Vivemos numa constante tentativa de nos sentirmos, de alguma forma, melhores do que os outros. No entanto, quando confrontados com a realidade de que haverá sempre alguém mais bonito, inteligente, bem-sucedido e talentoso, podemos sentir-nos insuficientes. Por isso mesmo, todos nós tendemos a ter uma voz autocrítica, que nos diz que não somos bons o suficiente. Por vezes, esta voz torna-se tão automática e inconsciente que quando falhamos, por exemplo, chamamo-nos nomes que nunca permitiríamos que outra pessoa nos chamasse.
É importante compreender que as críticas que esta voz interna dita não são criadas por si próprio. Aquilo que diz a si mesmo nesses momentos é muitas vezes um espelho daquilo que ouviu/ ouve sobre si. Uma voz autocrítica é uma voz interna de alguém externo. Se tem por hábito fazer alguma crítica a si mesmo, é provável que já tenha ouvido essa mesma crítica, vinda de alguém importante para si. Por essa razão, figuras relevantes como os pais têm um papel preponderante naquilo que os filhos acham de si próprios. No fundo, é principalmente com os adultos que as crianças aprendem sobre o mundo e sobre elas próprias, sobre aquilo que são, ou não, e que “deviam”, ou não ser. Isso faz com que pessoas com pais críticos aprendam, desde cedo, que aquilo que são e que fazem não é suficiente. Inclusivamente, quando o amor dos pais apenas é condicional ao cumprimento das suas exigências, a criança cresce a achar que só é digna de amor se satisfizer os pais, se for ideal ou até perfeita (algo, obviamente, inatingível).
Não obstante a intenção destas figuras até poder ser boa (por exemplo, ajudar a ficar longe de problemas, ou melhorar determinados comportamentos), é transmitida a mensagem de que a autocrítica insultuosa é uma parte útil e necessária para ser melhor pessoa. Em resumo, pais críticos têm maior probabilidade de gerar crianças que, em adultos, se tornam autocríticos. Mesmo que ache que conseguirá ser melhor e mais motivado se for mais duro consigo, o mais provável é que isso será algo autodestrutivo e altamente desmotivador. Apesar de, por vezes, a descrença dos outros poder espicaçar alguma motivação, a verdade é que não é fácil manter a motivação quando temos alguém a dizer-nos de forma constante que não comos capazes ou suficientes, principalmente quando esse alguém somos nós mesmos.
Entre outras razões, a autocrítica pode surgir como tentativas de:
- Proteção em relação a críticas externas (“vou-me criticar a mim próprio, antes que sejas tu a fazê-lo”). No fundo, se for eu próprio a apontar as minhas imperfeições, passo a ideia de que “já sei que sou assim, não preciso que me digas”. Pode ainda tratar-se de uma tentativa de que a outra pessoa me convença do contrário, ou seja, dizemos que somos maus na esperança que a outra pessoa reforce o quão bom somos e quão errados estamos quando dizemos isso.
- Evitar erros futuros – olhamos para a autocrítica como uma forma de aperfeiçoamento, achando que se nos criticarmos vamos ser melhores.
- Superioridade – De forma quase paradoxal e irónica, o desejo de ser superior é alimentado pela autocrítica. Se se criticar por aquilo que fez ou disse, “pelo menos fui inteligente o suficiente e humilde para reconhecer os meus erros e punir-me a mim mesmo”. A raiva é uma emoção que pode transmitir uma sensação de controlo e poder e, por isso, quando nos rebaixamos e irritamos connosco, podemos sentir-nos algo superiores ao mesmo tempo.
- Defesa do nosso autoconceito – quando nos sentimos ameaçados, o nosso cérebro ativa um mecanismo de defesa contra essa ameaça, seja ela física ou psicológica. Como os psicólogos Kristin Neff e Christopher Germer referem no livro The Mindful Self-Compassion Workbook, “Quando nos sentimos inadequados, o nosso autoconceito é ameaçado, então atacamos o problema – nós próprios!”.
Apesar de poder ter objetivos desejáveis, a autocrítica tem consequências nocivas, estando associada a sentimentos de fracasso, desmotivação, insatisfação com a vida e problemas relacionais. Além destas problemáticas, a autocrítica é também um indicador de constrangimentos ao nível da saúde mental, estando associada a doenças mentais, como depressão, ansiedade, adições e burnout.
Para ultrapassar a autocrítica, não adianta criticar-se por ser autocrítico/a. Segundo Kristin Neff, investigadora pioneira na área da autocompaixão, para combater a autocrítica é necessário compreendê-la, ter compaixão por ela e depois substituí-la por uma resposta mais amável. Por exemplo, face aos seus próprios erros, poderá:
- Imaginar alguém que seja carinhoso consigo e a forma como esse alguém agiria consigo;
- Imaginar como lidaria com alguém que ama nessa mesma situação e colocar isso em prática consigo mesmo;
- Refletir sobre qual seria a sua atitude face a alguém que lhe dissesse aquilo que diz a si mesmo – “será que ia gostar de alguém que me tratasse ou falasse assim?” e mudar o seu discurso interno em conformidade com a resposta.
A autocompaixão não se trata de criar desculpas, ser egoísta, ou ter pena de nós próprios, mas é reconhecer que a vida tem as suas dificuldades e desafios, toda a gente, por vezes, sofre e isso, inevitavelmente, inclui-nos. A literatura mostra que pessoas com maior autocompaixão lidam melhor com situações difíceis (trauma, divórcio, dores crónicas), tendem a ser mais carinhosas e apoiantes nas relações românticas, mais compassivas e tendem a assumir mais a responsabilidade pelos seus erros. Por vezes, pode ser mesmo difícil lidar com a voz autocrítica. A autocompaixão, aliada a estratégias saudáveis de gestão de expetativas, e a uma construção gradual da autoestima e identidade, fazem parte do trabalho relevante para superar estas dificuldades. Saiba que pode pedir ajuda... Ainda hoje.
Um artigo de Samuel Silva e Mauro Paulino, psicólogos clínicos e forenses da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.
Comentários