Bem doseada, ajuda-nos a crescer na relação com os outros. Mal gerida, transforma-se na nossa pior inimiga. A culpa tem dupla personalidade.
Nela habitam duas formas de ler e lidar com o mundo. A primeira implica reconhecer o erro e melhorar com ele e a segunda pressupõe amarrar o erro à tristeza e à vergonha, multiplicar o seu valor de forma desproporcional e,assim, transformá-la num peso demasiado elevado.
Um fardo pesado pouco saudável para a autoestima. «Pense numa planta», sugere Luís Gonçalves, psicólogo clínico, «ela precisa de água, de solo fértil, de luz e de ar à sua volta para se desenvolver. Se lhe retirarmos alguma dessas condições, vai começar a perder vitalidade e pode até morrer.
A culpa tem um efeito semelhante ao retirar-nos aquilo que nos causa bem-estar, ao impedir-nos de termos acesso ao prazer no dia a dia e à satisfação de necessidades. Pesa toneladas e, pior que tudo, não aponta soluções.» Esta é a culpa que não lhe interessa. Livre-se dela e concentre-se na outra.
Qual é o lado bom da culpa?
Catarina de Castro Lopes: Motiva comportamentos que permitem preservar, fortalecer e manter laços sociais. A culpa pode reparar relações danificadas e impedir-nos de cometer algumas ações, promovendo o envolvimento espontâneo com os outros.
Luís Gonçalves: Tem utilidade na sua versão adaptativa, em que contribui para a satisfação das nossas necessidades e se apresenta como responsabilidade, levando-nos a melhorar o nosso desempenho.
Teve um papel determinante no processo de evolução da nossa espécie?
Catarina de Castro Lopes: Sim. Os sentimentos de culpa e remorso têm funções adaptativas, isto é, têm um elevado valor de sobrevivência. O nosso cérebro está preparado para analisar as experiências, registando na memória sentimentos desconfortáveis que podem servir como marcadores para que, no futuro, seja possível agir de forma mais adequada.
Neste sentido, a culpa proporciona aprendizagem, ajuda a evitar erros futuros, aumenta a atenção e cuidado, induz ao desejo de reparação, promove a sensação de responsabilidade, de aceitação social e de estima. Se não sentíssemos culpa, continuaríamos a cometer os mesmos erros. Este sentimento tem como função regular o comportamento humano e adequá-lo à vida em comunidade.
O que pode interferir no grau de culpa que sentimos?
Luís Gonçalves: O meio familiar e cultural onde vivemos. A culpa é uma emoção muito presente no nosso país. Podemos sentir culpa por quase tudo. Podemos até senti-la por não estarmos a senti-la.
Como devemos gerir relações com pessoas que nos fazem sentir culpadas?
Luís Gonçalves: É preciso ter alguma dose de proteção nesse tipo de relações já que são baseadas, muitas vezes, numa questão de controlo. Isto é, se fazemos o outro sentir-se culpado regularmente, estamos a moldá-lo no sentido que deseja-mos e a contribuir para que se anule progressivamente na relação.
No essencial, é bom sentir que pode e deve fazer melhor mas sempre sendo a pessoa que é. Uma coisa é sentirmos culpa por nós próprios e outra é senti-la porque alguém nos relembra dela constantemente. As emoções são nossas e pessoais, ajudam-nos a escolher os melhores caminhos de acordo com o que precisamos. E, por isso mesmo, podemos escolher não dar atenção a quem pode trazer alguma penumbra à nossa vida.
O que podemos fazer para não ficarmos reféns da culpa?
Luís Gonçalves: É importante começar por perceber até que ponto se está a ficar enredado por ela. Verifique o número de vezes que tem pensamentos e comportamentos ligados a ela. Pode, até, criar uma balança mental ou escrita sobre o seu dia. De um lado coloca as atividades de lazer e prazer que teve e no outro, as responsabilidades e papéis que desempenhou. Se houver um grande desequilíbrio e verificar que o segundo prato da balança pesa bem mais, existe uma grande possibilidade de a culpa andar a fazer das suas.
Se não nos libertarmos dela, o que pode acontecer?
Catarina de Castro Lopes: Os pensamentos automáticos acusatórios e condenatórios e a autoavaliação depreciativa estão intimamente ligados à depressão. Pessoas que a vivem assim, frequentemente dirigem a culpa a si próprias e sentem que se devem punir. Mas a autopunição, na grande maioria das vezes, provoca ainda mais dor e sofrimento. Diminui a estima e destrói a esperança.
Pode fazer a pessoa ficar agarrada ao passado, revelando uma preocupação excessiva, pensando na transgressão várias vezes ao longo do dia e desejando ter-se comportado de outra forma ou poder desfazer o que fez, impossibilitando-a de levar a vida para a frente e de viver o presente. A culpa pode ser uma boa aliada de pessoas muito exigentes consigo mesmas e pouco tolerantes a erros, especialmente nos casos em que a autocrítica não é resiliente, isto é, em que não promove a aprendizagem através de experiências dolorosas.
Vanessa Damásio: A culpa pode levar a uma crítica excessiva e destrutiva, quer a nível individual, quer relacional, resultando em isolamento, anulação da identidade, depressão e várias patologias ansiosas.
Há, portanto, efeitos ao nível da saúde física, mental e emocional…
Vanessa Damásio: Sim. Como se fosse um vírus, a culpa pode minar a nossa imunidade, assolar as nossas defesas, reprimir o organismo, provocar dor na pele e na alma e dificultar o contacto com os outros. Quando o vírus chega a este ponto, é como uma barreira que afeta o livre fluir de determinadas emoções, deixa de ser sustentável e passa a ser desproporcional e destruidor. Nesses casos, é importante recorrer a ajuda profissional.
Que tipo de terapia pode ajudar?
Vanessa Damásio: A psicoterapia. É fundamental para que a pessoa identifique as suas emoções, cognições e comportamentos que sustentam o sentimento de culpa, permitindo, também, descortinar os acusadores internos e externos que criticam, e desafiar respostas novas e alternativas mais adaptativas. Com a psicoterapia, a pessoa poderá ganhar uma maior consciência e autoconhecimento e construir o seu caminho rumo ao bem-estar consigo própria e com os outros, de forma a abrir espaço à mudança, livre de culpa.
Exercício prático
Faça a anatomia da (sua) culpa. Este exercício proposto por Vanessa Damásio, psicóloga clínica, tem o objectivo de clarificar e ganhar consciência da culpa que sente, das emoções, atos e pensamentos a ela associadas. Uma das vantagens é que lhe vai permitir refletir sobre possíveis respostas alternativas e potencialmente libertadoras da culpa. O material necessário implica apenas papel e lápis para desenhar e preencher seis colunas.
Como se processa:
1. Na primeira coluna faça uma lista das culpas que sente, para ganhar consciência das críticas e medos com que se depara.
2. Ao lado tente listar as situações em que aconteceram os factos, onde, quando e como se iniciou cada um.
3. Na coluna seguinte, anote as consequências que resultaram desses factos.
4. Faça uma outra coluna onde descreva as suas emoções, pensamentos e atos.
5. Na seguinte, tente averiguar quem potencia ou potenciou que se sinta culpada. (Questione-se se existirá alguma relação entre a culpa atual e a sua história de vida.)
6. Numa coluna final, questione-se se poderia ter pensado ou agido de forma distinta, procure encontrar pensamentos e respostas alternativos mais adaptativos, pergunte-se se realmente a culpa é sua e se é justificada a forma como se sente, pensa e age, tendo em conta os factos e consequências evidenciados nas colunas anteriores.
Procure ajuda
A culpa não é saudável se:
- Está associada a reações emocionais de raiva, por vezes reprimida, medo, tristeza, vergonha.
- Promove autopunições constantes, sensação de rejeição, inferioridade e de não ser merecedor de algo positivo.
- O corpo também reage. Os músculos revelam-se mais tensos e os ombros acusam a dor e o peso da culpa, que carregam como fardos insustentáveis.
- Limita a liberdade, o seu direito a ser o próprio, passando a atribuir-se uma responsabilidade demasiado grande e deixando os pensamentos e as expectativas dos outros serem superiores.
Texto: Fabiana Bravo e Nazaré Tocha com Catarina de Castro Lopes (psicóloga clinica em funções na Psinove – Inovamos a Psicologia), Luís Gonçalves (psicólogo clinico na Psinove – Inovamos a Psicologia) e Vanessa Damásio (psicóloga clinica na Psinove – Inovamos a Psicologia)
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