Quando a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) foi criada, em 1926 – é a mais antiga do mundo –, praticamente só existia a diabetes tipo 1. “No início do século passado, eram raras as pessoas com diabetes tipo 2, quer por causa da esperança de vida, que era muito curta, quer pelos hábitos de vida, que inibiam o seu aparecimento”, conta José Manuel Boavida, presidente da APDP. O foco era a chamada diabetes tipo 1, aquela que “está ligada à rejeição das células produtoras de insulina”, “e hoje o que se sabe é que isso é um processo complexo que chega a demorar anos”. O estádio 1 caracteriza-se pela existência de anticorpos, o estádio 2 pelo aparecimento de alterações da glicemia, e o 3 pela necessidade urgente de insulina para sobreviver.
“Este é o enquadramento atual da diabetes tipo 1, com muitas dúvidas ainda sobre a forma como todo este processo se desenvolve, mas decorrem investigações permanentemente, tentando encontrar novos anticorpos, tentando encontrar os alvos desses anticorpos e tentando encontrar o trigger, aquilo que faz disparar a diabetes tipo 1. Aquilo que sabemos é que existe uma predisposição genética, em parte ligada ao HLA, mas existem também fatores externos que condicionam”, segundo o médico. Os gémeos univitelinos são prova disso: existe apenas 50% de concordância no aparecimento da diabetes tipo 1 (na diabetes tipo 2 há mais de 70% de concordância, portanto, “a diabetes tipo 2 é muito mais hereditária do que a diabetes tipo 1”).
Os fatores externos, pensa-se que poderão ser virais. Provavelmente, vírus intestinais, segundo Boavida. “Mas têm sido vários os candidatos dos vírus e, até agora, sem provas em qual deles se pode ou não atuar para tentar fazer desaparecer a diabetes tipo 1.” Contudo, não é possível responsabilizar o doente: “Não se encontram aqui fatores que saibamos que possam predispor, por atitudes pessoais, ao desencadear desta reação imunológica”, sublinha o especialista.
Quando em 1989 a APDP organizou um congresso paralelo ao evento da Sociedade Europeia de Diabetes e contou com a presença do “grande investigador” José Barbosa – um português que residia nos Estados Unidos –, este disse que “no ano 2000 todos iremos dizer ‘quem eram aqueles bárbaros que faziam picar as pessoas tantas vezes a si próprias’”, recorda o presidente da associação. “Ou seja, ele estava absolutamente convencido de que no ano 2000, em dez anos, poderíamos controlar a diabetes tipo 1. O que é verdade é que a esperança da cura da diabetes tipo 1 é maior do que a esperança da cura da diabetes tipo 2, porque é mais fácil identificar o fator que a desencadeia. Mas os passos e as tentativas de caminhar nesse sentido são ainda muito pequenos.”
“Ou seja, quando me pergunta se existe entusiasmo, ele já foi muito grande, depois esmoreceu e neste momento começa a haver novamente, com todas estas iniciativas, um entusiasmo grande na expectativa da cura da diabetes tipo 1”, afirma Boavida. Estas iniciativas são, por exemplo: desenvolvimento de medicamentos do cancro e de doenças autoimunes que possam também ter ação na diabetes; um destes medicamentos, já em estudos de fase 3, poderá atrasar dois anos o desenvolvimento da diabetes, posteriormente ao aparecimento da doença (“o que é bom, mas é muito pouco, e a dúvida é saber se este tratamento, antes do desenvolvimento da diabetes, nas fases não clínicas da diabetes tipo 1, poderá ter outros resultados”).
“É nesse sentido que a associação está a desenvolver o rastreio da diabetes tipo 1, com dois programas. O programa Radar1, que consiste em identificar as pessoas com anticorpos característicos da diabetes tipo 1, em familiares de pessoas com diabetes, já está a decorrer. E há um outro que é um estudo europeu, o EDENT1FI, não nas pessoas de maior risco, que são os familiares, mas na população em geral, e em que a associação se comprometeu a rastrear 10 mil crianças e adolescentes”, adianta José Manuel Boavida.
“Direção-Geral de Saúde tinha que desenvolver novamente um programa de registo da diabetes tipo 1. Não o fez”
“Por mais críticas que façamos e incompreensão das razões para isso”, a Direção-Geral da Saúde (DGS) ainda não seguiu a recomendação da Assembleia da República para desenvolver novamente um programa de registo da diabetes tipo 1. A indicação de 30 mil doentes com esta condição baseia-se em dados de 2016, último ano do Doce, “um registo nacional das crianças com diabetes tipo 1 em que todos os anos podíamos ver o número de novas pessoas com diabetes tipo 1”, recorda José Manuel Boavida, na altura diretor do Programa Nacional para a Diabetes da DGS.
Trinta mil doentes “é uma estimativa”. “Sem um registo nacional de diabetes tipo 1, obviamente que se tem dificuldades em fazer uma abordagem global ao problema. Esse número apareceu agora para calcular o número de bombas de insulina necessárias. Aquilo que nos preocupa é se esta diabetes tipo 1, de acordo com aquilo que se está a passar a nível mundial e com o que passa nas doenças autoimunes, está a aumentar, nomeadamente em idades mais jovens, como era possível ver no Doce, em que, por exemplo, entre 2008 e 2015, aumentou cerca de 200 a 300 o número de jovens com menos de 14 anos que desenvolveram a diabetes tipo 1. (…) Mesmo em relação às hipóteses virais, era muito importante este registo anual, porque ele, de alguma forma, poderia identificar surtos que tenham existido, questões que tenham existido, localizações diferentes. Há aqui uma dificuldade de investigação clara na diabetes tipo 1, sem uma epidemiologia da diabetes tipo 1”, denuncia.
Para Boavida, “não há nenhuma justificação para isto porque os recursos não são agora menos do que eram naquela altura”, e “havia aqui muito boa vontade de todos os serviços que seguem as pessoas com diabetes tipo 1”.
“Nós sabemos que a incidência da diabetes tipo 1 é variável por regiões do mundo, de ano para ano. E isso é absolutamente fundamental ser monitorizado para percebermos um pouco mais. Obviamente, podemos esperar que a resposta venha do outro lado, surja da investigação, através dos medicamentos biológicos, através de transplante, através de alguma vacina, através de alguma modificação das próprias células. Há aqui várias linhas de investigação que poderão pôr a diabetes na ordem do dia”, reforça.
Desvio da investigação para o cancro por interesses comerciais
Boavida lamenta o desvio da investigação para o cancro nos últimos 15 anos, não pelo cancro em si, não que a investigação do cancro não seja primordial, não que através da investigação do cancro não se tenha chegado a progressos que permitiram, por exemplo, chegarmos a uma vacina para a covid-19 e a terapias biológicas; mas isso implicou uma perigosa diminuição da investigação científica nas doenças cardiovasculares, nas doenças neurológicas, na diabetes, na pneumologia, “pelos interesses comerciais que estão por trás da investigação”. A investigação “ainda é muito determinada por interesses comerciais”. “Foi com muita infelicidade que se viu como a comunidade europeia não resistiu à pressão da indústria farmacêutica nesse sentido, quando tinha planos, por exemplo, de investigação na área viral e na área da gripe, e que foram todos abandonados antes da Covid. Foi a Covid que veio mostrar o erro cometido pela comunidade europeia e os lobbies de Bruxelas em terem desviado este dinheiro”, comenta o endocrinologista. Este ano, a APDP quer “que o próximo Parlamento Europeu já tenha um programa de ação onde a diabetes apareça como uma das grandes prioridades, muito pela diabetes tipo 2 e pelo seu grande impacto na sociedade, mas, obviamente, também pela diabetes tipo 1”.
“É uma doença muito mais exigente do ponto de vista individual”; “felizmente, começam a aparecer as chamadas bombas de insulina inteligentes”
“A labilidade dos valores da glicemia é absolutamente permanente e as variáveis são imensas, desde aquelas visíveis como a alimentação, o exercício físico, até à própria insulina, o próprio sistema nervoso autónomo, o cortisol, a adrenalina, a noradrenalina, o estresse. Todas essas situações estão permanentemente a modificar-se. É preciso nunca esquecer que temos uma fábrica de açúcar dentro do nosso organismo, o fígado, e que é contrariada pela ação da própria insulina. Se não existe insulina, este fígado está permanentemente desregulado na sua produção e, portanto, temos que andar sempre atrás disto. Esta é a complexidade, é por isso que se costuma dizer que a diabetes é uma doença de 24 sobre 24 horas, contrariamente a muitas outras”, esclarece Boavida, que alerta para o sofrimento dos pais e cuidadores.
“Felizmente, começam a aparecer as chamadas bombas de insulina inteligentes, que têm capacidade de fazer a leitura e transformar esse valor numa determinada dose de insulina, e, ao ver a evolução das glicemias, conseguem prever também a evolução das próprias necessidades de insulina. Isto é uma revolução no tratamento da diabetes (…) A junção do sensor com a bomba, portanto, uma leitura permanente das glicemias e uma aprendizagem que hoje as bombas automáticas são capazes de fazer com a própria experiência em relação às refeições, vai levar, claramente, a uma facilidade enorme do controlo da diabetes e, neste sentido, evitar complicações e evitar a má imagem da diabetes tipo 1 em relação à diabetes tipo 2, porque era mais difícil de regular. Mas é verdade que ainda hoje a diabetes tipo 1 tem um impacto na esperança de vida maior que a diabetes tipo 2, primeiro porque começa em idades muito mais jovens e em segundo lugar porque é muito mais lábil e de difícil controlo. A diabetes tipo 1 é entusiasmante pela sua simplicidade aparente e complexidade real”, afirma o médico.
“Os sensores com os seus alarmes são uma revolução. São a maior revolução depois da insulina”, segundo Boavida.
Em meados de 2024, o Ministério da Saúde estabeleceu que 15 mil doentes teriam acesso a bombas de insulina de nova geração, comparticipadas a 100%. Este ano, “as bombas inteligentes estão atrasadas. O senhor ministro prometeu que teríamos as primeiras 5000 bombas no fim do ano passado, mais 5000 bombas este ano e outras 5000 bombas em 2025. Em primeiro lugar, é preciso que os serviços encarem a colocação das bombas como uma prioridade da sua própria ação, coisa que não é neste momento o caso na maior parte dos serviços”, lamenta Boavida. Na sua visão, “o ministério, ao não acatar a proposta da comissão que tinha nomeado e que tinha apontado para que a distribuição das bombas fosse através das farmácias, está a apontar para decisões extremamente rígidas e morosas, porque abrir concursos internacionais leva tempo, ficamos presos a esses concursos, não conseguimos acompanhar a inovação tecnológica e as novas bombas que estão permanentemente a aparecer. Hoje percebemos que as bombas não vão durar quatro anos porque a inovação é muito mais rápida do que isso.”
José Manuel Boavida relembra que a maior parte das bombas inteligentes nasceram em universidades e que a primeira foi idealizada por um grupo de doentes e cuidadores – o movimento “DIY – Do it yourself”, que “foi uma demonstração de que a indústria é lenta”.
Para Boavida, o conservadorismo é um obstáculo: “Quando uma determinada bomba ainda ‘está a vender’, fazem esgotar até ao fim o filão, em vez de introduzirem novas tecnologias. Há que haver uma regulação muito maior do Estado. As próprias universidades desistiram muito desta intervenção. Os institutos científicos que o Estado tinha anteriormente eram extremamente importantes nestas áreas. Hoje, ao entregarmos só à indústria e ao mercado esta situação, estamos claramente a dificultar os meios para uma resposta mais eficiente e mais eficaz das bombas. Tenho a esperança de que surjam rapidamente novas bombas, confortáveis para as pessoas, de fácil utilização, que não exijam uma preocupação tão grande, que aliviem em grande medida o que é o dia-a-dia das pessoas com diabetes.”
“A grande arma no tratamento da diabetes é o acompanhamento”
“A grande arma no tratamento da diabetes é o acompanhamento, diferente da doença aguda, em que a prioridade é o diagnóstico”, contrapõe Boavida. “Esta visão do acompanhamento nas doenças crónicas é algo que ainda não entrou na Medicina, que ainda continua com uma Direção-Geral de Saúde extremamente virada para as doenças infeciosas, extremamente virada para as doenças transmissíveis, as faculdades extremamente viradas para as doenças agudas ou transmissíveis, e a doença crónica, que é aquela que hoje tem maior peso na saúde, quer na mortalidade quer na morbilidade, ainda tem uma dimensão menor nas universidades e nos diferentes organismos da saúde. Em parte, porque muito do poder está nas próprias pessoas e não nos profissionais de saúde. São eles que vivem 24 sobre 24 horas com a doença.”
Na doença crónica, “os profissionais de saúde têm de ter uma atitude muito mais educativa. Como dizia o Professor Pulido Valente, na diabetes, mais do que tratar, o que é importante é ensinar as pessoas a tratarem-se a si próprias. Isto é de uma atualidade tremenda. Cem anos depois, ainda achamos isto uma frase revolucionária, quando ela já devia estar integrada.”
A associação presidida por Boavida foi criada para dar insulina aos pobres, “mas rapidamente percebeu que mais importante do que dar insulina é ensinar as pessoas a utilizá-la”. “Isso chama-se educação terapêutica.”
Falamos da associação de pessoas com diabetes mais antiga do mundo. Os Estados Unidos são 24 anos mais novos; os ingleses, sete; “e percebemos mais cedo do que eles a importância da educação”, frisa o presidente.
Quase cem anos depois, a APDP continua firme ao lado dos doentes diabéticos. Atualmente, “tem um serviço integrado. Tem equipas multidisciplinares, com uma dedicação extremamente grande à educação; tem uma linha telefónica de acompanhamento das pessoas com diabetes para situações de emergência e tem todas as especialidades necessárias para o acompanhamento dessas crianças, jovens ou adultos. A diabetes é a principal causa de cegueira, é a principal causa de insuficiência renal, é a principal causa de amputações, é a principal causa de enfartes em idades jovens, e, portanto, temos todas estas especialidades médicas na associação. Temos laboratório próprio e temos ensaios clínicos onde tentamos testar todos os novos fármacos que vão aparecendo. Portanto, é uma associação ímpar a nível mundial”, assume Boavida.
Apesar disso, o presidente da APDP diz que “o modelo da associação nunca foi bem compreendido pelo Serviço Nacional de Saúde, embora a associação, até 2010, tenha estado integrada no SNS, completamente” (a partir daí começou a trabalhar com o Estado como prestador de serviços).
“Aquilo que nós queremos é que este modelo seja assumido pelo Estado como cuidados intermédios, entre os cuidados de urgência e complexos dos hospitais e os cuidados primários de maior proximidade. Estes cuidados intermédios podem ser para todas as doenças crónicas”, defende Boavida. E prossegue: “Já tentou desenvolver-se. Já houve um instituto de dermatologia, um instituto de oftalmologia, um instituto de urologia em Lisboa, que tentavam desenvolver exatamente estes cuidados intermédios. Vem da lógica do aparecimento dos IPO, dos hospitais pediátricos, das maternidades.”
Na opinião do médico, “faz sentido, hoje, diferenciar dos hospitais e dos cuidados agudos e muito complexos o ambulatório, a educação, coisas que não são valorizadas nos hospitais. Os cuidados primários têm que ter este apoio com maior proximidade. Nós defendemos que o modelo da associação deve ser replicado em todos os distritos. Era bom que tivéssemos no próximo Governo um ministro da Saúde que tivesse esse ‘clique’ de poder perceber que é possível retirar dos hospitais milhões de pessoas que podem perfeitamente passar para estruturas intermédias muito mais próximas das pessoas (dos cuidados primários). Era extremamente importante.”
Entrevista de Rita Antunes
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