fora esculpida no pilar. Debrucei‑me sobre ele, munido de uma grande lupa, avançando e recuando sobre as marcações, levantando o pilar redondo para passar de uma coluna para outra. Era fácil perdermo‑nos na massa de inscrições riscadas e cinzeladas.

Finalmente encontrei‑a: a mesma disposição de carateres. Embora desbotada aqui e ali, a talha era intrincada, elegante. Toquei‑lhe — o pilar ainda estava frio, apesar do calor da lâmpada.

Terra de ninguém.

Ter esta frase na ponta dos dedos, preservada no instante em que era novinha em folha, era uma sensação eletrizante, de alta voltagem. Não conseguia parar de olhar. Ampliado pela lupa, o calcário cristalino brilhava como açúcar refinado. Era um objeto belo. Belo e terrível.

A história do pilar termina com a vitória de Lagash. Depois de descrever violentos confrontos fronteiriços que atravessaram gerações, o autor encerra a disputa. E, se o leitor tiver dúvidas, as últimas linhas da inscrição exibem um aviso calamitoso a quem procurar reabrir a ferida: Se o líder de Umma atravessar o canal fronteiriço de Ningirsu… para fazer seus os campos à força, quer seja o líder de Umma ou qualquer outro líder, que Enlil o destrua! Que Ningirsu, depois de lançar a sua grande rede de batalha sobre ele, o derrube com as suas mãos e pés colossais! Que o povo daquela cidade, tendo‑se levantado contra ele, o mate lá dentro da sua urbe!

Quando foi erguido pela primeira vez, por volta de 2400 a. C., o pilar terá sido colocado na vertical, cimentado num grande pedestal, e depois posicionado no cume do aterro fronteiriço — deliberadamente vistoso, brilhando à luz do Sol, mostrando a sua mensagem sobre a planície.

História contada por um artefacto e documento num só: o longo conto da fronteira narrado pela própria fronteira. História, mas não, talvez, como a conhecemos.

O pilar fala de um mundo no qual as ações de deuses e dos homens se entrelaçam. Onde divindades marcam linhas de fronteira na terra, amamentam futuros reis e levam‑nos para o campo de batalha ao lado dos seus súbditos mortais. Ao mesmo tempo, contém uma notável especificidade burocrática — que a fronteira se estende por cerca de 60 quilómetros “do Tigre ao canal Nun”; que Umma devia a Lagash juros de 44 milhões de hectolitros de cevada, dos quais só pagou 18 milhões.

É uma história fragmentada, contada em segmentos — uma vez que este pilar não é a única fonte. A narrativa do conflito fronteiriço entre Lagash e Umma encontra‑se reproduzida numa pequena coleção de objetos semelhantes que emergiram das areias mesopotâmicas ao longo dos últimos dois séculos.